QUERIDOS AMIGOS
As farpas da memória, 15/2
‘A geração anos 60 – que Maria Adelaide Amaral vai revisitar no seriado Queridos Amigos (Globo, a partir da segunda-feira 18) – quis reinventar a alegria, ao mesmo tempo que se debruçava, com olheiras existencialistas e Albert Camus na algibeira, sobre o dilema moral do suicídio.
Viveu a balada saltitante do sexo, droga e rock-n´-roll sem se desgrudar daquelas sessões de melancolia palavrosa de Jean-Luc Godard. Mergulhou na vertigem da revolução, mas não perdeu a ternura, jamás.
Contradição? Incoerência? Olhando para trás, dá para perceber que o melhor dos anos 60 foi ter instaurado a liberdade da interrogação. Contra o sim cretino e asfixiante de quem só tem certezas, o quem-sabe dialético que faz da dúvida o cenário de mil aventuras e mil descobertas.
É um perigo lidar com aquela época de paixões à flor da pele e Maria Adelaide – que teve ali seus anos de formação – é a primeira a saber das armadilhas que a espreitam. No romance Aos Meus Amigos, de 1992, ela já ensaiou o resgate amoroso de uma era que, se foi desabrida demais no desfrute dos prazeres momentâneos, também foi generosa o bastante para acreditar na grandeza da condição humana.
Maria Adelaide escreveu um seriado respeitoso sobre Juscelino Kubitschek – um JK caloroso, político tolerante, homem de convicção, muito distante daquele JK retratado nas páginas rancorosas
e sempre interesseiras de O Globo. Foi uma atitude desassombrada de Maria Adelaide, sabendo-se que são os herdeiros do Dr. Roberto Marinho que lhe pagam hoje seu salário.
Existe um punhado de desiludidos da política, por aí afora. Fernando Gabeira – que votou no Severino Cavalcanti para a presidência da Câmara – diz que é um deles. Chico Alencar – homem de bem e político de caráter – também se inclui nessa categoria.É bom a gente dar um desconto. Há desiludidos e desiludidos.
Muita gente, com cinismo premeditado, se diz desencantada para reiterar um ponto: o de que o governo Lula, que semeou esperanças, traiu nossos ideais. Basta ver o que pensa a própria Globo: ela adoraria provar que não passa de encantadora fumaça de tolice aquilo que a geração 60 viveu. A família Globo nunca levantou vôo. Sempre representou, em qualquer década, aquele pragmatismo chão e interesseiro.
Maria Adelaide não vai cair nessa esparrela. Ela sabe que só pode se sentir iludido quem teve de fato ilusão. Ilusão é que nem fracasso amoroso. Quem a teve costuma guardá-la para si, no cofre de suas frustrações íntimas. Esta coluna tem certa de que a sagaz, delicada Adelaide jamais fará do desencontro da utopia com a realidade o estandarte de alguma hipocrisia política.’
GERO CAMILO
A desforra do antigalã, 15/2
‘Em 2007, o ator Gero Camilo foi convidado a participar de uma novela em célebre rede nacional de televisão. Esteve propenso a topar, mas impôs uma condição. Iria se o seu personagem pudesse ocupar o posto de um dos galãs da trama.
A exigência apoiava-se no forte cacife que ele acumulou nos últimos anos. Com a tarimba de um dos mais completos atores brasileiros atuais, Gero vinha de carreira vitoriosa da peça teatral Aldeotas, da qual é também autor e que está em cartaz há quase quatro anos (a atual temporada, no Tuca de São Paulo, termina em 9 de março). E da atuação em filmes emblemáticos da produção nacional dos anos 2000, como Bicho de Sete Cabeças, Cidade de Deus e Madame Satã, e até de uma passagem-relâmpago por Hollywood.
´Na novela, faria par romântico com uma atriz conhecida do teatro, no núcleo pobrinho, da periferia. Disse que topava se a pessoa que escrevia fosse capaz de criar um casal romântico, com cenas de amor iguais à de todos os casais estereotipados das novelas. Nunca mais me ligaram´, conta.
É que o ator de 37 anos é dono de um tipo físico excêntrico aos padrões televisivos para heróis e mocinhos. Mesmo no cinema, tem interpretado personagens que, embora fortes e marcantes, encaixam-se em categorias demarcadas como a do sertanejo Firmino, de Narradores de Javé (2002), ou do presidiário Sem Chance, de Carandiru (2003). `Já recusei mais filmes do que fiz´, observa. `Alguns não quis fazer porque eram papéis muito vinculados ao estereótipo do nordestino ou do louquinho. Acho que é o índio que há em mim que não quer sua imagem explorada tão facilmente e acha o espelho estranho.´
Descendente mestiço de índios, africanos, portugueses e holandeses, ele nasceu em Fortaleza, de pais egressos de Acopiara, interior cearense. O ambiente de origem é transposto, de modo livre e direto, ao cenário e ao enredo de Aldeotas, um mergulho profundo em temas universais como a amizade, a migração, a sede por informação, o exílio, as separações e rupturas colecionadas na fuga da periferia para o centro. Quem o acompanha no palco atualmente é Caco Ciocler, egresso como ele da Escola de Arte Dramática da USP, mas também um quase-galã televisivo. No palco, Gero é o protagonista, o garoto sonhador que ganha o mundo em busca de poesia e sobrevivência. Caco lhe faz escada generosa, como o amigo que impulsiona a migração do outro, mas não tem o ímpeto de partir.
´Já na EAD eu sabia que não ia ficar com os pequenos papéis nem viver de vínculo empregatício. Então o que resolvi fazer na minha vida? Montar as minhas próprias coisas´, afirma Gero. Aí talvez se encontre uma das razões para o êxito de Aldeotas. Ele fala sobre suas aldeotas de origem: `Minha mãe é costureira, meu pai é caminhoneiro. Hoje entendo mais as profissões deles em relação às minhas escolhas. Ele é o homem que fez a estrada, ela é a mulher que dá o ponto no botão´. Ou, em outros termos: `Meu pai é filósofo. Minha mãe é artista, foi ela quem fez meu figurino em Aldeotas´.
Fruto dessa mistura é um brasileiro típico, `comum´, aquele que nem Globo nem Hollywood gostam de espelhar como modelo desejável ou copiável. Mas, na trajetória de Gero, padrões e estigmas são ao mesmo tempo obedecidos e desafiados. Em Carandiru, por exemplo, ele e o galã Rodrigo Santoro interpretaram excêntrico par romântico, Camilo como o bandido Sem Chance, Santoro como o travesti Lady Di. Foi por causa do marginal Paraíba, de Cidade de Deus (2002), que foi atraído a Hollywood, pelas mãos de Tony Scott, diretor de blockbusters como Ases Indomáveis (1986). `Ele adora o filme, andava com ele no set. Conversei sobre Cidade de Deus com Denzel Washington e Mickey Rourke, era referência total.´ O resultado, no entanto, é um previsível filme hollywoodiano de ação, Chamas da Vingança (2004), de que o próprio Gero não demonstra ser grande admirador.
´A experiência foi ótima. Foi o que me sustentou durante muito tempo, me permitiu morar, produzir coisas independentes. Mas é um cardápio muito específico, de filmes pensados e direcionados para o público que vai ver, como novela de tevê´, avalia. Mais ou menos estigmatizados, personagens como o seqüestrador mexicano de Chamas da Vingança ou Ceará, o interno de hospital psiquiátrico em Bicho de Sete Cabeças, distanciam-se em anos-luz de outras de suas origens. Em Fortaleza, ele militara na Teologia da Libertação e, sob codinome, na organização clandestina de esquerda Juventude Venceremos, braço do Partido da Libertação Proletária (PLP). `Eu ia ser padre. Foi na Igreja que estudei marxismo e li o Manifesto do Partido Comunista. As comunidades eclesiais de base foram meu primeiro palco. Dei aulas antes de receber.´
A Igreja lhe abriu acesso ao movimento estudantil cearense. `Fizemos a maior greve de estudantes, invadimos prédios públicos. Já invadi muito. Invadi reitoria antes de ser universitário. Tomei porrada da polícia em manifestação contra a UDR´, lembra. Nos dois casos, desertou antes da filiação oficial. `Meus problemas com a Igreja eram hierárquicos. (O futuro papa) Ratzinger era um problema na minha espiritualidade, ele já calava os teólogos da libertação. Eu questionava muito, por que não pode pôr tambor na missa? Por que não pode dançar na celebração? Por que a homossexualidade não tem uma teologia que a celebre? Sabia que, se entrasse, talvez fosse expulso depois.´
Sobre a militância política, lembra-se da reunião de filiação ao PLP: `Uma das perguntas que fizeram foi sobre minha sexualidade. Era época da Aids, dos grupos de risco, ‘como é para você a história da Aids?´ Respondi: `Você é um revolucionário, não é? Você sabe que pode morrer nessa revolução, não sabe? Tá respondido´. Desistiu do partido, mudou-se para estudar teatro na então odiada `capital do capitalismo selvagem´.
Sobre a militância religiosa, diz que não é autobiográfica a cena de Aldeotas em que o personagem adolescente conta ter sofrido abuso sexual por religiosos. `Nunca fui bolinado por um padre, não sem querer´, provoca.
Sobre a adesão posterior à cultura e ao teatro, tampouco a trata como uma filiação. `A cultura me revolta muito, como bem comum ou público, em relação a acesso, preço, elitismo. Às vezes, me sinto contra estruturas do próprio teatro.´ Autor independente de um livro publicado (A Macaúba da Terra, 2002) e de um CD recém-lançado (Canções de Inverno), Gero relata, a título de exemplo, o contato travado com o mundo editorial. Tentou edição pela Companhia das Letras, que teve, segundo ele, dificuldades em classificar os originais por gênero literário. `Um, não quiseram porque era de poesia. Outro, porque era teatro. Disseram que por princípio não publicam teatro. Escrevi uma carta, convidando o senhor Luiz Schwarcz a ver Aldeotas. Disse que gênero literário é perfumaria para a elite brasileira.´
Anti-herói na Globo ou em Hollywood, mas galã auto-empossado em Aldeotas ou na carta ao editor, Gero Camilo aceita o desafio de emitir um recado derradeiro, entrevista já concluída. `Sempre me falam que sou múlti, mas a mídia é que é. Eu sou um só. A sociedade fragmentou nossos desejos, nos esfacelou. Ser multitalentoso está em todo ser humano´, diz o filho de costureira com caminhoneiro, ou, se preferir, de artista com filósofo.’
MUTAÇÃO CULTURAL
O Cognitariado está chegando! Quê?, 15/2
‘O que está por trás dessa recente conversão das TVs abertas em `defensoras do conteúdo brasileiro contra a pirataria´? Afinal de contas, a melhor defesa desses conteúdos seria exibir nossos filmes, vídeos, a produção independente na TV aberta comercial, de forma sistemática.
Mas não passam! E aí tome fechar rádios livres, criminalizar ou tirar do ar vídeos do You Tube, perseguir hackers e camelôs, se apropriarem do que é produzido livremente nos blogs e redes. Fenômenos que provam que é possível novas formas de produção, consumo e distribuição das informações e imagens. E que estão deixando a mídia tradicional desnorteada, pois não sabem como lidar com os novos `prossumidores´ (neologismo para o consumidor ativo, que produz).
Nas campanhas da TV contra a pirataria (DVD pirata, software pirata, rádio pirata!!!) , na novela das oito, nos editoriais, a mídia tenta angariar simpatia dos criadores e produtores de cultura, supostamente `lesados´ em seus direitos autorais, com uma estratégia bem pouco inteligente, que se recusa discutir o que tem que ser discutido: a crise estrutural do capitalismo da exclusividade e da restrição da produção e circulação de bens culturais, que de `escassos e caros´ agora podem ser produzidos e reproduzidos aos milhares em DVDs, CDs, MP3, MP4, digital.
É que estamos no meio de uma mutação cultural, emergência de uma Cultura Livre dentro do próprio `capitalismo cognitivo´, com ativistas no mundo todo trabalhando pelo barateamento cada vez maior dos meios de produção cultural e o fortalecimento das trocas e redes colaborativas.
Camelôs, artistas, estudantes, programadores, profissionais da informação, designers, formam o novo `precariado´, ou melhor, o novo `cognitariado´, pois trabalham com a produção `imaterial´ e difusão de conhecimentos, um valor que pode ser partilhado pela multidão, por qualquer um.
Esse cognitariado aumenta a sua produtividade social passando por cima da legalidade burra. A legalidade improdutiva, que impede a explosão da produção social, em qualquer área. Que quer barrar os fluxos, com licenças, senhas, bloqueadores que impedem o rio-corrente das informações, tecnologias, invenções.
Mas como criminalizar downloads de música quando milhares de Ipods são distribuídos em palito de picolé? Com zilhões de gravadores e duplicadores de DVDs e CDs, câmeras na mão de cada vez mais gente? Quem vai pagar R$ 50 reais quando um CD ou DVD virgem custa centavos?
A crise do direito autoral é a crise do capitalismo privatista. É só pesquisar as novas formas flexíveis de direito autoral que vão do `todos os direitos reservados´ até o copyleft (o contrário do copyright) que libera radicalmente os direitos para seu uso livre, para perceber essa mutação histórica.
Afinal, os primeiros a desqualificar o direito autoral são as gravadoras, as editoras, as TVs que pagam pouco aos criadores e lucram muito. A pirataria, a cópia, a circulação social, já está (ou deveria estar) embutida nos lucros da indústria,
A Microsoft, as gravadoras, os editores de livros, a indústria cultural brasileira, vão falir? Provavelmente não, vão tentar inventar novas formas de ganhar dinheiro, vão fazer `reengenharia´ (ou seja lá o que for) para reestruturarem a forma `cara´ de produzir.
O preço abusivo dos produtos culturais atuais tem a ver com a forma antiga de produção, fordista, agigantada, fabril. Mas a fábrica tradicional está em crise, acabou. Nos Estados Unidos, o sistema de estúdios, os contratos de exclusividade com atores, faliu nos anos 50! Não pode vender produto com preço da fábrica capitalista fordista, num sistema em que toda a produção barateou. Menos o produto final!
Sinal dos tempos, a fábrica dos filmes e máquinas Polaroides, com sua inesquecível moldura branca e um único original, a foto instantânea que saía da máquina com a imagem se formando diante dos olhos do fotógrafo em suspense, está fechando as portas. Pois afinal, as imagens hoje nem precisam ser impressas, circulam velozmente pelas telas dos computadores, para serem vistas, no computador, nas telas, no celular, voláteis e imateriais. Quem ainda imprime fotografias?
A propriedade intelectual e o direito autoral não vão acabar, vão ter que ser repensados! Estão em crise no capitalismo da reprodutibilidade técnica, no capitalismo do imaterial, em que é barato produzir. É barato fazer circular! É barato copiar e compartilhar.
A velha forma do lucro, em cima da venda exclusiva de milhões de `originais´ está em crise em um capitalismo que não funciona mais com a escassez, mas com a facilidade e abundância, com a reprodutibilidade técnica máxima, amadora, fácil, com os meios de produção disseminados socialmente. Com o P2P, com as redes colaborativas, a internet, a telefonia móvel, o digital.
Ou seja, como criminalizar toda uma cultura nova, do compatilhamento da duplicação, da difusão, como isso pode ser `ilegal´?
Jovens no mundo todo trocam seus arquivos de música, filmes, vídeos, pelo computador. Que corporação, que moralidade vai impedir essa forma de compartilhar o imaterial? Perguntem o que esses usuários pensam da `pirataria´. Estão é se engajando nos novos movimentos, fazendo micropolitica sem sair do quarto de dormir, pela livre circulação e distribuição do conhecimento. Capturar, compartilhar, disseminar. Movimentos viróticos.
Ciberativismo, Copyleft, Cognitariado, Precariado, Cultura Livre, livres capturas pelas redes….dispositivos, estética, essas são algumas das senhas de acesso para a coluna que está começando. Pode logar!
*Ivana Bentes é pesquisadora da Escola de Comunicação da UFRJ, participa da rede Universidade Nômade’
RÁDIO DIGITAL
O padrão digital de rádio está em xeque na Europa, 15/2
‘Enquanto o Brasil ainda tateia na discussão sobre a TV digital, em meio a preocupações sobre prazos e a data de corte para o sinal analógico, a Europa debate o relativo fracasso de outro meio também digitalizado: o rádio. O padrão em uso no continente europeu é o DAB (Digital Audio Broadcasting, ou Transmissão de Áudio Digital). Foi criado na década de 80 e há anos são vendidos aparelhos capazes de receber e decodificar o sinal. As principais vantagens são o som de maior fidelidade, mais estações na mesma faixa e um sinal resistente a interferências. Isso tudo existe em teoria, mas testes demonstraram que a qualidade do áudio é pior do que a da FM, porque a maioria das estações digitais presentes no Reino Unido, na região da Escandinávia e na Suíça, codifica o sinal em baixa qualidade, o que elimina a vantagem inicial do formato.
O DAB também não gerou as vendas esperadas do lado comercial. Um executivo de uma rádio inglesa declarou ao Guardian que `todos têm medo de dizer isso publicamente, mas se pudéssemos, todos nós (rádios digitais) devolveríamos nossas licenças de DAB amanhã´. O elefante no meio da sala, como em muitas outras mídias, é a internet. Os críticos dizem que ela tornou uma tecnologia cara em algo obsoleto, como um Betamax do rádio. Por isso, os consumidores decidiram não investir em aparelhos novos e optaram por ouvir as estações preferidas on-line. Outros não sabem se o fracasso se dá por uma questão de timing, porque a tecnologia é relativamente nova, ou porque não existe conteúdo interessante nas transmissões.
A idéia original da rádio digital, ao menos na Grã-Bretanha, era permitir que estações comerciais se igualassem às operações da BBC, principalmente em termos de qualidade de transmissão. Duas delas, Core e Oneword, fecharam no fim do ano passado e outras duas, Virgin e Global, anunciaram cortes nos orçamentos.
As vendas de aparelhos DAB foi boa durante as festas natalinas. Mais de 550 mil rádios foram vendidos em dezembro, com o número total da base instalada próximo de 9,1 milhões. Só que existem mais de 100 milhões de aparelhos analógicos espalhados pelo país e o governo não quer estabelecer uma data de corte para as transmissões do sinal antigo, ao contrário do que acontece com a televisão.
´Uma pesquisa rápida com 30 gerentes de fundos financeiros indicaria que quase todos compraram um rádio digital e o amam. Da perspectiva empresarial, contudo, o DAB ainda não aconteceu. Os custos são altos e o formato não gera lucro´, disse Richard Menzies-Gow, analista de mídia do Dresdner Kleinwort, ao Guardian.
A sobrevivência talvez esteja ligada à facilidade de uso. `A qualidade do protocolo de transmissão na internet é péssima. O sinal cai e não ouço nada por alguns segundos ou até minutos. Um rádio DAB simplesmente funciona. Aperte um botão e tudo acontece: qualidade excelente, uma gama relativamente boa de escolhas, nenhum problema´, escreveu em seu blog Ashley Highfield, diretora de mídias futuras e tecnologias da BBC.’
CARTÕES CORPORATIVOS
O enredo da tapioca, 15/2
‘Na iminência de uma nova CPI no Congresso e diante do enésimo torneio entre a oposição e o governo para ver quem é mais ético e transparente, cabe repetir uma pergunta: qual a dimensão real do novo escândalo que recheia o noticiário e paralisa a Praça dos Três Poderes?
Além da óbvia conclusão de que qualquer gasto público irregular deve ser punido e investigado, o que de concreto uma comissão parlamentar de inquérito, com aquela modorrenta disposição da maioria dos seus integrantes, será capaz de produzir, nem que disponha de um ano para apurar os fatos?
Os parlamentares estarão diante de um universo de informações talvez tão complexas quanto as analisadas pela CPI que investigou o chamado mensalão. Ao final daquele trabalho, e apesar do carnaval criado pela oposição, o máximo que se conseguiu, em relação ao que se convencionou identificar como a `maior história de corrupção do País´, foi identificar estranhas movimentações de 10 milhões de reais de uma empresa da qual o Banco do Brasil era sócio para as contas das agências do publicitário Marcos Valério. Repete-se: 10 milhões de reais?
Caso o governo e a oposição estejam realmente interessados em desvendar os mecanismos que alimentam a frouxidão no controle de gastos públicos miúdos, terão de se esforçar bastante. Além de ter acesso aos dados disponíveis no Portal da Transparência, mantido pela Controladoria-Geral da União (CGU), os integrantes da CPI da Tapioca, assim denominada por causa da compra com cartão corporativo dessas iguarias pelo ministro do Esporte, Orlando Silva, vão ter de vasculhar nas secretarias de controle de cada ministério.
Lá, entre pastas e gavetas, escondem-se pilhas de papel referentes às prestações das chamadas contas do tipo B, expediente de liberação de pequenas verbas anterior à adoção dos cartões de crédito. Antes, para cobrir pequenas despesas das repartições, um funcionário de confiança da chefia detinha a responsabilidade da conta do tipo B. Para tal, recebia um talão de cheques e realizava os pagamentos a partir das demandas do setor, sempre para coisas miúdas e urgentes. Nesse caso, as notas e recibos são guardados numa gaveta à espera de uma auditoria que, normalmente, jamais é feita.
São processos sob responsabilidade de ordenadores de despesas, quase sempre o chefe imediato do servidor encarregado pelos pagamentos. Como há 1,2 mil órgãos federais para a CGU fiscalizar, cada qual com dezenas ou mesmo centenas de ordenadores de despesas, raramente perde-se tempo com as contas tipo B ou com os cartões corporativos, responsáveis por 0,004% do total de despesas anuais do governo federal. Repete-se: 0,004% dos gastos. Além disso, como demonstraram alguns jornais, quase metade dos gastos com cartões couberam ao IBGE. O instituto justificou as despesas pelo fato de, no ano passado, ter enviado a campo inúmeros pesquisadores para a realização de recenseamentos.
A prioridade, como era de esperar, são os pagamentos de grandes obras. `Não há como priorizar a fiscalização disso´, afirma o ministro Jorge Hage, da CGU. `Todo esse dinheiro envolvido não se compara a uma obra qualquer do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento).´
A CGU tem 2 mil fiscais: mil em Brasília, mil nos demais estados da Federação. Com esse efetivo, tem de fiscalizar todos os gastos, obras, projetos levados a cabo pelo Poder Executivo. Mantém, ainda, um programa permanente de sorteio de municípios para auditoria de utilização de verbas federais nas cidades brasileiras. O sistema, montado pelo primeiro ministro a ocupar o cargo, Waldir Pires, mostrou-se um eficiente mecanismo de combate à corrupção. Vários casos de desvio de verba pública foram identificados por esse método de apuração.
Foi responsável, ainda, pelo que Hage chama de `choque de transparência´ ao colocar todas as despesas do governo no Portal da Transparência. O mesmo site de onde se retiraram as denúncias relativas ao mau uso dos cartões, aliás, trabalho poupado à futura CPI. `Isso nos leva a perguntar que investigação outra será feita´, analisa Hage.
É uma pergunta pertinente. Logo que pipocaram os gastos abusivos de integrantes do primeiro escalão do governo, a oposição anteviu a possibilidade de repetir o script do escândalo de 2005, que colocou o governo Lula na berlinda por um ano e meio. Às vésperas de eleições municipais, importante para as primeiras definições do quadro sucessório de 2010, nada melhor.
No primeiro momento, o noticiário estava repleto de nomes, valores e lugares. Tudo copiado do Portal da Transparência, mas revelador da fiscalização precária sobre um procedimento eivado de abusos. Logo encaradas como pitorescas, as compras feitas via cartões corporativos oscilaram entre o simplório, mas devastador, beiju de tapioca comprado ilegalmente em Brasília pelo ministro Orlando Silva, aos supostos bichinhos de pelúcia adquiridos pela Marinha ou, ainda, os gastos de lavanderia da CGU. Sem falar nas investidas na Feira do Paraguai, um mercado de muambas e badulaques que, atualmente, é o segundo ponto turístico mais visitado de Brasília. O primeiro é a catedral.
Até neste momento, o principal símbolo do escândalo era a então ministra Matilde Ribeiro. Em 2007, Matilde usou o cartão corporativo em despesas de 171 mil reais. Apenas em aluguel de carros, a ex-ministra gastou 110 mil reais, além de outros 5 mil reais em restaurantes. Também usou o cartão durante as férias, quando gastou 2,9 mil reais. Diante dos gastos inexplicáveis, a ministra foi obrigada a pedir demissão.
O ímpeto da oposição reduziu-se com as revelações de gastos de governos tucanos. Primeiro, o jornalista Paulo Henrique Amorim revelou no blog Conversa Afiada, após ter acesso a dados levantados pela bancada petista na Assembléia Legislativa de São Paulo, que, em 2007, o governo de José Serra despendeu 108 milhões com pequenos gastos, a maioria, como no caso da União, plenamente justificável. Do montante, 44,58% foram saques feitos com cartões na boca do caixa – justamente a brecha mais conhecida do expediente para se fazer maracutaias. O aparecimento dos gastos da administração Serra teve efeitos até sobre a cobertura de determinados veículos de comunicação, que, subitamente, passaram a realizar uma cobertura mais equilibrada dos fatos.
Enquanto isso, os líderes governistas no Congresso passaram a defender a criação de uma CPI para investigar todos os pequenos gastos e não só os realizados com cartões. E que ela retrocedesse até 1998, no fim do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso. Os dados da CGU revelam comportamentos diferenciados entre os governos FHC e Lula. Entre 2001 e 2002, dois últimos anos do tucanato, os gastos federais com suprimentos de fundos (cartões mais cheques das contas tipo B) foram de 213,6 milhões e 233,2 milhões de reais, respectivamente. A partir de 2003, primeiro ano do primeiro mandato petista, esse gasto foi reduzido e manteve-se, nos últimos cinco anos, na média atual de 143 milhões de reais.
Ante a possibilidade de entrar na roda das investigações, FHC valeu-se de um argumento que nunca antes tinha interessado aos tucanos. O ex-presidente defendeu que não se pode criar uma CPI sem `um fato determinado´. É um argumento sempre exposto por eminentes juristas, mas nunca levado em conta quando se trata de investigar o quintal dos adversários políticos.
O embotamento político das intenções da CPI aponta para duas direções: ou a comissão tende a ser morna e irrelevante como tantas outras, ou pode se perder em uma briga com tons eleitorais sem nenhuma utilidade prática para a vida do cidadão comum, que espera ver o dinheiro dos impostos gastos com mais eficiência e transparência.
O impasse da oposição ficou claro na reação ao acordo fechado entre o deputado Carlos Sampaio (PSDB-SP) e o líder do governo no Senado, Romero Jucá (PMDB-RR), para a instalação de uma CPI mista. Sampaio foi chamado às falas por lideranças oposicionistas por ter se precipitado no acerto sem consultá-las. Agora os tucanos entram no jogo, mais uma vez, constrangidos pelas pressões do antigo PFL, que não tem nada a perder, por não estar na linha de tiro. Pesaram para a reversão da posição tucana, como de costume, as interferências de FHC e dos senadores Tasso Jereissati (CE) e Sérgio Guerra (PE).
Na quinta-feira 14, a única certeza em Brasília era de que haveria mesmo uma CPI para investigar o uso de cartões corporativos. Mas a instalação, de fato, depende menos da oposição e mais do PMDB. Também como aconteceu durante a votação da CPMF, o partido aliado iniciou um franco processo de barganha para trocar apoio por cargos, no caso específico, a presidência da CPI. O governo quer, porém, entregar essa função ao PSDB para cumprir as regras de um acordo de bastidores com o objetivo de preservar a imagem de Lula e de FHC. Prenúncio, portanto, de um embate morno e condenado ao esquecimento, mais ou menos como ocorreu com a CPI do Apagão Aéreo.
Desde a saída de Silas Rondeau do Ministério de Minas e Energia, em março de 2007, o PMDB tem pressionado o Palácio do Planalto pela obtenção de cargos no governo federal. O alarde inicial da mídia sobre a CPI dos cartões deixou os peemedebistas ouriçados com a possibilidade de colocar o governo novamente em estado de dependência e, de quebra, emplacar um prócer do partido nas transmissões ao vivo da TV Senado, sempre uma campeã de audiência nessas situações.
Apesar de ser do PMDB, o líder Romero Jucá trabalha ostensivamente para colocar um tucano à frente da comissão, também como parte de um acordo para evitar obstruções da oposição em votações importantes no Congresso. Por essa razão, ficou estabelecido que o presidente da CPI será um senador, e a relatoria, o cargo mais importante, irá para um deputado federal do PT. O nome mais cotado para ser o relator era o do deputado Luiz Sérgio (RJ), ex-líder do PT na Câmara.
Coube ao ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, explicitar o desejo de um pacto tucano-petista com uma frase infeliz e reveladora dos medos do governo. `Não temos de mexer com a família nem do presidente Lula nem do ex-presidente Fernando Henrique. Seria jogar tapioca no ventilador´, disse, na tentativa de fazer uma piada.
Além de folclorizar ainda mais a crise com o emblema da tapioca, o ministro conseguiu esquentar as insinuações sobre supostos gastos feitos de forma exorbitante pela primeira-dama Marisa Letícia, informação corrente entre os jornalistas de Brasília desde o ano passado. Um dia antes, FHC, naquele tom leviano que se tornou hábito, disparou: `Os vestidos da Ruth, era eu mesmo quem pagava´. Ao mesmo tempo, enquanto não garantem a presidência da comissão para si, os tucanos ameaçam criar uma CPI no Senado. Jogo de cena.
A certeza de que a maioria dos membros da Comissão será governista reforça a idéia de uma CPI previamente enfraquecida, do tipo daquela apelidada pelo humorista José Simão, da Folha de S.Paulo, de Conluio Para Inocentar. Do lado do governo, as perspectivas não são tão amenas. A quebra de sigilos bancários e a possível violação das contas de verbas secretas por decisão da CPI, seguidas dos vazamentos de sempre, têm enorme potencial de respingar na imagem de Lula. O PPS, eterna linha auxiliar do ex-PFL, e o PSDB saíram na frente e entraram com ações no Supremo Tribunal Federal com o argumento de que o sigilo, previsto por lei, é inconstitucional.
Ainda que se mantenha o veto à abertura das verbas secretas, os estragos no primeiro escalão deverão ser inevitáveis. Pela análise governista, é possível que, com a devassa feita pela CPI, ao menos outros dois ministros do governo Lula caiam no decorrer das investigações. Mas acredita-se que o mérito da Comissão será o de enquadrar os funcionários envolvidos em abusos na utilização de cartões corporativos. Ou seja, antes de tudo haverá uma punição. Nivelada por baixo, mas haverá. A CGU não tem como investigar, por exemplo, as contas dos funcionários da Presidência da República. O Palácio do Planalto e os ministérios da Defesa e das Relações Exteriores estão fora da alçada dos fiscais do ministro Hage, pois são monitorados pelas respectivas secretarias de controle interno, as Sisets.
Na terça-feira 12, o ministro das Relações Institucionais, José Múcio, fez um mea-culpa público dos erros do governo no caso dos cartões corporativos. Segundo ele, faltou fiscalização. `Cometeu-se algum erro? Cometeu-se. O governo tornou as contas absolutamente transparentes e, em determinado momento, deixou de fazer a censura conta por conta. Nós, que criamos essa transparência, deveríamos tê-la usado melhor e feito algumas correções a tempo´, avaliou.
De acordo com o ministro, as contas de cartões são pequenas, quando detectadas logo. `Mas quando você deixa o erro se acumular, termina num volume maior. Se tivéssemos detectado algumas questões a tempo, talvez tivéssemos o problema diminuído.´
Enquanto as tropas do governo e da oposição se posicionam para uma guerra política predestinada a esgotar o tempo do Parlamento e a paciência do eleitor, o Legislativo se vê, outra vez, diante de uma circunstância paralisante, incapaz de analisar questões mais urgentes e importantes para o País. O ano, naturalmente prejudicado no Congresso em virtude das eleições municipais, em outubro deste ano, parece definitivamente perdido. O governo promete entregar o projeto de reforma tributária no fim do mês, mas não tem a menor idéia sobre se ele será votado ou não. É uma incógnita que também ronda a reforma política, estacionada na Câmara.
É um cenário no qual os congressistas deveriam pensar antes de freneticamente entregarem-se aos holofotes de uma CPI. Qual o tamanho real do escândalo diante do fato de que o Brasil faz uma economia anual equivalente a 4% do PIB só para pagar juros. E que as taxas de juro brasileiras não caem mais, entre outros motivos, pela incapacidade do País de levar em frente os temas essenciais ao desenvolvimento. Sem nenhum prejuízo ao necessário controle dos desvios de dinheiro público.’
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