RIO GRANDE DO SUL
O PIG e a imprensa gaúcha
‘No Rio Grande do Sul, temos uma imprensa que atua de modo militante e conservador desde a saída da Ditadura. Pode-se afirmar, por exemplo, sem correr o risco de estar dizendo um absurdo, que a RBS, tendo a frente o jornal Zero Hora, como uma espécie de comitê central de campanha, já elegeu dois de seus quadros para o governo estadual. Primeiro, Antônio Britto (PMDB), em 1998. Depois, Yeda Crusius (PSDB), em 2006. A unir os dois governos tivemos a mesma orientação privatista, concentradora e modernizante que a esquerda gaúcha tanto combateu como neoliberal.
De fato, Britto e Yeda saíram do anonimato trabalhando nos veículos da RBS. Construíram-se e foram construídos como quadros da empresa. Projetaram-se politicamente nas páginas e nas ondas de rádio e TV do grupo. Além de erigir os dois governadores de perfil nitidamente privatista, o grupo, num certo sentido, também teria sido responsável pela derrota do governo Olívio Dutra (PT) e auxiliado decisivamente Germano Rigotto (PMDB) como alternativa ao PT em 2002.
O PIG no RS é PIM
Principalmente por isto, ou seja, porque no Rio Grande a presença da imprensa na cena política vem de décadas, confesso que demorei a entender a expressão ‘PIG’ – Partido da Imprensa Golpista, popularizada por Paulo Henrique Amorim, entre outros. E ainda estou em desacordo com ela.
O termo é moda e já virou até verbete na Wikipedia. Conforme lá consta, PIG ‘é utilizado de forma genérica e pejorativa para se referir ao jornalismo praticado pelos grandes veículos de comunicação do Brasil, que seria demasiadamente conservador e estaria tentando derrubar o presidente Luis Inácio Lula da Silva e membros de seu governo de forma constante.’ Este fenômeno, baseado no que se lê ultimamente, teria por base a crise dos partidos políticos e da política de um modo geral. Os veículos estariam passando a ocupar o vazio deixado pelos partidos em decadência, sendo eles próprios partidos ou fazendo às vezes de partidos.
Meu desconforto com o PIG tem raízes regionais. Não existe novidade em ter uma imprensa que atua politicamente e de forma conservadora no Estado. Isso sempre foi assim. O novo por aqui, como já comentei há algumas semanas, é que grupos distintos da mídia gaúcha estão tendendo a uma posição única, particularmente no que diz respeito às denúncias de corrupção no governo Yeda. Mas isso não é PIG – isso é só unidade de classe, fechamento de posição, defesa dos seus. Um movimento inusitado, sim, mas eu diria até compreensível. No Rio Grande do Sul, de fato, o que move a mídia não é um espírito golpista. O que move a RBS e os grupos menores é o medo de que Lula e Tarso sejam vitoriosos e o processo de democratização da comunicação se acentue, atingindo seus interesses regionais.
Olhando desse modo, a imprensa gaúcha está mais para PIM (Partido da Imprensa com Medo) do que para PIG. Capisco?
Os pingos nos is
Por outro lado, olhando o cenário nacional, sinceramente não vejo onde a imprensa brasileira tenha mudado para passar a ser condenada como golpista. Conservadora, sim, ela sempre foi. Sempre que teve interesses contrariados, atuou politicamente e tratou de colaborar para a derrubada de presidentes e governos. Por que agora considerá-la golpista? Ou ela sempre foi golpista, ou é um erro, um equívoco deseducativo utilizar agora o termo.
A mudança havida, real, no cenário nacional, é o sucesso do governo Lula. Além de ser um governo com posições opostas às dos grupos que dominam a mídia, é um governo bem sucedido que está democratizando as verbas na comunicação. Ou seja, é um governo que está mexendo onde dói no ser humano: no bolso dos bacanas da mídia.
Junte-se a isso o crescimento exponencial da internet (que também retira poder da mídia tradicional) e temos aí um quadro novo: o desvario da mídia não se deve a ela estar substituindo os partidos, mas sim ao fato dos seus partidos não estarem mais conseguindo lhes dar proteção. A denúncia do PIG pode ser boa, e em geral politicamente justa. Pode revelar a total falta de compromisso dos grandes veículos com a ética da informação. Mas é preciso entender que, hoje, quanto mais a mídia mente, mais isso é sinal de desespero e perda de poder. Isso não é sinal de fortalecimento. É fraqueza.
De fato, se tivermos a compreensão de que a família Sirotsky tem posições ‘fortemente neoliberais, internacionalistas e modernas de direita’, como defende um amigo meu, a RBS nunca teve no Rio Grande do Sul um correspondente político partidário alinhado com suas posições e foi obrigada a realizar sua própria defesa desde sempre. Viria daí sua veia ‘piguista’ desde os anos 80. Contudo, estar agora, na prática, acobertando um governo considerado corrupto e incompetente pela maioria da população gaúcha não é um sinal de poder, mas uma prova de sua imensa fraqueza. Inversamente, o fato da mídia nacional estar combatendo Lula não seria sinal de força, mas sim demonstração de pavor e medo diante da mudança do país.
2010 vem aí
É complicado escrever coisas como essa, mas me cobrem. Em 2010, o papel da RBS no processo eleitoral gaúcho, diferente de todas as eleições até aqui, não será mais tão decisivo quanto sempre foi. Com a crise dos seus partidos e a democratização da comunicação propiciada pelas novas tecnologias, a RBS está se tornando apenas mais um ator no processo gaúcho. E um ator tão ou mais frágil que os partidos de seu arco político.
O quadro sucessório gaúcho está caminhando para a construção de um novo cenário, configurado não mais pelos setores que sempre dominaram a política no Estado, mas pela dinâmica dos novos agentes sociais emergentes no novo Brasil. Em volta de Porto Alegre, que sedia o governo Yeda Crusius (PSDB) e hoje é governada por José Fogaça (PMDB), existe uma legião de governos populares nas cidades periféricas da região metropolitana. RBS, Yeda Crusius e José Fogaça são adversários destes governos. A luta no Rio Grande do Sul em 2010 será entre o centro e a periferia, entre a classe A e a classe C, entre a turma que frequenta a rua Padre Chagas em Porto Alegre e o povo que vibra e decide os destinos do Big Brother em suas casas nas periferias da capital.’
FRANÇA
Ameaça de guilhotina
‘Chama-se ‘l’affaire Clearstream’, e na França é considerado o julgamento político da era moderna. Ao que tudo indica, no alto escalão do tablado político francês pairam paranoicos capazes, na calada da noite, de enterrar facas nas costas de seus inimigos. A mídia tem comparado o atual julgamento, na mesma Grande Chambre du Palais de Justice, a passos da Catedral de Notre-Dame, ao da rainha Maria Antonieta, em 1793: sua sentença foi a guilhotina.
Em jogo está a reputação do ex-premier Dominique de Villepin, acusado de estar por trás de uma campanha para macular a imagem de Nicolas Sarkozy e, por tabela, atrapalhar sua ascensão à Presidência em 2007. No banco dos réus também sentarão representantes dos serviços secretos, empresários e um jornalista. O principal acusador, Sarkozy, não testemunhará, pois goza de imunidade política. Se julgado culpado, De Villepin, de 55 anos, poderá pegar até cinco anos de cadeia. E mais uma multa de 45 mil euros.
Com terno escuro, um bronzeado, De Villepin parecia calmo no início do julgamento, na segunda-feira 21. ‘Sei que a verdade prevalecerá’, disse o ex-premier, que nega as acusações. A saga remonta a 2001. À época, juízes começaram a analisar a venda de navios de guerra franceses para Taiwan, realizada em 1991. Um dos juízes recebeu, então, uma carta anônima com 89 nomes que manteriam supostas contas bancárias no banco Clearstream, em Luxemburgo.
Entre nomes de políticos e empresários constava um certo ‘Nagy’ e ‘Bosca’, sobrenomes de família de Sarkozy, cujo pai era húngaro. Bosca e os outros supostos clientes do Clearstream estariam lavando dinheiro obtido em comissões na venda de navios de guerra para Taiwan.
As alegações, contudo, foram logo identificadas como falsas. Sarkozy acusa- De Villepin de ter levado o caso adiante, mesmo sabendo que a lista era falsa. O motivo: De Villepin, protégé do presidente Jacques Chirac, era o favorito para herdar seu posto. Até que ponto De Villepin estaria envolvido no affaire? O espigado ex-premier alega que o ‘anão’, como ele se refere a Sarkozy, é ‘obcecado’. Sua tentativa de vingança não lhe trará frutos. Mas talvez Sarkozy tenha razão em levar o caso adiante.
P.S.: No Brasil, caso semelhante, o das supostas contas de Lula & cia. publicadas pela revista Veja e inventadas pelo banqueiro Daniel Dantas, acabou com uma mera acusação de injúria contra o orelhudo.’
FOTOGRAFIA
Na pior com Walker Evans
‘Sendo a fotografia, como quer a curadora Rosely Nakagawa, a nova caneta, requererá que a vejam, com o tempo, embebida também pelo status da arte. Quem observa o mundo a partir de aparelhos portáteis digitais, celulares e laptops agora sabe que a foto pode constituir uma escrita peculiar como o poema, ambígua na tradição medieval ou intensa à maneira escultural renascentista. São Paulo ferve de exposições fotográficas e, na quinta-feira 1º de outubro, o Museu de Arte de São Paulo recebe uma das mais importantes do ano, aquela em torno do trabalho do norte-americano Walker Evans (1903-1975).
As 120 fotografias canônicas de sua autoria, presentes no Masp até 10 de janeiro de 2010, foram cedidas pela espanhola Fundación Mapfre, em uma ação de permuta que enviará a Madri, na terça 6, a mostra Mirar e Ser Visto, com 50 obras pertencentes ao acervo do museu paulistano. Ter à disposição o que Evans fez pela fotografia, mais ainda, pelo olhar ainda vigente, vale o ingresso de 15 reais, gratuito às terças-feiras.
E o que fez Evans em primeiro lugar foi dar uma face e uma história aos Estados Unidos dos anos 30. Antes que, em 1928, o artista empunhasse pela primeira vez sua máquina fotográfica, não havia as borracharias e as barbearias de madeira que emoldurariam os discos de blues e até mesmo a arte sombreada de realismo de um Robert Crumb, grande citador de Walker Evans. Principalmente, não existia, antes daquelas fotos, a mais tenra suspeição pública de que a pobreza rachasse a pele branca dos camponeses da Virgínia, da Pensilvânia ou dos estados do Sul.
Evans fez esses registros como encomenda da Farm Security Administration, entre 1935 e 1937. Este foi um dos primeiros órgãos do New Deal do presidente americano Franklin Delano Roosevelt, desejoso de reduzir a zero a fome dos agricultores durante a crise. A FSA era dirigida pelo economista Rexford Tugwell, que em 1935 nomeou Roy Stryker, seu ex-assistente de ensino, para chefiar a Seção Histórica. Os dois acreditavam que a fotografia poderia exemplificar o que a economia apenas demonstrava em números. O horror.
Depois de ver que Evans não hesitara, em 1933, em clicar crianças pedintes ao lado da mãe, na Cuba do ditador Geraldo Machado, Stryker chamou o fotógrafo a investigar a desolação americana. Evans, que com suas fotos desejava ser ‘culto, afirmativo, transcendente’, descobriria, por meio de seu trabalho, a América terrível.
Inicialmente ele recebeu carta-branca para exercer a contundência, e a isso deu o nome de ‘liberdade subsidiada’. Em 1934, elaborou uma lista de imagens que gostaria de fotografar, catalogada pelo escritor Geoff Dyer em O Instante Contínuo – Uma história particular da fotografia (Companhia das Letras). As prioridades de Evans: ‘Pessoas, todas as classes, cercadas por bandos da nova gente na pior; automóveis e a paisagem automotiva; arquitetura, gosto urbano americano, comércio, pequena escala, grande escala, clubes, a atmosfera urbana, o cheiro da rua, as coisas odiosas, clubes femininos, pseudocultura, má educação, religião em decadência; o cinema. Comprovação do que as pessoas da cidade leem, comem, veem para se divertir, fazem para espairecer e não conseguem. Sexo. Publicidade. Muitas coisas mais, sabem o que quero dizer’.
O sucesso de Evans levou Stryker a pensar, ele também, em organizar o olhar dos outros. A fotografia não só era o meio certo de exercer o alerta, mas o próprio poder. Eis um trecho do roteiro de imagens de Stryker para o ‘Verão’: ‘Carros abarrotados trafegando em rodovias. Frentista de posto de gasolina enchendo o tanque de carros esportes e conversíveis. Jardins rochosos: guarda-sóis; barracas de praia; praias de areia com ondas mansas; cristas espumantes lançando borrifos sobre um barco a vela no horizonte distante’.
Evans era um escritor. Stryker, um calculista. O fotógrafo seguiu o patrão até onde isso lhe foi útil. Na época, as listas funcionavam como pauta para os fotógrafos, que em geral não viam problema em obedecê-la. A imagem era entendida então como reforço ilustrativo à palavra, algo que ocorrera com a pintura do Ocidente em certa fase. Mas os quadros evoluíram na direção estrondosa da arte. Evans, que estudara Literatura Francesa e morara em Paris, a conhecia e queria expressar tal beleza plástica em seus negativos. De maneira geral, quando buscava ser mais do que literal, a fotografia, americana ou europeia, apelava aos efeitos de estúdio e às poses dramatizadas, nunca à vida nas ruas.
Contudo, ainda que se ocupasse das ruas, Evans as exibia sem movimento. Há mesmo um drama imobilista nas imagens de Evans desse período (e a exposição do Masp supera esse instante, ao mostrar sinais e grafismos que ele recortou da cidade americana). Seus personagens olham o fotógrafo fixamente, criticam-no, reprovam sua presença. Anos depois, com a disseminação das câmeras portáteis, esse modo inflexível de retratar se tornou raro. O fotógrafo transformou-se em dançarino ao ritmo da cena ou, como diria Henri Cartier-Bresson, do instante, e seus personagens distanciaram-se de quem os observava.
Naqueles anos 30, contudo, a imobilidade, o não ter para onde ir, era o que Evans percebia nos retratados. E ele queria deixar claro que via e compreendia sua situação. A América estava estancada como aqueles personagens, à espera de uma saída. Retratar olhares fixos, nesse contexto, fazia todo o sentido.
Evans trabalhava na contramão, e não só ele. Pela FSA atuaram Dorothea Lange, Russell Lee, Arthur Rothstein. Dorothea, por exemplo, fazia as próprias listas de assuntos a ser registrados, sem se importar se entravam em choque com a imaginação dos editores. Ela considerava ótimo atuar ‘completamente sem plano’ e só clicar ‘aquilo a que se reage de modo instintivo’. ‘Saber de antemão o que se está procurando nos faz fotografar apenas nossas próprias concepções prévias, o que é muito limitador’, ela dizia.
Aula de jornalismo ou de saber? Em 1936, Evans aceitou cooperar com o crítico de cinema, roteirista e escritor James Agee (1909-1955) em um artigo encomendado pela revista Fortune no qual retratariam as condições de vida de famílias de meeiros do Alabama, no sul. Depois de oito semanas nas quais registraram a miséria de três famílias, designadas por pseudônimos, o trabalho da dupla foi rejeitado para publicação. Mas em 1941 o artigo e as fotos integraram um livro, Elogiemos os Homens Ilustres (Let Us Now Praise Famous Men: Three Tenant Families), que a Companhia das Letras lança em novembro, em comemoração ao centenário de nascimento de Agee. Hoje pérola do jornalismo, o volume fracassou nas livrarias, com 600 exemplares vendidos de sua primeira edição.
O título refere-se a um verso bíblico. E a citação religiosa explica-se porque Agee considerava o trabalho do jornalista uma investigação independente dentro de certos parâmetros de ‘divindade humana’. Seu texto divagava sobre a função intrusiva do repórter, até a questionava. E agia em pleno contraste com a clareza das fotos.
Agee buscava o divino, Evans, o terrivelmente humano. As famílias chiaram contra Elogiemos os Homens Ilustres. Os Burroughs, por meio do filho de Charles, um dos retratados, reclamou que seus parentes foram mostrados pelos autores como incapazes, ignorantes nas trevas.
Evans não trabalhava em seus negativos. Apenas instruía o laboratorista, por escrito, a adotar determinado procedimento em uma cópia. Era um leitor e um escritor apaixonado. Em 1945, integrou-se à equipe de colaboradores da revista Time e, vinte anos depois, à da Fortune. Tornou-se professor da Yale University School- -of Art em 1965 e, seis anos depois, o MoMa fez a primeira exibição de seu trabalho, em uma individual intitulada simplesmente Walker Evans. Morreu em 1975 o maior entre os retratistas da América pobre.’
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