Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Carta Capital

CASO RONALDO
Sócrates

Mídia infame, 9/5

‘Na semana passada, estarreceram-me as interpretações dadas por alguns meios de comunicação sobre o episódio em que se envolveu Ronaldo na belíssima noite carioca. Que o fato foi pitoresco ninguém tem dúvida alguma, mas querer extrair do acontecido definições equivocadas a respeito das opções comportamentais do craque é um claro exagero. Quando não, sensacionalismo.

Podemos admitir que ele tenha sido ingênuo ao não discernir entre uma mulher e um travesti, mas me digam: quem nunca se enganou em uma questão como esta? Sem pretender comparar as qualidades físicas das que com ele estiveram naquele motel com a que passo a me referir, diria que uma das mulheres mais lindas que já vi na vida foi Roberta Close. A qual, apesar da aparência mais que feminina, de ter sido escolhida a mais bela do País em determinada ocasião e capa das principais revistas masculinas nos anos 80, era definida como Homem em sua carteira de identidade no espaço dedicado ao sexo. Feliz ou infelizmente, jamais tive a chance de me aproximar dela, pois erraria feio, como Ronaldo.

Depois da escolha equivocada, o cidadão Ronaldo foi claramente vítima de uma tentativa de extorsão, como, aliás, vários brasileiros já o foram nas mesmas condições, inclusive e, eventualmente, pelas mesmas pessoas. Agora, querer levar o assunto para outras plagas é pretender destruir um ser humano que em várias ocasiões demonstrou ser alguém muito maior do que a pequenez dessas ridículas linhas editoriais.

Não falo do jogador, apenas do seu lado profissional, e sim do indivíduo que ultrapassou as fronteiras do campo de jogo para emprestar sua imagem vencedora em prol dos mais necessitados. E não venham me falar em demagogia, porque no rosto de quem se expõe transparece o compromisso com suas atitudes. E Ronaldo sempre se entregou verdadeiramente a essas causas, mesmo sem entender muito bem o resultado concreto de suas intervenções.

Compará-lo a David Beckham é outra besteira da grossa. O inglês nasceu para ser bom moço, o que, inevitavelmente, leva os conservadores e reacionários a utilizá-lo como referência. Ronaldo não é um certinho, gosta do que é bom e aí se incluem sexo e mulheres. Além de festas, amigos, cervejas e gargalhadas. Como eu, aliás. Seria como me colocar na mesma cumbuca do meu irmão Raí, uma figura excepcional, da qual extraio muita coisa boa, graças ao privilégio de poder com ele compartilhar múltiplas ocasiões. Porém, somos muito diferentes, ainda que com o mesmo grau de compromisso com a nossa nação.

Sou agressivo, ele não. Sou extrovertido, ele não. Gosto de estar com gente, de trocar experiências, de conviver com todo tipo de ser humano, e ele já tem mais dificuldade, gosta de estar só, de curtir sua genial sensatez, isolado e tranqüilo – nada de confusão.

Por isso, ele é São Paulo e eu, Corinthians. Analogia absolutamente compatível com nossas personalidades. Ele fez a sala Raí no Morumbi e eu, um dia, espero, terei o boteco do Magrão, no sonhado estádio da fiel.

Ronaldo sabe, mais do que ninguém, dos processos relativos à sua própria imagem. Tem plena consciência de que muitos dos nossos prazeres, mesmo distantes do longínquo maio de 1968 e suas conquistas libertárias, em particular no quesito sexo, são questionados pela face mais antiga da nossa sociedade, ainda que muitas vezes a mais promíscua de todas. Mesmo assim, e assino embaixo, não abre mão de usufruir como lhe cabe.

Gostar de festas e mulheres não é crime nem para as igrejas que tentam nos converter em pequenos deuses humanos, desde que tenhamos o altruísmo de lhes oferecer o dízimo. Inverter essa lógica é muito mais que sacanagem, é má-fé. Levantar suspeitas de consumo de cocaína ou de qualquer outro tipo de droga e de homossexualismo é de extrema maldade, pois quem o acompanha, por jornais e revistas, que seja, sabe que em momento algum se viu em seu olhar qualquer sinal de estar drogado. E quem saiu e casou com as belezas que ele conquistou não pode gostar de travestis.

Esta mesma mídia careta que o quer derrubar foi aquela que não soube valorizar o gesto de Leandro, em 1986, que abdicou de seu posto no Mundial do México, e por conseqüência de sua carreira, em solidariedade a um colega. A mesma mídia que não sabe participar da educação do nosso povo, pois a ela não interessa que isso aconteça. É infame, ridícula e absolutamente irracional. Que se dane!’

 

PUBLICIDADE
Felipe Marra Mendonça

Na internet, o consumidor cria o anúncio, 9/5

‘A internet pode ser um pesadelo para publicitários. Usuários podem bloquear anúncios ou se recusar a assistir vídeos patrocinados. Mesmo quando baixam ilegalmente séries de televisão, os anúncios colocados originalmente na transmissão são cortados.

A solução encontrada para evitar a perda desse público, em sua maioria jovem, é inverter os papéis. Ou seja, permitir que usuários criem campanhas publicitárias interessantes o suficiente para ser assistidas sem cortes, pausas ou interrupções. O primeiro passo foi dado pelo braço americano da T-Mobile, operadora alemã de telefonia celular. Um concurso pede que sejam criados anúncios de 30 segundos com os gráficos, músicas e imagens disponibilizadas pela operadora num site especial (http://t-mobilenba.com/duo/makeyourownad/remixer.aspx). O prêmio é ver a criação mostrada durante os comerciais no intervalo de um jogo dos playoffs da temporada atual da NBA, a liga de basquete americana.

‘Os consumidores estão sobrecarregados por mensagens, todas as companhias usam diferentes meios para alcançá-los’, disse Melinda McCrocklin, gerente de marketing da T-Mobile, à revista Portfolio. ‘Queremos ter certeza de que nossa mensagem chegue até eles.’

Além de ser um modo inteligente de falar com esse consumidor mais sofisticado, pedir que ele mesmo crie os anúncios é também um modo de cortar gastos com marketing. A agência TBWA teve a atenção despertada por um vídeo feito por um adolescente britânico e colocado no YouTube. Tratava-se de um falso comercial para o iPod (http:// www.youtube.com/watch? v=KKQUZPqDZb0), que teve como trilha sonora uma música do grupo brasileiro CSS, Music Is My Hot Hot Sex. Os publicitários gostaram tanto que refizeram a peça e a exibiram nas principais redes americanas.

Se a tendência continuar forte, ninguém vai poder reclamar do espaço dado a comerciais no meio das transmissões e do falso poder das grandes agências de publicidade. Até porque o segundo passo da estratégia é permitir a escolha dos anúncios a serem vistos. O portal Hulu (www.hulu.com), parceria da rede americana NBC com a holding News Corp, deixará que os usuários definam quais marcas podem aparecer durante o intervalo comercial. Se quiser passar o tempo inteiro vendo anúncios de panelas, isso vai ser possível. Talvez insuportável, mas possível.

A novela da oferta de compra do Yahoo! pela Microsoft acabou. Pelo menos por agora. Na quarta-feira 7, Bill Gates disse em Tóquio que a empresa agora deve adotar uma estratégia independente, depois de ter sua oferta de quase 48 bilhões de dólares recusada. ‘Fizemos um grande esforço nas conversas com o Yahoo! e a conclusão a que chegamos é que deveríamos seguir caminhos independentes.’ Pouco depois, deixou uma dica no ar ao falar do futuro da empresa. A Microsoft deve continuar a crescer, ‘com a equipe talentosa que temos e potencialmente através de transações estratégicas’.

Dois dias antes, Jerry Yang, presidente do Yahoo!, tinha dito que a companhia estaria aberta a novas ofertas ‘se outro interessado voltasse algum dia e quisesse comprar a empresa’. Ou seja, mais novidades nos próximos capítulos.’

 

TELES
Redação CartaCapital

Maia cobra o BNDES, 11/5

‘Na segunda-feira 5, o deputado Rodrigo Maia (ex-PFL-RJ) entrou com uma representação no Tribunal de Contas da União, na qual questiona o empréstimo de 2,5 bilhões que o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social concederá aos acionistas da Oi na compra da Brasil Telecom. Para o deputado, a diretoria do banco tomou uma decisão ilegal, já que a atual legislação do setor de telefonia impede a fusão entre as operadoras fixas. Maia falou à CartaCapital.

CartaCapital: Por que ingressar com a representação?

Rodrigo Maia: Quero saber como o BNDES tomou uma decisão sobre uma coisa que não existe. A diretoria do BNDES decidiu emprestar dinheiro a uma operação ilegal, não permitida pelas regras atuais do setor. Acredito que o banco só estaria apto a fazer algo semelhante depois de mudanças legais, mas esta, aliás, será outra batalha.

CC: O senhor vê sentido em mudar a legislação do setor de telefonia para permitir a fusão?

RM: Não, é claro. Haverá uma empresa de telefonia fixa com domínio sobre todos os estados brasileiros, menos São Paulo. Será uma clara concentração de mercado e, com certeza, isso não trará benefícios ao consumidor. A competição será restringida.

CC: O que o senhor ou o partido pretendem fazer, além de encaminhar essa representação ao TCU?

RM: Vamos esperar para ver como o governo encaminha o processo de mudança da lei.

CC: Há quem argumente que bastaria uma resolução da Anatel.

RM: Assim não dá. É preciso o presidente publicar um decreto ou haver uma discussão no Congresso para mudar a lei. Na representação ao TCU ainda não estamos questionando a fusão, mas o fato de uma empresa pública ter decidido financiar uma operação vetada por lei.’

 

CULTURA
Nirlando Beirão

Crise de idade, 9/5

‘A TV Cultura, de São Paulo, é uma tevê pública que não gosta de lembrar que é uma tevê pública. Ninguém nunca a chamou de TeleCovas, assim como ninguém a chama de TeleSerra. Para todos os efeitos, no Brasil, a única tentativa de estatizar a informação, censurar a oposição e manipular a notícia – viciosa tentação totalitária – é de parte do atual governo do PT. Pano rápido. Todo mundo, da BBC ao estado do Maranhão, tem sua emissora pública. Lula paga o pato.

A Cultura vive hoje à sombra da boa vontade do governador Serra, homem reconhecidamente magnânimo e avesso a interferências junto à mídia, não é mesmo? Paulo Markun, o atual diretor, é um jornalista que costuma, dentro do possível, manter-seimune à paixão partidária e tem ensaiado uma gestão na qual profissionalismo pesa mais do que o favor.

É no Roda Viva, vitrine de um jornalismo sem trava na língua, que o espinho ideológico pode picar. Já houve âncoras, mais de um, que vestiam nitidamente a camisa. Sua propalada isenção sempre foi

de mão única. Coincidia – que surpresa! – com a expectativa palaciana e do círculo de cortesãos. Não há mal nenhum em tomar partido. Hipocrisia é que é pecado.

Já que Carlos Eduardo Lins da Silva abandonou o jornalismo para cuidar das besteiras da Folha, Lilian Witte Fibe vem aí para assumir o Roda Viva. É uma das novidades previstas na grade inaugurada esta semana. A Cultura do Markun passou por um spa de rejuvenescimento, meteu Botox na programação e está louca para freqüentar outra faixa etária. No esforço de recuperar a juventude perdida, caiu até no hip-hop. Ainda bem que deixou por lá o Fernando Faro, agora com seu Móbile mensal (estréia na quarta 28). Faro é a prova viva de que talento não tem idade.’

 

CINEMA
Eduardo Graça

Envelhecendo na cidade, 9/5

‘Sex & the City, o filme, que chega ao Brasil no dia 6 de junho, começa com a busca das quatro personagens principais por dois grandes eles: label (marca) e love (amor). E termina com a valorização de dois efes: friends (amigos) e family (família). Não se trata apenas do moralismo puritano norte-americano tornado cinema. Campeã de audiência da tevê paga, a série produzida e estrelada por Sarah Jessica Parker reunia quatro amigas – Carrie (Sarah), Miranda (Cynthia Nixon), Samantha (Kim Catrall) e Charlotte (Kristin Davis) – à caça de amor e sucesso em uma Nova York em estado de graça.

Quando o programa foi lançado, em 1998, na segunda metade do segundo governo Clinton, a cidade era a capital feliz da nova ordem mundial. Quando terminou, em 2004, pós-ataque ao World Trade Center, o seriado tinha ganhado em seriedade. A Manhattan retratada como um playground de milionários globais era cada vez menos fantasiosa.

Diretor e criador da maioria dos diálogos que confirmaram Sex & the City como um dos exemplos da evolução da dramaturgia televisiva norte-americana na última década, Michael Patrick King diz que a metrópole de seus sonhos é a NYC de Woody Allen. Não, o longa-metragem não é o Manhattan dos anos Bush. Mas seu principal desafio, o de envelhecer a cidade – em certo momento a câmera foca a capa da New York Magazine sobre a bolha imobiliária – e suas ‘meninas’ sem cair no ridículo, foi alcançado com elegância e bom humor.

Para além de Manolos e martinis, Sex & the City, o filme, oferece uma reflexão sobre a fetichezação do corpo masculino, os limites da felicidade solitária na urbi, a possibilidade do amor romântico em meio ao cinismo e se arrisca a repensar a função do casamento. As intenções garantem aos espectadores duas horas e pouco de diversão guiadas pelas vozes de quatro mulheres interessadas em descobrir o que acontece depois de se viver o tal do grande amor.’

 

BORIS SCHNAIDERMAN
Rosane Pavam

Luzes e letras, 9/5

‘Boris Schnaiderman tem talento para o impossível. Com 91 anos a serem completados em 17 de maio, recém-homenageado pela União Brasileira dos Escritores (entidade cuja ata de fundação, há 50 anos, contém sua assinatura), este professor, crítico e tradutor responsável pelo primeiro curso de Língua e Literatura Russa da Universidade de São Paulo não pensa em desacelerar. Mais do que nunca, as coisas a serem ditas por ele parecem urgentes, e ele precisa caminhar.

Diariamente, faz isso entre o escritório que ocupa o nono andar de um prédio de Higienópolis, em São Paulo, e a residência, situada nos arredores. Nesse bairro paulistano, o sol passa timidamente por entre os edifícios enfileirados, e Schnaiderman, livre dos óculos, depois de uma operação de catarata que devolveu limpidez aos olhos azuis, sai sozinho ao encontro da luz.

Durante a entrevista de duas horas, transcorrida em tarde ensolarada e fria, sugere que pode descer até o xerox para reproduzir a rara apresentação que fez de Diálogos, livro do russo Roman Jakobson editado há algum tempo pela Cultrix. Talvez o xerox não seja necessário, mas parece forçoso explicar a importância de Jakobson para os anos 60. O homem, que não compactuava com a crueldade política, libertou do isolamento os estudos da linguagem. Disse que a língua explicava o mundo e o ser. E, claro, nos anos 60 amávamos alguns russos, a começar pelo astronauta Yuri Gagarin e pelo Sputnik. Em 1968, ano em que Schnaiderman trouxe o pensador ao Brasil, oito anos depois de ter sido, ele próprio, o primeiro professor da língua na USP, Jakobson era cultuado como a Lua.

Como fazemos nas noites em que o astro parece nos falar particularmente, o professor via Jakobson muito próximo. Schnaiderman tem um gesto recorrente: quando deseja esclarecer um ponto, abana as duas mãos, como a afastar chatos imaginários nas proximidades. Deve ter repetido o gesto muitas vezes quando lhe disseram que a vinda do pensador seria um sonho incompatível com o Brasil. Pôs-se a escrever para Jakobson para provar o contrário, que, sim, ele o traria para nós. O russo sentia maravilhas pelo País que, conta a lenda, um dia o recusou como professor.

A vinda foi uma felicidade. Jakobson não se comportou como pensador célebre. Foi um homem simples que, na Biblioteca Mário de Andrade, centro paulistano, perguntou o que fazer diante da impossibilidade de realizar ali a conferência programada. Schnaiderman o tranqüilizou. Como o saguão era inadequado, improvisaria outro lugar para a conferência nas proximidades. Mas o visitante continuava inquieto. Nos Estados Unidos, argumentava, a pontualidade era essencial. Enquanto andavam pela rua Xavier de Toledo rumo à Aliança Francesa, o novo lugar da conferência, Schnaiderman apontou a Jakobson a multidão atrás. Ela o seguiria, caminhando, para onde ele fosse, e esperaria o tempo necessário para ouvi-lo. Estávamos no Brasil. Por que 1968 terminou?

Claro que aqueles não eram anos fáceis. O próprio Schnaiderman, titular de língua subversiva, dono de passaporte soviético, pai da psicanalista e cineasta Miriam e de Carlos, militante resistente contra a ditadura, vira-se detido algumas vezes pelos repressores, embora, a seu ver, em situações que não se provaram sérias demais. As detenções não o impediram de continuar a responder com insolência a policiais que vigiavam ruas na universidade. Quando começou a ensinar na USP, seu curso era um entre muitos, mas se tornou, no decorrer do tempo ditatorial, o único. Ele espanou os chatos do general Costa e Silva.

Segundo Jacó Guinsburg, o mais freqüente editor de seus livros, responsável, em 1971, pela publicação da tese de doutorado de Schnaiderman A Poética de Maiakóvski, esse traço de respeito férreo às convicções éticas vive nele enquanto se abre pessoal e intelectualmente ao desconhecido. Ou ao moderno, exemplificado pela presença dos poetas concretistas Haroldo e Augusto de Campos em seu trabalho de tradução e crítica. Nelson Ascher dividiu com ele o Prêmio Jabuti de 2004 pela versão de A Dama de Espadas, de Púchkin.

A ‘grande inteireza’ de Schnaiderman, como a define Guinsburg, é marca pessoal, além do humor. ‘Ele é o personagem dostoievskiano em essência, aquele no qual convivem profundidade e mistério’, diz Guinsburg, que o vê como um pensador da cultura e homem de posições éticas, além, é claro, de incontestável tradutor e crítico de literatura russa e de poesia. ‘Se não gosta de alguma coisa, ele vai dizer.’

No terreno das impossibilidades, em pleno ano de 1965, o professor retornou à sua Rússia pela primeira vez. Voltou em muitas outras ocasiões até 1997, ano em que publicou Os Escombros e o Mito, de reflexões sobre conseqüências culturais e sociais do fim da União Soviética. Nesse livro interessantíssimo, faz considerações sobre a glasnost, palavra russa que evoluiu mundialmente para o termo ‘transparência’, e diz sem rodeios que jamais acreditou no fim da União Soviética. Somente durante um período na Alemanha em companhia da segunda esposa (a ensaísta literária e professora Jerusa Pires Ferreira), e lendo nos jornais russos de que forma oficiais desafiavam seus comandos, convenceu-se da mudança iminente.

Quando passará a tróica russa descrita por Gogol no monumental Almas Mortas, a apontar ao mundo ocidental os rumos futuros? A bela imagem gogoliana parece menos convincente. ‘Os russos são extremados no capitalismo como foram no anticapitalismo’, avalia. Pôde confirmar isso ao andar nos arredores de Moscou em 1997. Prédios de moderníssima arquitetura conviviam com uma maioria de construções decrépitas. Nos edifícios novos eram oferecidos ‘apartamentos de elite’. Sobre os terrenos baldios, havia placas anunciando ‘propriedade particular’.

Era preciso estar na Rússia, porque ele jamais desejou perdê-la. É verdade que seu lugar de origem estava na ucraniana Úman, que nunca se pôs de fato a conhecer. Deixou a cidade quando tinha 1 ano, rumo a Odessa, onde se encontra a escadaria em que Sergei Eisenstein filmou O Encouraçado Potemkin. Na cidade portuária, aos 7 anos, presenciou, sem entender, a filmagem da cena em que marinheiros jogavam bonés brancos para o alto.

A Odessa da primeira infância era inteiramente russa. E os pais de Schnaiderman, judeus, agiam ali como aculturados russos e ignoravam práticas religiosas. ‘Meus pais não me deram valores’, diz. ‘Não éramos sionistas nem tínhamos convicções de qualquer ordem. Não fomos educados para isso.’ Aos 8 anos, capaz de ler e escrever, já estava apto a freqüentar aquilo que na Rússia se intitulava curso ginasial. No teste de admissão, perguntaram-lhe o que havia em comum entre uma cegonha e uma garça. Quando soube da resposta (‘as duas são aves’) não acreditou. ‘Fiquei tão ofendido.’

Os pais saíram de Odessa com ele e a irmã quatro anos mais velha, Berta, porque temiam os pogroms, extermínios de judeus. O pai era um comerciante para quem a idéia revolucionária não caía bem. Chegaram em 1925 ao Rio de Janeiro, um porto no qual permaneceram seis meses até a partida para São Paulo. Nem o Rio marítimo à moda de Odessa nem a São Paulo recatada aquietaram o menino Boris. Ele sente até hoje o trauma de ter sido arrancado de seu país. Não sendo brasileiro naquela ocasião, também não se sentia um russo entre outros compatriotas migrados.

O que estabeleceria um contato com mais pessoas seria o fato de pertencerem a um grupo. Mas como fazer isso se seus pais andavam escondidos, temerosos, distantes do contato externo e de convicções de toda ordem? Freqüentemente, os olhares dos outros eram desconfiados de seu passado. Achavam que a família traíra alguém. ‘Calamidade’, qualifica o sentimento advindo dessa indefinição.

Faz seis décadas que Schnaiderman se naturalizou brasileiro, e brasileiro ele se vê. Mas até os 14 anos, o único pensamento era ‘não perder o russo’. Enquanto criança, o português entrou com facilidade em sua cabeça, mas a expressão da língua de origem, ainda que a única admitida na própria casa, desaparecia pela falta de contato pessoal, de gestos, de aquisições contemporâneas dos falantes. ‘Hoje, sou um gringo na Rússia’, diz. ‘Quando estou lá, faço o que não devo. Nem sorvete sei pedir.’

É pouco usual que diga isso o pioneiro da tradução russa no Brasil, o homem que contabiliza entre as obras mais vendidas as versões de Fiodor Dostoievski para a Editora 34. Os textos de O Eterno Marido, Memória do Subsolo ou Um Jogador exprimem clareza e simplicidade, enquanto tiram de Dostoievski o pó de inúteis brilhos adquirido a partir de traduções de edições inglesas ou francesas.

Impressiona-se com o sucesso brasileiro de Dostoievski, o maior entre os russos, em sua opinião, ao lado de Tolstoi. ‘Dostoievski é o escritor que mais faz viverem as idéias, é o que mais lhes dá concretude.’ Uma das tarefas no intuito de iluminar o escritor está na tradução de Um Jogador. A simples presença do artigo indefinido no título muda toda a nossa idéia sobre a obra. Como em russo os artigos não existem, terá sido opção de alguns tradutores o uso do artigo definido ‘o’ naquela situação. Mas o autor não fala de jogadores em termos generalistas. Eis por que o subtítulo Apontamentos de um Homem Moço está ali colocado, argumenta o professor.

Um Jogador foi escrito de encomenda, para um editor pilantra que lhe tirava toda a liberdade e garantia financeira. Dostoievski o produziu rapidamente, como quem aposta, porque precisava sustentar a viúva do irmão e o sobrinho. Dizem que no texto exprime a si próprio, porque, além de jogar, acreditava pessoalmente na possibilidade de dominar com cálculo o azar. Mas o tradutor, no posfácio, prova que não há semelhança entre ele e o personagem, apenas o uso ocasional de algumas de suas características.

É interessante observar que, em 1944, aos 27 anos, o ponderado Schnaiderman tivesse se aventurado à empreitada de traduzir diretamente do russo Os Irmãos Karamazov, do mesmo Dostoievski. ‘Foi a única vez em que ele se revelou imodesto na vida’, conta Guinsburg. O tradutor tem uma palavra para explicar a qualidade do texto final: ‘Tragédia’. Mas uma tragédia que até ganhou prêmio, justificada pelo fato de que os negócios do pai não iam bem e, à moda do escritor que Schnaiderman queria ser, era preciso começar a viver da própria escritura de algum modo.

A família lhe impôs o estudo de engenharia agronômica, depois de avaliar o apreço da criança pelo campo. No passado brasileiro, direito e medicina eram as duas profissões que importavam socialmente, além da engenharia. A filosofia que o professor reivindicou para si não podia, àquela altura, ser considerada opção. Cursou agronomia no Rio e trabalhou para o Ministério da Agricultura. Mas, para ter o diploma validado, soube que era necessário se naturalizar brasileiro e servir no Exército.

A naturalização chegou em 1941, depois de um longo período de desconfianças quanto às verdadeiras intenções de um russo nas terras pátrias. Naturalizado, considerou o Exército uma opção a calhar. Queria combater o nazismo, queria lutar na Segunda Guerra Mundial. Como os pais não permitiriam que se alistasse como voluntário, usou de um expediente. Em lugar de se inscrever na linha de tiro, opção de estudantes que desejavam ganhar instrução militar moderada, enfileirou-se no Exército. Logo estaria partindo de bonde de Copacabana para o quartel em Campinho, depois de Cascadura, para cumprir as obrigações diárias como soldado. Quando o Brasil entrou na guerra, em 1944, foi chamado pela Força Expedicionária Brasileira no primeiro escalão. Ficou responsável por calcular tiros de canhão. O período de um ano em que serviu na Itália rendeu-lhe o único texto ficcional, Guerra em Surdina.

O romance levou 19 anos para ser feito. Schnaiderman queria muito escrevê-lo, era a chance de se provar um homem das letras. Mas a auto-exigência para o encargo revelou-se desmedida. O que esperaria de si mesmo, como escritor, um homem que conhecera Dostoievski com uma proximidade literária incomum? A Civilização Brasileira apresentaria o livro somente em 1964, com uma capa na qual um soldado aparecia triste. Mas ninguém queria saber de soldados na época. Soldados tristes, então, pareciam inverossímeis depois do golpe militar.

O livro fracassou, mas hoje, em quarta edição, é um primor de narrativa seca. O editor da Cosacnaify, Augusto Massi, diz oportunamente se tratar de ‘prosa em surdina’. Há a sutileza de nunca aborrecer o leitor com digressões. Há a narrativa do alter ego João Afonso, que mistura ficção e fatos da realidade. Os diálogos continuam seu pensamento. Lê-se tudo de um fôlego, na tradição de Ernest Hemingway.

Hoje, reconhece que não teve ‘fogo’ para novas empreitadas ficcionais. Mas, no caso desse livro, uma continuidade seria bem-vinda. Quem o lê sente falta de um pedaço íntimo, a versão que faria dos pensamentos do emigrado. Guerra em Surdina não se pretendeu a isso, foi um grande painel da ação brasileira em combate, o melhor livro sobre o período. Mas por que, professor, não tentar dizer as coisas de outro modo?

‘Sim, sim, eu ainda vou fazer isso’, ele diz rapidamente à reportagem, abanando a cabeça desta vez. ‘Tenho 91 anos, mas vou fazer muitas coisas ainda.’ Como afirma o amigo Guinsburg, que cedera a casa para que o crítico Anatol Rosenfeld desse aulas a ambos, cinco décadas atrás, ‘aos 91 anos, tudo o que Boris tem são planos’.

Sobre a escrivaninha diante da qual trabalha horas que não calcula, desenvolve um texto cujo título será Tradução, Ato Desmedido. Nele, não manifestará sua fé no descontrole ou no desvario de quem traduz, como o título poderia supor. Desmedir-se, nesse caso, quererá dizer simplesmente ousar traduzir. ‘O ato de traduzir deve ser modesto e exorbitante’, ensina. ‘Quem sou eu para traduzir Dostoievski? Mas tenho de fazer isso.’

Silêncio e Clamor, livro que a Perspectiva lançará no segundo semestre, trará uma descoberta de Schnaiderman dos tempos atuais. Reunirá poemas do contemporâneo Guennadi Aigui, traduzidos e analisados em parceria com Jerusa Pires Ferreira. ‘Se traduzo Aigui sozinho, é porque ele não trabalha com rimas e métrica’, confessa no tom de modéstia que um repórter tem de aceitar aos poucos. Trata-se de uma primeira tradução poética sua diretamente do russo. ‘É claro que eu conseguiria traduzir sozinho um poeta que rimasse, talvez mais ainda no passado, em que fui favorecido pela leitura de Luís de Camões no curso secundário do Colégio Mackenzie. Mas minha tradução iria fluir?’

Maiakóvski – Poemas tem essa fluência. Ele traduziu o livro na companhia de Augusto e Haroldo de Campos, e o sucesso da empreitada lhe foi especialmente caro. Havia uma razão para voltar a traduzir Maiakovski sem demora. Seria uma pena que o público brasileiro continuasse a aplaudir o poeta russo apenas por ter sido o homem do púlpito inflamado durante a revolução bolchevique. E havia também a necessidade de redimi-lo pela escolha de um lado que a história colou à antipatia. Pelo contrário, Maiakovski foi artífice da mais alta estirpe, independentemente, em sua arte, de todos os programas, conforme ensina o professor.

Os livros organizados pessoalmente por Schnaiderman nas estantes do escritório e os objetos de arte e artesanato sobre mesas pequenas sugerem a realização de infindáveis viagens à Rússia natal ou à Bahia de Jerusa. Ele aprecia se movimentar, se reencontrar. Mas, durante a entrevista, por um instante, está de cabeça baixa e repousa as mãos sobre a mesa, quietas desta vez. ‘O que eu quero mesmo é me expressar em português’, diz. Fala o homem ou o menino? Os versos de A Serguei Iessiênin parecem se encaixar à situação. Os tempos estão duros para o artista, diz Maiakovski. Para o júbilo o planeta está imaturo. É preciso arrancar alegria ao futuro. Nesta vida morrer não é difícil. O difícil é a vida e seu ofício.’

 

 

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