Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Carta Capital

CINEMA
Ana Paula Sousa

Deuses no palco, 30/5

‘Sandra Corveloni anda com cara de espanto. Ao receber-me para uma breve conversa num café no bairro da Vila Mariana, zona sul da cidade de São Paulo, se dividia entre o fotógrafo da France Press, o celular incessante e as recomendações ao marido, que ia buscar o filho, de 6 anos, na escola. ‘Ai, não traz ele para cá, não. Ele vai ficar muito cansado.’

A vida do casal está de pernas para o ar desde o domingo em que o júri do Festival de Cannes anunciou o prêmio de melhor atriz para Corveloni. A integrante do Grupo Tapa batera Julianne Moore (Ensaio sobre a Cegueira), Angelina Jolie (Changeling) e outras celebridades do cinema internacional.

A atriz de Linha de Passe, o novo longa-metragem de Walter Salles e Daniela Thomas (com estréia prevista para o segundo semestre no Brasil), tenta ser simpática com todos ao seu redor – dos jornalistas às estudantes que vão cumprimentá-la no café e, de quebra, pedem para que dê uma palestra numa faculdade.

‘É muita gente, muita energia, muito carinho para administrar’, repete, quase feito mantra, talvez até pensando em outra coisa. O que ela também repete, provavelmente como ideologia, é que, para falar da sua trajetória, a mídia terá de falar do teatro. ‘Isso é maravilhoso. Acho que o pessoal do teatro de São Paulo, a gente que batalha junto há tanto tempo, se sente representado, né?’

A julgar pelo comentário espontâneo de Clara Carvalho, uma das mais antigas atrizes do Tapa, sim. ‘Nesse mundo tão viciado, celebrizado, intoxicado é muito bacana pensar que outras coisas e energias podem ser reconhecidas’, disse, ao ouvir o diretor do grupo, Eduardo Tolentino, falar da colega.

Corveloni, 43 anos, guarda um ar de ‘moça do interior’. Os pequenos brincos, o vestido discreto, o cuidado no falar, a preocupação em ser gentil, tudo nela remete ao tempo da delicadeza. Casada com um italiano, professor da língua natal, sempre levou uma vida comum. E totalmente teatral.

Formou-se no Tuca (Teatro da Universidade Católica de São Paulo) e, depois, estudou no Tapa com os atores Guilherme Santana e Denise Wainberg. Estreou no grupo em 1999, com As Viúvas, de Artur Azevedo. Ao citar a comédia, ainda ri. Também não esconde uma ponta de orgulho ao lembrar de Major Bárbara, quando substituiu Clara Carvalho ‘naquele teatrão, com aquele texto imenso’, e Órfãos de Jânio, ‘difícil, difícil, difícil’.

Antes, fez teatro em festa infantil e, até hoje, se o dinheiro encurta, faz uma locução aqui, outra ali. ‘Às vezes, essa luta cansa um pouco. Mas, ao mesmo tempo, estamos fazendo algo que nos dá prazer. Isso basta? Como reconhecimento financeiro, não. Mas é tão intenso, temos tantas descobertas.’

Para exemplificar a mágica do teatro, relembra a montagem de Amargo Siciliano, um fascinante exercício de linguagem em cartaz no Espaço Viga, em São Paulo. ‘O Eduardo, há dois meses, me chamou para essa co-direção. Tínhamos o projeto de montar Pirandello, mas nunca dava certo. Aí eu passava a tarde enfiada naquele galpão. Eu voltava para casa tão eufórica, tão feliz. Cada dia, desembrulhávamos um pedaço daqueles textos, aprendíamos tanta coisa.’

Mas foi o cinema, grande em seus orçamentos e em seus efeitos, que proporcionou a Sandra a maior alegria de sua carreira. A mais impensável. Ela, que estava triste e adoentada em decorrência de um aborto espontâneo, teve, de repente, de sair da cama e abrir a janela. Por causa do cinema. Mas com a graça do teatro. ‘É como se eu tivesse caído no chão e alguém viesse me resgatar. Devem ter sido os deuses do teatro. Deve ter sido Dionísio que disse ‘Vamos brindar’. Estou brindando. Por enquanto, com suco de uva.’’

FUTEBOL
Fabio Kadow

O futebol é show business, 30/5

‘As negociações entre as emissoras de televisão e as organizações responsáveis pelos direitos de transmissão dos campeonatos de futebol estão a todo vapor no mundo inteiro. A discussão sobre valores e contratos está quente também no Brasil. A seguir, um cenário dos embates.

Euro 2008

A Uefa, responsável pela organização do evento que começa em junho e reúne as principais seleções do Velho Continente, mudou a estratégia de vendas neste ano. Com a ajuda da agência Sportfive, cada mercado foi trabalhado separadamente e a arrecadação totalizou 800 milhões de euros, um aumento de 240 milhões de euros em comparação à última edição do torneio. O destaque é o montante de 250 milhões de euros angariados somente no mercado asiático.

Alemanha

A Federação Alemã de Futebol tem como princípio que os jogos da seleção devem passar sempre em tevês abertas. Foram fechados contratos de quatro anos com as emissoras ARD e ZDF. Paralelamente, a Team Marketing AG, agência que detém os direitos de comercialização dos jogos da Champions League e da Copa da Uefa, abriu um leilão no país para as próximas três temporadas. Espera-se arrecadar mais do que os 70 milhões de euros pagos atualmente pelo canal Premiere.

Lusa fashion

A Penalty, fornecedora de materiais esportivos da Portuguesa, escolheu a grife de moda jovem Cavalera para impulsionar o desenvolvimento da terceira camisa do uniforme. A intenção é usar o novo modelo ainda no Campeonato Brasileiro deste ano. Assim como a Adidas agiu com o Fluminense e o Palmeiras, a escolha final será feita pelos torcedores no site do clube. Como a consultoria de moda foi idealizada por uma grife acostumada às passarelas do mundo fashion, a cor predominante nas quatro opções finalistas é a preta. Os torcedores paulistas simpatizam com a Lusa e a chance de a nova camisa entrar na moda é grande.

2,988 milhões de dólares É o prêmio recebido pelo piloto neozelandês Scott Dixon, ao vencer a última edição da famosa prova de 500 milhas, disputada na penúltima semana de maio, no circuito oval de Indianápolis, Estados Unidos. O valor é recorde histórico do evento.’

INTERNET
Márcia Pinheiro

Inclusão high tech, 30/5

‘Akhtar Badshah é arquiteto, paisagista e artista plástico, além de dirigir os programas comunitários globais da Microsoft. Está há apenas quatro anos na empresa e tem uma vasta experiência em organizações não-governamentais (ONGs). Acompanhou a criação do Banco dos Pobres, em Bangladesh, pelo Prêmio Nobel da Paz Muhammad Yunus.

Indiano de Mumbai, Badshah esteve no Brasil na última semana de maio, para se inteirar das iniciativas locais patrocinadas pela Microsoft. Daqui, segue para a Argentina, o Equador e a Venezuela.

Em conversa exclusiva com CartaCapital, ele enfatizou os conceitos de parceria e cooperação para o desenvolvimento econômico e cultural dos excluídos digitais, ainda a vasta maioria da população global. Nega que a Microsoft imponha um modelo ao mercado e admite uma convivência pacífica com o sistema operacional livre Linux, desde que crie empregos e oportunidades aos cidadãos.

CartaCapital: Qual o objetivo de sua visita ao Brasil?

Akhtar Badshah: Eu dirijo os programas comunitários da Microsoft, por meio de investimentos diretos, do encorajamento dos nossos funcionários para se engajar nas iniciativas, para gerar benefícios econômicos e sociais em termos globais, especialmente na área de Tecnologia da Informação. Minha principal atividade é viajar por todo o mundo para visitar os nossos projetos. Para entender as instituições e parceiros locais. Ter melhor percepção do que são, como trabalham. Isso inclui os líderes políticos, empresariais e comunitários, para compreender o papel da Microsoft nos programas regionais.

CC: E o principal projeto que a Microsoft tem no Brasil hoje?

AB: Um dos nossos principais projetos globais aqui é o trabalho que desenvolvemos em telecenters com os governadores, em comunidades carentes. Lugares onde os cidadãos de baixa renda possam ter um porto seguro e amoroso para aprender habilidades básicas no setor de tecnologia. É uma oportunidade de ascensão para eles.

CC: E a porcentagem do investimento a empresa tem nessas parcerias?

AB: Não há um porcentual específico. A Microsoft gosta de trabalhar com parceiros, como com organizações não-governamentais. Por exemplo, a ONG Oxigênio obtém recursos de várias fontes, incluindo a nossa empresa. Outra iniciativa é o Comitê para a Democratização da Informática (CDI), com quem trabalhamos há dez anos. Em São Paulo, estamos envolvidos em programas com associações e o estado, para assegurar, por exemplo, que computadores não mais usados em empresas sejam doados para as escolas. Nossa parte é ensinar os jovens a manejar, manter e consertar as máquinas. Há vários outros exemplos, como a parceria com a Fundação Ayrton Senna e com a Telefônica.

CC: Visivelmente, há um boom de empresas que repentinamente começaram a se preocupar com os pobres. Em muito porque soa bem o conceito de governança corporativa, que agrada aos investidores em bolsas de valores. Virou moda financeira ajudar comunidades e se preocupar com o meio ambiente, por exemplo.

AB: A observação é justa. É preciso monitorar esse fenômeno. Jornalistas, ONGs e federações empresariais deveriam estar sempre atentos à motivação da companhia. No caso da Microsoft, faz parte do nosso DNA. A empresa faz isso desde 1983. É uma demanda de nossos funcionários. Cada indivíduo tem uma preocupação bem específica de como participar de voluntariado, por exemplo. Quando observamos a proliferação da tecnologia, há sete anos, chegamos à conclusão de que precisávamos de um foco global. Uma companhia engajada na questão da inclusão digital. Porque, sem acesso à informação, a disparidade entre ricos e pobres se acentua. Como somos parte da revolução da Tecnologia da Informação, temos de nos importar em como ajudar os cidadãos pobres do mundo. Você tem razão, muitas empresas fazem isso porque querem lucro. Não são filantrópicas. Mas existe um sentido para a companhia e os seus funcionários. Acredito que a Microsoft pode ajudar as pessoas a encontrar emprego e a progredir na vida. Somos apenas um pedacinho do quebra-cabeça para eliminar a pobreza no mundo.

CC: O senhor trabalha na Microsoft há apenas quatro anos. Antes, acompanhou a criação do Banco dos Pobres (Grameen Bank), em Bangladesh, do Prêmio Nobel da Paz Muhammad Yunus, além de trabalhar em ONGs, como a Digital Partners, entre outras. Como foi essa experiência?

AB: Conheci o professor Yunus nos anos 1980, ainda era estudante e sempre fui fascinado por seu trabalho. Acredito que conceder crédito para os excluídos e trabalhar com eles, para mudar suas vidas e as das próximas gerações, foi muito importante para a minha educação. Eu vejo essas questões com olhos de ONG, porque foi onde passei a maior parte da minha vida profissional. Tornei-me, de alguma forma, uma ponte entre as necessidades das ONGs e o que as corporações podem ou não fazer. Sou um privilegiado por ter estado dos dois lados.

CC: Como a Microsoft está envolvida no projeto do governo federal do One Laptop for Child (Um Laptop para cada Criança)?

AB: Conheço o trabalho que o professor Nicholas Negroponte, do MIT, desenvolve. É claramente um projeto para reduzir o custo do computador, que tem propósitos educacionais e pode alcançar uma enorme população excluída digitalmente. A discussão sobre o preço, se são 100 ou 200 dólares por aparelho, é irrelevante. Porque, quanto maior alcance tiver o projeto, menor será o custo. A Microsoft tornou-se parceira do projeto, ao oferecer o Windows como plataforma. O fato foi anunciado em maio. Claro que isso levará algum tempo para colocar o programa computadores para crianças em áreas selecionadas, como no Brasil.

CC: Há uma imensa discussão sobre o monopólio da Microsoft na área de tecnologia, que imporia as regras do mercado. Como o senhor avalia o poder da companhia, que pode sufocar empresas menores que teriam condições de oferecer algo bom e mais barato?

AB: Este é um dos grandes mitos atuais. É uma falsa premissa. Você não pode comprar tudo na Microsoft. Temos parceiros que vendem por nós, que usam nossa plataforma para criar novos produtos. Temos 700 mil parceiros que trabalham conosco no mundo inteiro. São companhias locais e pequenas, que criam produtos, geram empregos e ganham dinheiro que permanece em seus países. Para cada dólar que a Microsoft ganha, os parceiros conseguem de 6 a 16 dólares, a depender do Produto Interno Bruto do país. Fazemos parte de uma indústria de 412 bilhões de dólares. Nossa parte nesse montante é pequena. Dizer que sufocamos os pequenos é uma falsa percepção.

CC: E o software livre Linux?

AB: Há valor em tudo o que é criado. Dá chance às pessoas de fazerem escolhas. E este é o melhor dos mundos. Se criar desenvolvimento, é ótimo. Acho que o Linux pode coexistir com a Microsoft. São conceitos diferentes.

CC: O senhor é arquiteto e urbanista. Também artista plástico (http://www.pugmarks.com/gallery/akhtar/index.htm). O que a arte significa para o senhor?

AB: Eu desenho e pinto desde criança. Meu tio é um dos maiores artistas vivos na Índia. A arte é um pedaço extremamente importante da cultura e da sociedade. Quando vi os projetos na Vila Madalena, em São Paulo, pensei: isso é criatividade, que direciona a energia dos cidadãos para um caminho correto. A arte é parte da minha vida.’

CÉLULAS-TRONCO
Luiz Antonio Cintra

O Estado laico venceu, 30/5

‘Ainda são incertos os avanços terapêuticos do uso de células-tronco de embriões de seres humanos no tratamento de doenças degenerativas ou em transplantes de órgãos, duas frentes de estudo tidas como promissoras pelos especialistas. Certo é que a decisão a favor das pesquisas científicas na área serviu para reafirmar a separação entre o Estado laico e as diversas religiões, a começar pela Igreja Católica, conforme prescreve a Constituição Federal. Um bom motivo para a quinta-feira 29 entrar para os anais da história, como anteciparam alguns ministros do STF, já que se tratou de avaliar a proteção jurídica à vida, cuja inviolabilidade é garantida pelo texto constitucional.

Para além dos aspectos religiosos, também pesou – e muito, segundo alguns ministros – a pressão da indústria de biotecnologia, de olho nas possibilidades econômicas embutidas na decisão. Como no caso das patentes de medicamentos que poderão ser desenvolvidos a partir das pesquisas com células-tronco. Também houve quem visse no resultado um movimento rumo à liberação do aborto no País.

Em mais de uma ocasião os ministros deixaram entrever o peso da responsabilidade que lhes coube. Pela primeira vez na história da instituição uma audiência pública foi convocada para discutir um processo. Em abril de 2007, 30 especialistas – a maioria biólogos e médicos, mas também alguns advogados especializados em direitos humanos – foram a Brasília prestar esclarecimentos, dada a complexidade do tema.

Diante de um plenário lotado e uma audiência poucas vezes vista pelo Supremo, os 11 ministros se dividiram. Seis rejeitaram completamente a Ação Direta de Inconstitucionalidade, ajuizada em 2005 pelo então procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, poucos meses após a autorização dada pelo Congresso. Fonteles argumentou que o artigo 5º da Lei de Biossegurança ia contra o espírito da Constituição, pelo fato de as pesquisas matarem o embrião ao recolher o material genético, o que equivale à realização de um aborto. O procurador contou com o apoio imediato da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que neste ano incluiu o tema em sua tradicional campanha anual. Na mídia, juristas e alguns poucos biólogos e médicos também argumentaram a favor da tese vencida.

Cinco ministros foram favoráveis à constitucionalidade do artigo 5º, e portanto a favor da liberação das pesquisas, porém mediante a imposição de restrições. A intenção de alguns desses ministros, como ficou evidente para quem assistiu ao acalorado debate após a leitura dos votos, era criar um órgão federal que regulasse as pesquisas.

O objetivo era incrementar um texto considerado demasiadamente enxuto diante de tantas questões de fundo, resultado, avaliam alguns ministros, do fato de o artigo 5º ter sido incluído às pressas em meio a uma legislação originalmente criada para regular a produção e comercialização de alimentos transgênicos.

A Lei de Biossegurança impõe algumas condições. Permite apenas a utilização de embriões fertilizados in vitro, congelados há mais de três anos ou aqueles considerados impróprios para a fertilização uterina. Em todos os casos, é necessária a autorização prévia e expressa dos pais.

‘Foi uma decisão histórica, produto de muita ponderação e análise. No conjunto, ficou evidente a responsabilidade de quem faz as pesquisas, no sentido de incluir aspectos sociais’, afirmou o ministro Eros Grau.

O esforço contrário à liberação das pesquisas com células-embrionárias não surtiu os efeitos esperados. Nem mesmo o voto do ministro Carlos Alberto Direito, católico fervoroso, foi abertamente favorável à tese defendida pelos religiosos. Ainda que tenha argumentado, como fez a CNBB, que tratava o caso a partir de uma perspectiva estritamente jurídica. Em vez de acatar a tese da inconstitucionalidade, investiu em uma interpretação da lei que favorecesse sua linha de argumentação, segundo a qual o óvulo fecundado carrega em si a ‘vida em potência’. Estaria, portanto, protegido pela Constituição, que garante a inviolabilidade da vida.

A sessão no STF ainda não havia sido formalmente concluída, quando a CNBB divulgou nota, na qual lamentou o resultado da votação. ‘A decisão revelou uma grande divergência sobre a questão em julgamento, o que mostra que há ministros do Supremo que, neste caso, têm posições éticas semelhantes às da CNBB. Portanto, não se trata de uma questão religiosa, mas de promoção e defesa da vida humana, desde a fecundação, em qualquer circunstância em que esta se encontra.’

Um dos juristas que se manifestaram contrariamente às pesquisas com células-tronco embrionárias, Ives Gandra Martins, professor da Universidade Mackenzie, faz coro com a CNBB, ao chamar a atenção sobre os cinco votos dissidentes. ‘Ficou comprovado que cinco dos 11 ministros entendem que a vida começa na concepção. O Supremo deu uma interpretação que não é a que eu gostaria, mas eu sou um simples advogado’, diz.

Entre os cientistas e médicos, a reação foi outra, diante da possibilidade de voltar à bancada científica para desvendar os mistérios das células-tronco, chamadas pluripotentes pela capacidade de se especializarem nos mais variados tecidos do corpo humano. ‘É um incentivo para a pesquisa no Brasil. Além de uma esperança para o tratamento das doenças degenerativas, em especial às doenças neurodegenerativas, porque as pesquisas com células-tronco adultas jamais conseguiram produzir células do sistema nervoso central’, afirma Salmo Raskin, presidente da Sociedade Brasileira de Genética Médica.

Chefe do Laboratório de Genética Molecular da Universidade de São Paulo, a biofísica Lygia da Veiga Pereira participou da audiência pública convocada pelo Supremo. Agora, festeja a liberação das pesquisas e acredita que os especialistas terão condições de levantar os recursos necessários. A pesquisadora também considera que a liberação do uso de células embrionárias não deve limitar os horizontes dos cientistas. ‘Podemos e devemos investir em diversos tipos de pesquisa. Só não posso admitir que me obriguem a pesquisar usando apenas células adultas. Por mais que tragam resultados, não se comparam com o potencial das células-tronco embrionárias.’

Ao contrário do que pode sugerir a reação da mídia, nem toda a comunidade científica vê com bons olhos a decisão do STF. Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Cláudia Batista manifestou-se em mais de uma ocasião pela utilização apenas das células adultas. Para ela, os resultados neste caso podem ser mensurados, ao contrário do que acontece com as pesquisas em células de embriões, cuja utilização implicaria ‘extrapolar os limites éticos’.

Para a ONG Conectas Direitos Humanos, também ouvida na audiência pública, a decisão é importante também por colocar o Brasil ‘numa posição de vanguarda no tema, ante as demais cortes do mundo’. Na Itália, a pressão do Vaticano venceu. Lá existe uma lei que proíbe expressamente o uso de células embrionárias. ‘Esses embriões, cujo sistema nervoso central nem sequer começou a se formar, e que se demonstram inviáveis, não podem ser equiparados moral ou juridicamente a uma pessoa, enquanto experiência existencial única, fecho de emoções, sentimentos e potencialidade de uma existência autônoma’, avalia Oscar Vilhena Vieira, diretor-jurídico da Conectas.’

MÚSICA
Pedro Alexandre Sanches

Música popular?, 30/5

‘Era uma vez uma sigla chamada MPB. Designava uma tal ‘música popular brasileira’ e se tornou moeda corrente a partir dos anos 1960, quando adotada por toda uma geração universitária de compositores, cantores e admiradores. Décadas adiante, a sigla pouco a pouco se encastelou. Isolou-se de gêneros supostamente ‘inferiores’, blindou-se como num condomínio fechado de bairro nobre. Entrou em crise, até de identidade. Quem faria a MPB de 2008? O rococó Djavan ou a simplória Banda Calypso? O bissexto João Gilberto ou a onipresente Ivete Sangalo? O que seria MPB em 2008? O banquinho-e-violão em redutos exclusivos do eixo Rio-São Paulo ou o pop que corre por fora da indústria e lota arenas nas periferias do Brasil?

A resposta seria tudo isso ao mesmo tempo, caso a sigla MPB tivesse resguardado o alcance do pomposo nome composto. Talvez não seja quase nada, tal é a tendência ao confinamento que passou a acompanhar os termos ‘música’, ‘popular’ e ‘brasileira’, quando colocados lado a lado. ‘Criou-se esse termo MPB como se fosse um tipo de música, o que acho inadequado, apesar de estar consagrado’, afirma o historiador cearense Jairo Severiano, autor de um livro recém-lançado que, por sinal, leva no título o termo fatídico, Uma História da Música Popular Brasileira das Origens à Modernidade (Editora 34, 504 págs., R$ 64). ‘É uma sigla. Deveria ser usada para designar a música de qualquer gênero, moderna ou antiga, boa ou ruim. Mas passou a ser a música popular brasileira de elite.’

Hoje automático, o uso da expressão perde de vista o fato de que a sigla é uma invenção, e que nem sempre houve sentido em usá-la, ou mesmo em discriminar a música entre ‘popular’ e ‘erudita’, como se fossem pólos opostos, incompatíveis. O estudo de Severiano parte do compositor mulato Domingos Caldas Barbosa, cantor de modinhas e lundus para a aristocracia de Portugal nos anos 1700. Não era rotulado de ‘popular’ ou ‘erudito’, mas, como relata Severiano, atraía manifestações iradas como a do historiador português Antônio Ribeiro dos Santos: ‘Eu não conheço um poeta mais prejudicial à educação (…) do que este trovador de Vênus e Cupido’.

Segundo Severiano, a querela entre ‘populares’ e ‘eruditos’ já era pronunciada na década de 1930, época de avanço do cinema falado, rádio, disco e a primeira grande geração de músicos ‘populares’ no Brasil, de Silvio Caldas e Carmen Miranda. ‘Fui adolescente nos anos 40, e na minha família havia um preconceito terrível contra a música popular, como havia na classe média e principalmente na alta. Só consideravam música o que era de concerto. Esse ente já nasceu com a conotação de inferioridade perante a música clássica.’

Espezinhada pelos ditos ‘eruditos’, a música ‘popular’ iniciou sua própria trajetória de elitização em 1958, com o surgimento da bossa nova. Tom Jobim incorporou Villa-Lobos, João Gilberto absorveu o jazz e os universitários dos anos 60 deram partida à sigla MPB, que mais tarde hostilizaria subliminarmente subgêneros ‘menores’, como samba, rock, música caipira ou romântica. A consolidação de guetos levou criadores e consumidores a fazerem vista grossa a ‘detalhes’ fora de lugar nas gavetas classificatórias, como a sofisticação contida em gêneros ‘populares’ como samba e choro, ou a banalidade inerente a muitas letras da bossa nova.

De acordo com Severiano, muito da MPB operante ainda hoje tem raízes no samba-canção dos anos 50, em duas vertentes cada vez mais distanciadas uma da outra. A ‘moderna’ nasceu da obra então acariocada do baiano Dorival Caymmi e de nomes como Lúcio Alves e Dolores Duran. Originou a bossa nova, que derivou para a canção de protesto, a tropicália e a MPB. A vertente ‘tradicional’, de autores como Herivelto Martins e Lupicinio Rodrigues, seguiria com os cantores Anísio Silva e Altemar Dutra e redundaria, segundo ele, na música ‘cafona’ e ‘brega’ das décadas seguintes.

A distinção oculta um curioso paradoxo. Cafonas e bregas (e sertanejos, pagodeiros, axezeiros, funkeiros) formulariam a música efetivamente mais difundida do Brasil. Mas o termo ‘popular’ seria seqüestrado por segmentos primeiro mais sofisticados, depois mais herméticos e por fim menos populares.

Diretor da gravadora paulista Trama, João Marcello Bôscoli sai em defesa do ‘P’ de MPB: ‘Entendo o termo ‘popular’ não como comercial ou de massa, mas como não erudito. É sabido que a maioria dos artistas da MPB não tem compromisso em construir hinos à multidão’.

Ele lamenta a dissolução da sigla: ‘A bossa nova foi feita e depois não houve prosseguimento. O mesmo aconteceu com a tropicália. A indústria fonográfica perdeu a bossa e a tropicália, e também a MPB. Mas a indústria não é diferente do resto do País. Somos um país que não consegue construir’. E defende a permanência do termo: ‘MPB é um nome legal, embora hoje lembre música de festival, ou sofisticada, feita pela elite daqueles artistas que a gente sabe quais são. Mas vale a pena pegar a sigla e jogar fora? Só se vai gastar dinheiro para criar outro nome’.

O jornalista e escritor paulista Zuza Homem de Mello sustenta que são menos distintos atualmente os limites entre MPB e música clássica: ‘A barreira é muito menor. A música de Luiz Tatit ou Guinga aproxima-se muito mais da de Villa-Lobos ou Radamés Gnattali que daquilo que hoje tem apelo pop, que é Ivete Sangalo, Ana Carolina. A atração delas é numa outra região, às vezes você nem sabe o que as letras querem dizer’.

Ele situa a MPB perto do jazz, como música para ser ouvida, e não dançada. E mais ligada, talvez, dos gabinetes que das multidões. Outro paradoxo, pois o jazz nasceu dançante, ‘popular’, como o próprio Zuza esmiúça em Música nas Veias (Editora 34, 360 págs., R$ 46). A MPB talvez repetisse esse destino, de lenta viagem da explosão comercial à conversão em peça de museu. E os salões que já tocaram jazz, gafieira e rock hoje tocam funk e tecno. ‘A música dançante sempre foi mutante. O que é hoje não será amanhã’, avalia.

O antropólogo Hermano Vianna reflete sobre a elitização da música ‘popular’ com indagações: ‘Será que a MPB não faz mais canções populares? Mas, se o CD da Vanessa da Mata é MPB, aquela canção com Ben Harper (um pop de alta rotação no rádio) não é popular? E será que MPB significa alguma coisa ainda? Significa o quê?’ E arremata: ‘A quem interessaria uma definição clara de MPB? Às lojas de discos que não mais existem?’

A cantora Olivia Hime, diretora da gravadora carioca Biscoito Fino, diz receber diariamente cinco discos de jovens que afirmam fazer MPB. ‘Querem dizer que fazem música nos moldes de Chico Buarque e Edu Lobo, e não axé, rock ou hip-hop.’ Ela reconhece os paradoxos da sigla: ‘É contraditório. Essa música passa a não ser popular, pois não é mais cantarolada’.

Para quem não se ajusta bem aos cânones da MPB, o sentimento parece ser de inadaptação. ‘Existe uma separação, né?’, pergunta a compositora e cantora carioca Teresa Cristina, próxima ao samba. ‘Leio em notinhas e pesquisas por aí, ‘Chico Buarque, compositor’, ‘João Nogueira, sambista’. ‘João Bosco, compositor’, ‘Nei Lopes, sambista’. Quem escreve nem se dá conta da separação.’ Preocupada com a música feita mais ‘para separar’ que ‘para unir’, acrescenta: ‘Sinto que há uma resistência de assumir o samba como MPB, que as pessoas gostam dessa divisão como idéia de sofisticação. ‘Tal coisa não é mais samba, virou MPB porque se sofisticou’.

‘Essa sigla me incomoda muito, porque o Brasil que vejo é muito diferente. A MPB vende um Brasil que não é o Brasil, com papel celofane, sofisticado’, reivindica o paulista Leandro Lehart, ex-integrante do grupo de pagode Art Popular e entusiasta da mistura de samba com outros gêneros. ‘MPB é como se fosse um clube, a que algumas pessoas têm acesso e outras, não. Ouvi de radialista que minha música não toca em rádio de MPB porque sou pagodeiro, ‘as pessoas vão se incomodar de ouvir aqui’. Não faço questão de fazer parte dessa sigla, ela não acrescenta nada. Meu trabalho é popular, de massa’, afirma, do alto de agenda de shows lotados Brasil afora, nos quais vende o CD Mestiço, lançado artesanalmente, sem gravadora.

‘Minha geração usou o samba porque pandeiro é mais barato que bateria, um cavaquinho custa menos que um contrabaixo. Sou fã de Raul Seixas, James Brown, Djavan, e economizava para comprar os tamborins de plástico que o Mappin anunciava na tevê’, completa, remetendo à cisão social por trás das músicas.

‘Nunca na minha vida usei esse termo. Podem me colocar em qualquer outro lugar, só não quero me localizar na MPB’, afirma o paulista Luiz Tatit, cantor, compositor, acadêmico e escritor. Autor de música elaborada na tradição de Noel Rosa e Lamartine Babo, ele explica a aversão ao termo: ‘Para mim, MPB tem uma conotação muito conservadora. Denota algo que parece de qualidade, mas é estéril, porque não pode se misturar, não pode ser rap, nem reggae, nem rock’.

Refere-se a uma ‘atitude erudita’ no topo da MPB e faz ressalvas ao modo como se costuma discriminar canção ‘sofisticada’ de ‘comercial’. ‘A música brega é muito mais acessível e tem sempre um grande público, uma perenidade absoluta. A MPB se encaixa num segmento de elite, como se fosse mais elaborada. E não é, porque, quanto à melodia, é tudo mais ou menos a mesma coisa. A avaliação da qualidade muitas vezes está fora da música, é ideológica.’

Zuza Homem de Mello faz avaliação de ouvidos abertos ao futuro: ‘Tenho notado que, no interior do Brasil, há manifestações de jovens voltados à música local, ao folclore, de uma seriedade incrível. São violeiros de um preparo técnico como nunca vi antes. No Rio e em São Paulo, vivemos cercados, numa redoma, e não vemos nada disso’.

O campo de força da chamada ‘qualidade’ musical foi tensionado de modo dramático pelos tropicalistas de 1968. ‘Minhas tias diziam: ‘Esse negócio de vocês não é música, é ritmo’. Para elas, éramos a barbárie’, diz o baiano Tom Zé. E lembra um episódio do festival de 1969: ‘Tínhamos o gosto pela música caipira, que não se podia contar a ninguém. Quando eu e os Mutantes fizemos 2001, uma música caipira moderna, ela foi apaixonadamente odiada por Hebe Camargo. Ela não podia nem ouvir, porque era o passado que não queria lembrar. A platéia reagiu como Hebe, e 2001 teve primeiro lugar no júri e último no júri popular’. A dissociação acontecia também na cabeça do público, que afinal podia rejeitar 2001 porque era ‘caipira’, ou porque era ‘moderna’, ou por ambos os motivos, espalhados por um salão onde a música tentava simular uma democracia, em plena ditadura.

Dois anos antes, em 1967, o bossa-novista Sérgio Ricardo quebrara o próprio violão durante a apresentação do samba Beto Bom de Bola, vaiado por uma platéia participativa e radical. Era tempo de guerra e, como assinala Tom Zé, ‘pela teoria da guerra, países vizinhos sempre brigarão’. A MPB iniciava a viagem da glória ao gueto e os estilhaços das batalhas de então se fazem sentir no território de facções beligerantes que em 2008 a música brasileira ainda não consegue deixar de ser.’

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