Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Carta Capital

LIVRO ELETRÔNICO
Felipe Marra Mendonça

O e-book marca um ponto

‘O Kindle Daily Nation, de Stephen Windwalker, segue o modelo de outros blogs voltados para apenas um produto, demonstrando a firme convicção de que seu ‘objeto de estudo’ é a melhor invenção desde a pipoca de microondas. Windwalker toma para si a missão de catequizar todos os visitantes do blog para que comprem um Kindle, o livro eletrônico da Amazon.

Em seus posts, o autor sugere uma teoria que nenhum outro especialista em tecnologia tinha ousado publicar. No dia 14, ele previu que a Amazon ‘iria vender mais edições para o Kindle do que cópias físicas do The Lost Symbol (de Dan Brown), durante as semanas iniciais do livro no mercado, mas as cópias físicas vão encurtar a distância até o Natal’.

Foi exatamente o que aconteceu. No dia 15 de setembro, o livro mais vendido na Amazon americana era a edição eletrônica de The Lost Symbol. Mais vendido do que a edição impressa ou do que qualquer outro livro na maior livraria virtual do mundo. Como o próprio Windwalker escreveu, esse sucesso poderia ser o início da guinada do mundo editorial na direção dos livros eletrônicos, mesmo que a versão eletrônica corra o risco de ter sido ultrapassada pela impressa na manhã seguinte.

A edição eletrônica tem duas facetas. A primeira está no preço. A versão impressa custa 29,95 dólares. A Amazon oferecia um desconto de 13 dólares para quem o comprasse antes do lançamento, mas o consumidor em alguns casos ainda teria de arcar com o frete e, assim, esperar até que o volume chegasse até a sua casa. A edição para o Kindle sai por 9,99 dólares, ou seja, 67% mais barata do que a impressa.

A segunda faceta é relacionada com o frete e com a satisfação instantânea, que só é possível para quem adquiriu a obra eletronicamente. O livro chegava ao Kindle automaticamente, pela rede de dados da operadora americana Sprint. Ou seja, a edição eletrônica é mais barata e não existe espera até a entrega do livro.

A tecnologia das telas de tinta eletrônica ainda não chegou à resolução de uma folha de papel, de modo a não cansar os olhos após um longo tempo de leitura. O Kindle também não conseguirá substituir a experiência sensorial do manuseio.

Em termos puramente econômicos ou de logística, contudo, o livro eletrônico mostra grande fôlego para crescimento. É pena que o primeiro bom exemplo tenha sido dado por um autor do ‘calibre’ de Dan Brown. O endereço para acessar o blog de Windwalker é http://thekindlenationblog.blogspot.com.

Outro passo importante para a consolidação da indústria dos livros eletrônicos pode acontecer com a chegada da tão sonhada ‘prancheta’ da Apple com tela sensível ao toque. Brian Lam, do Gizmodo, (www.gizmodo.com), sugeriu na quarta-feira 30 que a companhia quer fazer com os livros o mesmo que fez com as músicas quando lançou o iPod. Lam cita diferentes fontes anônimas para apontar que o aparelho deve ser anunciado em janeiro e lançado no segundo semestre de 2010.

Alguns detalhes interessantes dão conta de que caminhões cheios de livros têm chegado na sede da empresa, em Cupertino, na Califórnia, e de que executivos de diferentes editoras se reúnem na Apple para ver protótipos do aparelho. Agora é esperar para conferir se a profecia se realiza.’

 

HONDURAS
Mino Carta

A glória e a infâmia

‘Há coisas do Brasil louvadas mundo afora, e não me refiro às ações da Petrobras e da Vale. Falo do refúgio dado pela embaixada brasileira em Tegucigalpa ao presidente José Manuel Zelaya. Há coisas do Brasil verberadas País adentro. Falo da mesma posição que o resto do planeta aprecia e que já começa a provar seu acerto.

Coisas nossas, diria o sambista. Típicas. Clássicas. Com raras exceções, a mídia nativa condena irreparavelmente o presidente Lula e o Itamaraty, réus por terem garantido abrigo a um presidente deposto por mais um golpe de Estado nesta América Latina ainda tão distante da contemporaneidade. Ou, se quiserem, de um ideal de contemporaneidade.

Na situação, o mundo anda na contramão no confronto com a mídia nativa, aquela que Paulo Henrique Amorim, companheiro de muitas jornadas, denominou de PIG, Partido da Imprensa Golpista. Que a ideia do golpe a inspira e a atiça é indiscutível. Passou sete anos de governo Lula a cultivar a esperança do impeachment. Do mensalão aos pacotes de reais empilhados no vídeo da Globo. Até o risível episódio do pretenso conflito entre a chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, e dona Lina Vieira, ex-Receita Federal.

Tudo serve ao propósito de minar o pedestal governista. No momento, trata-se de explorar a questão hondurenha. Candentes aos editoriais, ainda redigidos no tom, na letra, no conteúdo, no mesmo estilo que os caracterizava, começos dos anos 60, ao invocar o golpe enfim desfechado pelos carabineiros dos inextinguíveis donos do poder no final de março de 1964.

O tempo passa, e o pessoal não arreda pé do seu ideário. Ninguém se queixa se o monstruoso desequilíbrio social permanece e se o governo Lula fez pouco para avançar na direção de uma igualdade, indispensável, aliás, à realização de um capitalismo sadio e regrado. Enfurecem-se, porém, se o chanceler Celso Amorim autoriza nossa representação em Honduras a hospedar a vítima do golpe. E se Zelaya for amigo de Hugo Chávez, e se ele próprio curtir um sonho bolivariano, o que isso muda?

Observe-se que Lula tomou em relação a Chávez, e às suas particulares reminiscências e evocações de Simón Bolívar, comportamentos cautelosos. Astutos, até. O presidente do Brasil fia-se, com toda razão, nas perspectivas do futuro e na realidade do presente, e sabe que qualquer desenho chavista não atinge o País.

Que esperar da mídia nativa? É sintomático seu passadismo. Simbólico. E nada mais representativo do atraso de quem no Brasil se instala no topo da pirâmide do que a revista Veja, ‘última flor do Fascio’, segundo o já citado Paulo Henrique. Sintomática a sua larga tiragem, a apinhar a entrada dos espigões burgueses. A não ser que seja encarada como manifestação da vocação humorística verde-amarela. A última edição da revista da Abril supera os momentos mais inspirados da célebre Mad. O mundo se curva.

Fiquei em dúvida. Trata-se de interpretação satírica, ou de acusação ao vivo e a sério? De quem seria o imperialismo megalonanico do sinistro passarinho dentuço apresentado na capa da última edição se não o do Brasil de Lula? Tadinho, recém-saído do ovo… Se a metáfora não resulta de uma irresistível veia cômica, onde se abrigaria? Na embaixada brasileira em Tegucigalpa?

E no outro dia Paulo Henrique me disse que o PIG está na mão de três famílias: Marinho, Frias e Mesquita. Surpresa: Mesquita? Respondeu: ‘Arrendaram a fazenda para ficar com a casa-grande’. Voltei à carga: ‘E os Civita?’ Sentenciou: ‘Detrito da maré baixa’.’

 

Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa

Lendas urbanas sobre Honduras

‘O discurso de colunistas na mídia conservadora recorre a argumentos pseudojurídicos para defender o golpe hondurenho como uma ‘destituição legal’, praticamente os mesmos usados na mesma mídia para defender a ditadura militar em 1964. Convém repassá-los, por absurdos que sejam.

Zelaya queria manter-se indefinidamente no poder.

O presidente planejava uma consulta sobre a celebração de um referendo a respeito de uma Constituinte juntamente com a eleição de seu sucessor. Se o resultado da consulta fosse positivo, serviria apenas como argumento em favor do referendo ante o Legislativo. Se o Congresso cedesse e o resultado do referendo fosse positivo, a Constituinte seria eleita no próximo governo e, mesmo que aprovasse a reeleição, Zelaya só poderia se candidatar em 2014.

Zelaya incorreu no artigo 239 da Constituição de 1982, que cassa o mandato e os direitos políticos, por dez anos, de quem propor reeleição.

O presidente não incorreu no artigo 239. Não propôs reeleição e sim um referendo sobre uma ampla Constituinte. Já Micheletti, deputado em 1985, propôs expressamente uma reforma constitucional para prorrogar o mandato do então presidente Roberto Suazo. Desistiu por pressão dos militares, mas nem ele nem Suazo foram punidos.

A deposição de Zelaya foi legal e regular.

Pelo artigo 313 da Constituição, a Suprema Corte tem jurisdição para processar e julgar o presidente, mas se cabia processo por abuso de autoridade por tentar rea-lizar uma pesquisa de opinião sem autorização legal, teria de ser dentro de procedimentos legais com direito de defesa e contraditório (art. 82). Não foi assim: na madrugada do domingo da consulta, os militares invadiram o palácio e expatriaram o presidente, o que é expressamente proibido pela Constituição (art. 102). A ordem de prisão apareceu depois do fato consumado, embora o procurador-geral e um dos juízes da Corte alegassem tê-la emitido e aprovado em segredo, na sexta-feira. Se fosse regular, deveria ser executa-da pela polícia, depois das 6 da manhã.

Os processos por suposta corrupção contra o presidente e integrantes de sua equipe foram abertos depois da expulsão, sem possibilidade de defesa. Ao compactuarem com tais ilegalidades, Congresso e Corte cometeram violações da Constituição muito mais graves que Zelaya. Nenhum governo reconheceu o golpe como legal – nem mesmo EUA, Israel e Taiwan, apesar de manterem seus embaixadores.

A Suprema Corte de Honduras é isenta e apartidária.

Antes do golpe, a comissão de direitos humanos da OEA já criticava Honduras pela falta de um Judiciário ‘independente e eficaz’. Larry Birns, diretor do instituto Council on Hemispheric Affairs, a classifica como ‘uma das instituições mais corruptas da América Latina’.

A opinião pública hondurenha é contrária a Zelaya.

Pesquisa Gallup dias após o golpe (30 de junho a 4 de julho) mostrou que 46% dos hondurenhos tinham opinião favorável a Zelaya e 44% desfavorável. Micheletti tinha 30% a seu favor e 49% contra. Outro indício de popularidade é que quatro candidatos que apoiaram o golpe foram à embaixada brasileira e se fizeram fotografar abraçando o presidente.

O Congresso hondurenho ratificou a destituição.

O Legislativo hondurenho não tem jurisdição sobre o assunto: a Constituição não prevê o impeachment, e a própria Suprema Corte julgou, em 2003, que o Congresso não tem o poder de interpretar a Constituição.

Hospedar Zelaya deflagrou a violência em um país que estava tranquilo.

Até meados de agosto, o G-16 (dos países que prestam ajuda a Honduras) contava oficialmente sete mortos, dezenas de presos e torturados e centenas de feridos (inclusive à bala) pelo regime Micheletti, que o Comitê de Defesa dos Direitos Humanos responsabilizava por um total de 101 mortes e execuções extralegais durante toques de recolher. A CIDH da OEA recebeu informes de centenas de detenções irregulares e ameaças e agressões a juízes que deram habeas corpus a manifestantes e oposicionistas detidos pelo regime. A presença de Zelaya apenas chamou a atenção da mídia e da comunidade internacional para o problema e forçou a ditadura a negociar.

O Brasil expôs o território nacional à invasão de Honduras ao hospedar Zelaya.

A embaixada é parte do território do país- onde está localizado e não do país que representa, embora convenções internacionais resguardem sua imunidade de jurisdição, inclusive ante ações policiais e mandados de prisão.’

 

ROBERT CRUMB
Rosane Pavam

Diante desse deus

‘Chegava a hora de falar com deus. Deram-me seu telefone de Paris, onde naquele dia, 29 de setembro de 2009, ele já respondera a jornalistas de todo o mundo, convidados à coletiva sobre seu aguardado livro Gênesis.

Não era fácil, mas parecia necessário arriscar-se a alcançar Robert Crumb, expressão máxima dos quadrinhos, ao lado do também americano Will Eisner, que eu entrevistara duas vezes nos longínquos anos 90. Não esperava que Crumb me respondesse, o que secretamente me confortava, presa que estava à redação da revista e à necessidade de elaborar um texto para as páginas abertas (leia aqui). Eu não queria falar com ele, ou simplesmente o temesse como ao ser supremo, sabe-se lá quem esse cara seja.

Crumb é imprevisível, pode atender ao telefone ou não, avisou-me seu editor brasileiro. Mas, naquele dia, o deus sobre a terra estava pronto. Ele falou primeiro, esperou e respondeu. Vivi o temor. O tremor da musculatura, a confusão dos nervos. Eu nem sabia por onde começar. O que perguntar a deus?

Ele é mais vigoroso e juvenil ao telefone do que me pareceu Eisner quando o entrevistei pela primeira vez, com setenta anos talvez, habitante da Flórida por pressão da mulher. Crumb tem 66 e mora no sul da França há 16, também por pressão da mulher.

O homem é irreverente, a voz mais jovem do que a idade lhe dá, mas também respeitoso, com toda a paciência para a dificuldade da interlocutora em chegar ao ponto com ele. A qualquer ponto. Neil Gaiman, polido em suposto, só pensara naquele restaurante de Parati em emanar sua musculatura de escritor. Se isto vale alguma coisa, o britânico não me convenceu. E pouco se importou com isso, claro. Ele tem segredos.

Crumb, não sendo Gaiman, dispensou ser sofisticado ao falar, já que desejava falar. Foi extremamente gentil e colaborativo por quase uma hora de conversa. Não elaborou teses. Respondeu sim ou não, contou um caso, riu um ‘rá’, expulsando ocasionalmente da garganta um diabinho irônico e feliz.

Às vezes só disse ‘yeah’, ‘good’, ‘that’s good’, com o sotaque tão americano tanto possível. Perguntei se apreciava os quadrinhos autobiográficos que ganharam o mundo a partir dele. Não inventei isso, lembra. E eu insisto que explique melhor por que os autobiográficos são tão bons. Ele parece achar estranho, esforça-se, alonga-se. Não é importante que o desenho seja bom neste caso, começa. As palavras são mais importantes. Penso ter sido jornalista e achado a frase.

O que ele reverencia em Gênesis são também suas palavras, não importa quão incoerentes, reiterativas, pleonásticas se pareçam. Quando Robert Crumb lhes dá sua qualidade gráfica, ele o faz com toda a ousadia, mas também com tranqüilidade. Não transparece receio.

As meninas são fornidas. As escravas, um pouco menos. Mulheres bonitas, mulheres de Crumb, rostos resolvidos. Às vezes invejosos, como os de Sara. Os homens, pelo contrário, estão permanentemente assustados com a presença de Deus, esse ser incoerente, cheio de ira. Os da tribo são respeitosos por pânico, diz-nos o artista, que escreve enquanto desenha. Tudo simples, direto, sem medos ou cinzas.

É por isso, percebo, que sempre amei a arte de Robert Crumb como a maior entre todas as tentativas de fazer do quadrinho a coisa certa. De um assunto complexo como a Bíblia, o livro mais amado e pouco conhecido nestas trevas, ele tira apenas a direção retilínea, descarnada, à moda de um bom professor. Sem se importar que não o compreendam, sabendo que fez o melhor possível, com todo o cálculo. A seguir, a entrevista.

Antes de ilustrar o Gênesis, sua intenção era refazer a história de Adão e Eva. Por que mudou de ideia?

Enquanto eu lia sobre a história de Adão e Eva, percorri o Livro do Gênesis muito detalhadamente. Pesquisei sobre os antigos na Mesopotâmia e na Suméria. E, ao fim, todas as histórias se ligavam de alguma forma ao Gênesis. Achei então que, melhor do que fazer uma história em torno de Adão e Eva, seria ilustrar, apenas, o grande livro. Com o Gênesis, minha intenção era manter as palavras, não matá-las.

E você abdicou de suas próprias palavras, usualmente muito bem conduzidas dentro dos quadrinhos. Um leitor poderá sentir falta delas. Você já pensou em um dia escrever romances?

Nunca. Sempre caminhei pela ilustração e o cartum. Nunca nem tentei começar uma ficção só usando palavras.

Você acredita em Deus?

Não sou religioso. Mas fui criado no catolicismo. Em escola católica, de freiras e irmãs. Acredito que, quando criança, não tinha razões para desacreditar no que me contavam. Por volta de 15, 16 anos, comecei a fazer meus questionamentos. Rapidamente rompi com o catolicismo depois que comecei a questioná-lo. E passei a estudar outras idéias sobre o assunto, sobre as coisas chocantes que não lhe contam sobre a Igreja, sobre o comportamento dos papas. Especialmente na Idade Média, comportavam-se muito mal. Ainda se comportam.

Parei de me confessar aos 16 anos. Nunca mais me tornei membro de uma igreja estabelecida ou de uma religião. Não sigo qualquer doutrina religiosa, de maneira alguma. Contudo, ainda me sinto muito interessado pela procura espiritual, mas de uma maneira mais ligada ao intelecto.

Eu certamente acredito que existe uma força que move nossos destinos. Maior do que nós. Não sabemos o que é. É grande demais para que nós tenhamos qualquer chance de saber do que se trata.

Mas é interessante estudar, perguntar-se, imaginar o que ela poderia ser. Eu pessoalmente não acho que alguém vá encontrar inspiração no Gênesis. As histórias são boas, mas como guia espiritual ou moral, não servem. Você terá problemas se ler o livro com essa intenção! É primitivo. A moral é tribal. Existe um plano. E o cara se sente honrado em segui-lo. Deus nos deu essa terra, essa terra pertence a nós, toda essa história…

Contudo, procurei sempre ilustrar o que está no texto. Ló fez sexo com suas duas filhas, coisa muito estranha. Isto está escrito e eu desenhei. Eu evitei ser cômico, lúbrico, sensual, explícito. Se as pessoas se sentirem ofendidas com o que virem, problema delas. Não podemos agradar a todos. Especialmente pessoas seriamente religiosas. Não posso ajudá-las.

Às vezes o texto não descrevia exatamente o que estava acontecendo. E então inventei o que ilustrar, até certo ponto. A cena diz: ‘Antes que Deus decidisse destruir a raça humana… Porque ele viu o mal no coração do homem.’ Mas o que ele viu? Que mal o homem fez? Então eu tinha de mostrar que mal esse homem estava fazendo. Eu não estava indo contra o texto, porque o texto me deixava livre para imaginar que mal seria esse. Mas se o texto dissesse que os personagens se deitavam no chão, sim, eu os deitava no chão. Pessoas fazendo sexo, sim, eu desenhei.

Seu Deus é tradicional, um velho homem barbudo. Foi assim que ele se apresentou em seu sonho?

No meu sonho de 2000 ele era muito mais complexo. Mas eu decidi desenhá-lo velho, de longas barbas e severo, com a face do patriarca. E o fiz homem porque assim ele é descrito _ Ele, segundo o texto bíblico. Tudo isto partiu dos hebreus. Eu até pensei em fazê-lo mais judeu… em uma segunda leitura, havia mais componentes africanos… A história toda pertence à tradição semita. A europeia faz Deus com os cabelos loiros. Então decidi desenhá-lo de cabelos mais escuros, na tradição semítica.

Esse Deus que você viu no sonho não seria apenas você?

Eu? Bem, tudo o que aparece nos sonhos remete a alguma parte de nós mesmos. Pelo menos é o que dizem. Mas a imagem do sonho, tão vívida, definitivamente não pertencia a mim, estava do lado de fora. A verdade é que ele entrou em mim, falando comigo de alguma forma. Mas eu só fui capaz de visualizar essa criatura. Sua face era muito severa. E também repleta de ira. Um deus muito velho, com barba. O deus do Gênesis é o da justiça. Não é bonitinho, nem especialmente amigável.

Tudo parece muito respeitoso sob este aspecto para que alguém se incomode com suas ilustrações.

Eu imagino que os fundamentalistas, especialmente alguns judeus ortodoxos, se sentirão muito incomodados. Porque, segundo eles, não se pode ver a face de Deus, de forma alguma.

Talvez estejamos vivendo um momento especialmente de trevas, em que a liberdade de ação ou de pensamento pareça indesejável a grande parte das pessoas.

Concordo. Vivemos um momento obscuro.

Nunca lhe interessou desenhar o Novo Testamento?

Sempre me interessou o Gênesis. E a história do Novo Testamento apresenta algumas dificuldades para ser contada. Você tem de escolher uma entre as quatro versões de Mateus, Marcos, Lucas ou João. Não há como narrá-las todas. Ou então é preciso encontrar uma maneira de extrair as histórias interessantes e seguir com elas. Isto seria o que eu faria, provavelmente. Mas Chester Brown já contou essas história, e muito bem, em suas leituras dos evangelhos de Marcos e Mateus.

Você é visto como alguém nostálgico, ligado ao passado, aos primeiros anos americanos, à arte e à ação dos anos 60. Mas se vê pessoalmente assim?

Talvez eu me veja mais como um cultural carrier, trazendo coisas do passado que valem continuamente no presente. Nós não podemos simplesmente apagar o passado. Meu estilo de desenhar é muito tradicional. Uma velha maneira de ilustrar. Não penso que deva inovar nisso. Não acho que seja necessário.

Também não acho que a tecnologia seja a melhor coisa do mundo. Acho que temos de ser muito cuidadosos em relação a ela. Usar a tecnologia é uma coisa, mas depender das máquinas para tudo talvez não seja a melhor ideia. Voltar-se intimamente à natureza, talvez. Isto veio dos anos 60. Ser mais respeitoso com a terra, com o ambiente, abrindo mão de um materialismo. O amor à riqueza material veio dos anos 80 americanos.

Concordo com muito daquilo que houve nos anos 60. Questionar a autoridade era uma das coisas que se fazia então. Não aceitar o que vem do poder, do governo, da economia, da propaganda, questionar tudo isso seriamente – nós fazíamos isso nos anos 60. Mas coisas ruins também partiram de lá, como pisar fundo no álcool ou nas drogas.

Você já pensou em se voltar solitariamente à natureza, para uma vida recolhida, em que possa reverenciá-la?

Não é possível viver junto à natureza sozinho. Bem, há pessoas que conseguem viver ainda sozinhas ou em comunidades, seguindo seus ideais. Mas eu não consigo. Admiro quem consiga, mas a maioria, como eu, não se sente capaz.

Trabalhar a partir do Gênesis teria essa intenção de mostrar como é duro viver em sociedade, conviver com o outro, lutar contra as adversidades? Você, ao ilustrar o livro, tinha um propósito de combater os obscurantismos?

Não sei. Acho que minha ideia era expor a Bíblia. Muitas das histórias são tremendamente poderosas. As pessoas hoje em dia não são muito próximas dessa leitura. O texto é difícil de enfrentar. As pessoas põem a Bíblia para dormir. Ilustrando-a agora, ela volta à evidência. É uma parte importante de toda a cultura ocidental. Da cultura cristã, judaica e até mesmo islâmica.

Estou mostrando cada palavra do Gênesis. Esta é a parte mais importante do trabalho. Não há lições morais que possam ser apreendidas dali. São histórias profundas, mas para as pessoas de hoje eu não penso que possam servir. A moral é muito velha, tribal.

Seu Noé planta videiras. Você bebe vinho hoje, na França?

Já bebi, mas parei com o álcool há muitos anos, quinze ou dezesseis. Estou numa fase sóbria, sabe.

E tem lido bastante?

Mais do que já li em toda a minha vida. Tem muita coisa que eu quero saber. Encomendo livros pela internet. Não uso diretamente o computador, mas minha mulher sim. E minha secretária pega as coisas de que preciso na rede. Os sites que expõem o que está acontecendo, sobre o qual não somos informados e não nos damos conta. Como o Media Democracy. Leio textos de jornalismo investigativo, numa tentativa de saber o que permanece escondido de nós. Eu raramente escolho poesia, romances. Gosto de história, de investigação.

E os quadrinhos?

Alguma coisa de quadrinhos, também. O site Top of My Head traz muitas informações. O livro Stitches, de David Small, que saiu agora nos Estados Unidos, é sensacional, a história autobiográfica de um garoto com câncer na Detroit dos anos 50.

Você percebe esse aumento no número de livros de HQ que contam uma trajetória pessoal, dando-lhe um contexto histórico?

Sim. As autobiografias são uma ótima coisa para os quadrinhos, por esta razão histórica. Mesmo que os desenhos não sejam incríveis, as histórias são interessantes. As histórias importam mais do que a qualidade do desenho. A primeira mulher a fazer histórias autobiográficas foi minha mulher, Aline Kominsky. E o primeiro homem não fui eu, foi Justin Green, um americano da minha geração. Quando comecei a fazer quadrinhos autobiográficos, eles me pareciam necessários, mas não eram absolutamente fáceis de fazer.

Já leu um livro brasileiro?

Nunca, mas me interessa a música brasileira antiga. Todos os estilos dos anos 20 e 30, os 78 rotações. Não há nada por aqui, alguém tem de me trazer essas coisas do Brasil… Não sei de nomes especiais que me interessem, já que eu me interesso por muitos deles.

Pixinguinha, talvez?

Sim, Pixinguinha, esse! É muito bom. Diga a seus leitores que eu desejaria conhecer os 78 rotações de antes da Segunda Guerra Mundial…

Já esteve no Brasil?

Fui convidado para festivais de quadrinhos, essas coisas, mas nunca estive no Brasil. Gostaria de ir para lá algum dia, deus sabe quando.

Conhece alguma coisa da política brasileira? De o presidente americano Barack Obama, por exemplo, ter dito ao presidente brasileiro que ele era ‘o cara’?

Não, nunca ouvi falar disso.

Você continua a procurar por discos de 78 rotações para sua coleção?

Sim, e não faço isso pela internet. Faço caminhando, pelos mercados de pulga parisienses ou de outros lugares. Ainda estou atrás de música interessante da França, dos Estados Unidos, de toda parte. A música de Madagascar é maravilhosa. A do Norte da África, da Argélia, do Marrocos, do Egito, grande música. Da Índia, tão estranha no início. É uma musicalidade totalmente diferente da americana, pela qual não procuro mais. Há grande música em toda parte, como na Indonésia. Música grega, armênia, suíça.

Você compõe música?

Não componho, só toco. Não sou um músico muito desenvolvido, sou muito simples. Um estilo nada especial. Não é meu talento principal o de tocar música.

Você gosta do que Woody Allen faz musicalmente?

Eu gosto de alguns dos filmes de Woody Allen, mas não de sua música.

E não desenho mais a partir de temas musicais, como fiz em Blues. Meu próximo projeto será em colaboração com minha mulher, Aline. Mas não sei ainda exatamente o quê. Provavelmente algo relacionado a nossas vidas. Não será religião. Não penso que eu vá voltar a isso. Acho que já tive o suficiente da Bíblia nos quatro anos em que desenhei o Gênesis.

Tem algum plano de voltar a morar nos Estados Unidos?

Provavelmente nunca mais retorne aos EUA. Vou para lá agora, mas somente por um mês. E meu neto pode nascer a qualquer momento. É o filho de minha filha. Não faço qualquer ideia do que signifique ser avô.

Você gostaria de dizer alguma coisa mais aos leitores brasileiros?

Questione a autoridade. Fique longe da minha filha e das drogas.’

 

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