Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Carta Capital


MÍDIA & POLÍTICA
Mino Carta


Que diria Raymundo Faoro?


‘Que diria Raymundo Faoro desta hora brasileira? Dirijo a pergunta aos meus
nostálgicos botões ao ser lançado pela Editora Globo um livro que reúne
entrevistas do grande pensador. O momento da publicação não foi escolhido por
acaso, estamos no fim do ano do cinqüentenário da primeira edição de Os Donos do
Poder pela mesma editora. Obra-prima de Faoro, chave definitiva para entendermos
o Brasil e a nós mesmos.


Intitulado A Democracia Traída, organizado por Mauricio Dias, por longos anos
ligado a Faoro pela admiração e pelo afeto, e prefaciado pelo acima assinado, o
livro coleta quinze entrevistas de Faoro a equipes que dirigi entre 1979 e 2002,
as sete últimas em CartaCapital.


O título resume o pensamento que perpassa e sustenta a fala do entrevistado,
alicerçada no ceticismo e temperada pela ironia. Trata-se da demonstração,
inexorável, arrisco-me a dizer, do teorema do Hércules-Quasímodo, ser
contraditório, patético na sua ambigüidade, destinado a semideus e condenado a
Corcunda de Notre Dame.


É a condição de um país excepcionalmente favorecido pela natureza e entregue
até hoje às vontades e artimanhas de uma elite feroz. Em pouco mais de duas
décadas, ao longo das entrevistas que se tornaram tradição nas nossas redações e
nas nossas vidas, Faoro denuncia, como escreve Mauricio Dias, uma negociação
política ‘realizada segundo os princípios daquelas transações que resultam
sempre na frustração dos movimentos sociais e na conseqüente traição da
democracia’.


Resultado: ‘A anistia para os torturados implicou absolvição para os
torturadores’ e a campanha das Diretas Já conduziu ‘à eleição indireta e
desdobrou-se a seguir na vitória de um rebento do regime popular’. São os
efeitos da eterna conciliação oligárquica, boa parte antecipados nas
entrevistas, o que me levou a batizar Faoro de O Profeta.


Ele, obviamente, esquivou-se. Não fugiu, porém, à explicação. ‘O profeta –
disse no dia 6 de dezembro de 2000 -, não é exatamente quem prevê coisas. Isso é
uma tradição tardia na história do judaísmo. Profeta é a pessoa que tem uma
mensagem e que vem para dizer alguma coisa, é esse o sentido original da
palavra. E que vem, inclusive, para fazer a crítica.’ Como se vê, não me
enganei.


E ele foi, desde sua saída da presidência da OAB, meu conselheiro, mentor e
guia, além do amigo de todas as horas. E foi, estou certo disso, para todos nós
que aportamos à CartaCapital, depois de passar por IstoÉ, pelo Jornal da
República, por Senhor, por IstoÉ Senhor, por IstoÉ segunda fase. Agora nos faz
aquele gênero de falta que não é possível preencher.


Volta e meia me ocorre imaginar o que ele diria diante de cada circunstância.
A última vez em que pude interrogá-lo foi no começo de 2003. Conto no prefácio:
‘Quando finalmente Lula se elegeu, no segundo turno do pleito de 2002, Raymundo
já estava no hospital, do qual só sairia para o enterro, em abril do ano
seguinte. Ficou emocionado com a vitória do seu candidato, disse estar com sorte
ao participar de um momento que já perdera a esperança de viver. Mas em
fevereiro de 2003 manifestava algumas dúvidas quanto aos primeiros passos do
novo governo’.


E que diria hoje, quando o bastião do Estado de Direito atende pelo nome de
Gilmar Mendes? Ou quando o Banco Central do senhor Meirelles mantém os juros na
estratosfera enquanto os Estados Unidos praticamente os zeram? Ou quando a
maioria dos brasileiros apóia incondicionalmente o presidente Lula, mas quem
manda ainda é a minoria branca? Ou quando já sabemos que em 2010 não será eleito
outro torneiro mecânico? Etc. etc. e etc.


Creio que o profeta-mensageiro registraria o resultado de suas mensagens. Em
1998 dizia: ‘O eventual governo Lula não será revolucionário, a idéia da
revolução já está banida da cabeça dele’. E em maio de 2002, ao acreditar na
possibilidade da vitória de Lula: ‘O PT poderia mudar a orientação histórica do
País, que é um país de exploração, o pobre é cada vez mais pobre. Lula
significaria a vitória de uma camada contra a outra. Governar, porém, contra as
pessoas que no Brasil estão por cima é quase temerário. Por outro lado, se Lula
for eleito e contemporizar (…) passará a ser um governante como os outros.
Essa mudança é o passo mais difícil de ser dado’.


Democracia, dizia Faoro, é igualdade e distribuição de renda, metas ainda
distantes no Brasil de hoje. Por isso entendia que o confronto entre direita e
esquerda justifica-se plenamente neste país cujo Estado é por fazer, nesta
República inacabada.’


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