Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Carta Capital


DEBATE
Mauricio Dias


Os barões da mídia


‘Depois de muita hesitação, o presidente Lula abriu caminho para a realização
da 1ª Conferência Nacional de Comunicação, marcada para dezembro. Entra em
pauta, pela primeira vez no Brasil, a discussão sobre a imprensa, suas virtudes
e vícios.


Dois livros, lançados recentemente, ajudam na reflexão sobre o papel da mídia
no Brasil e em toda a América Latina e põem foco em uma questão crucial para a
democracia: o monopólio da informação.


A Batalha da Mídia (Editora Pão e Rosas) é de Dênis de Moraes, jornalista e
doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ. A Ditadura da Mídia (Editora Anita
Garibaldi) é do jornalista e secretário de comunicação do PCdoB, Altamiro
Borges.


Os dois textos abaixo, escritos pelos dois autores a pedido do colunista,
iluminam melhor a compreensão dos livros que escreveram.


Dênis de Moraes:


‘O cenário da batalha na América Latina está nítido: de um lado, elites
conservadoras e grupos de mídia que querem manter seu poderio econômico e
político; de outro, governos progressistas empenhados em reverter a exclusão
social provocada por décadas de neoliberalismo. Pela primeira vez, está sendo
contestada a absurda concentração dos setores de informação e entretenimento nas
mãos de um reduzido número de corporações.


Os governos da Venezuela, da Bolívia e do Equador estão travando duras
pelejas contra as violentas campanhas orquestradas, cujo objetivo é o de impedir
mudanças nas regras de concessão de canais de rádio e televisão, as joias da
coroa em termos de faturamento.


No Brasil, as turbulências entre mídia e governo federal são menos intensas,
o que talvez se explique pela hesitação do presidente Lula em alterar a
anacrônica legislação de radiodifusão. Lula parece temer a artilharia dos grupos
midiáticos.


Quando resolveu enfrentar os surrados argumentos contra um suposto dirigismo
que afetaria a liberdade de expressão, conseguiu criar a TV Brasil. Nem a
programação decepcionante da TV Brasil faz diminuir as resistências, pois, no
fundo, o que os adversários desejam desqualificar é um tipo de comunicação não
mercantilizada e mais favorável à diversidade cultural’.


Altamiro Borges:


‘A chamada ‘grande mídia’ exerce hoje brutal ditadura no mundo e no Brasil.
Por aqui, cinco famílias monopolizam o setor. Com suas propriedades cruzadas,
elas comandam emissoras de tevê, rádios, jornais, revistas, internet. Seu poder
de manipulação também é brutal e sempre estiveram envolvidas nos episódios mais
dramáticos da nossa história – seja na conspiração contra Getúlio Vargas, no
golpe militar de 1964, nas iniciativas contra os direitos dos trabalhadores e
contra a soberania nacional na Constituinte de 1988, na fabricação de ‘caçadores
de marajás’ ou nas tentativas golpistas de desestabilização do governo Lula.


Esse poder ditatorial, porém, tem sofrido muitos abalos. Há queda na tiragem
e a audiência das emissoras privadas despenca. A internet possibilita, parcial e
temporariamente, outro tipo de comunicação, mais interativa; sites e blogs se
multiplicam. Veículos alternativos, mais críticos ao pensamento único
neoliberal, também ganham prestígio; rádios comunitárias permitem maior
diversidade informativa e relação com a comunidade.


Na América Latina rebelde, laboratório do neoliberalismo e hoje na vanguarda
da luta por mudanças, governantes progressistas apresentam propostas para
democratizar os meios de comunicação. E enfrentam muita resistência’.’


 


LITERATURA
Rosane Pavam


O código Borges


‘Ele achava que ser amado era uma injustiça. O primeiro romance a ler inteiro
foi Huckleberry Finn, de Mark Twain. Preferia os contos e considerava amorfos os
romances, mesmo o amado Dom Quixote. Mal falava italiano, mas leu e releu
Ariosto. Era exímio nadador e detestava os poetas revolucionários ultraístas,
mesmo tendo sido um. Pensava na batalha de Waterloo como uma vitória. Aos 6
anos, anotou que seu escrito era ‘demasiado melodramático’. Jovem, procurou a
infelicidade e, maduro, cansou-se de tigres, espelhos e labirintos.. Seu pai
escreveu livros e destruiu aquele em que o personagem se mostrava desiludido com
o filho.


Tudo o que ditou Jorge Luis Borges sobre sua vida ao jornalista americano
Norman Thomas di Giovanni, descrito nas linhas acima, retorna depois de nove
anos ao País em Ensaio Autobiográfico (1899-1970), com nova tradução de Maria
Carolina de Araujo e Jorge Schwartz, pela Companhia das Letras. O escrito de 75
páginas ganhou grande reputação com os anos, embora Borges não a tivesse
desejado. Ele temia que os leitores migrassem de suas ficções em favor de um
escrito de circunstância, como esta biografia encomendada.


Ensaio integrava um plano para introduzir o autor no gosto do leitor
americano. Não fora feito de um só fôlego. Nascera de uma edição de textos
próprios e entrevistas concedidas pelo escritor à imprensa. Mas, quando a
revista New Yorker publicou-o pela primeira vez, em setembro de 1970, o sucesso
foi monumental. Ensaio Autobiográfico passou, então, a introduzir a edição
americana de The Aleph and Other Stories e ganhou o status de incontestável. A
partir daquele momento, para fazer qualquer menção ao escritor, seria
imprescindível consultar o texto antes.


Contudo, quão confiável poderia ser o relato biográfico de um autor que
propositalmente, em sua literatura, embaralhou ficção e história? ‘Em Borges, é
como se tudo estivesse desgarrado de todo contexto histórico, para existir em
absoluta autonomia com relação à realidade, sempre avessa, na sua opinião, a
toda espécie de transcrição artística’, escreve o crítico Davi Arrigucci Jr. E o
Ensaio está lá para que o próprio Borges estabeleça um marco para este
procedimento de ‘fraude’. Borges não se via como um autor, já que não acreditava
na possibilidade de que algo novo surgisse em literatura. Era um ‘tradutor’ de
um pensamento antigo.


O conto A Aproximação a Almotásim, escrito em 1935, inaugurou a ideia
literária de atuar entre a falsificação e o pseudoensaio, conta Borges na
autobiografia. Neste conto, ele simula fazer a resenha de um livro publicado em
Bombaim três anos antes. Para sua segunda falsa edição, Borges atribuiu-lhe um
editor real e um prólogo de uma escritora igualmente ‘verdadeira’. Autor e livro
foram inventados.


Borges elaborou o enredo e detalhou os capítulos tomando elementos do
escritor Rudyard Kipling. ‘Aqueles que leram A Aproximação a Almotásim o levaram
a sério, e um de meus amigos chegou a encomendar um exemplar em Londres’, ele
conta neste Ensaio no qual a escrita caminha discreta, demolidora, ora
emocionante, ora divertida. ‘Talvez eu tenha sido injusto com esse conto.
Parece-me agora que ele prefigura e até estabelece o modelo dos contos que de
algum modo me esperavam e sobre os quais se assentaria minha fama como
narrador.’


Por escrever como quem refaz o mundo, por usar a linguagem clara em favor do
mistério, o que o escritor diz terá causado, em alguns leitores, o impacto de
uma doutrina religiosa. Os escritos de Borges, à moda dos quadros
renascentistas, embutiria um código a ser decifrado, uma conduta a ser seguida
pelos iniciados.


O que Borges ensinaria secretamente nos livros, na visão desses leitores? Ele
teria dado a pista para a invenção de coisas como a nanotecnologia, explica a
professora de Teoria Literária e Literatura Comparada Eneida Maria da Silva,
autora de O Século de Borges, reeditado depois de dez anos. ‘Essa corrente diz
que Borges foi um precursor na área científica ao abraçar a ideia de que todos
os livros caberiam em um, como no conto A Biblioteca de Babel’, ela diz.


Borges também teria ensinado secretamente que o futuro do conhecimento
repousaria na virtualidade. Ao construir o pastiche de textos da biblioteca
mundial, ele ressaltaria o caráter artificial da construção artística. Em sua
literatura, os acontecimentos são ilusórios – portanto, virtuais. Finalmente,
como um Francis Fukuyama de vanguarda, Borges teria colocado um ponto final na
história, ele que tantas vezes a falsificara.


Leitores e críticos que pensam assim seriam interessados ou fundamentalistas?
‘Não sei, mas não gosto de ver o Borges nisso’, diz Eneida Maria da Silva.
‘Embora Sigmund Freud dissesse que a literatura estava à frente da ciência,
todos os acontecimentos, históricos ou literários, devem ser considerados em seu
tempo. Não se sabe qual deles é mais importante.’


Eneida estuda os contextos culturais em que obras como as de Borges, Pedro
Nava ou Guimarães Rosa são construídas. Ela saca de metodologia borgeana ao
analisar as conexões do autor com seu tempo. É difícil, por essa razão, explicar
exatamente o que Eneida faz.. A professora chama seu procedimento de ‘crítica
biográfica’. Ela ergue pontes de contato entre escritores no tempo. Cria, para
eles, associações metafóricas ou, como diz, encontros imaginários. ‘E Borges se
presta a isso’, ela crê. ‘Ninguém jamais chegou a um ponto verdadeiro de sua
vida. Tento desconstruir a pretensa autenticidade do relato pessoal’, diz.


Ela narra, por exemplo, o encontro do ficcionista brasileiro Autran Dourado
com Borges em 1970, durante a entrega do Prêmio Interamericano de Literatura
Matarazzo Sobrinho, em São Paulo. O avô de Autran, Ângelo Dourado, lutou na
Revolução Federalista de 1893 ao lado de Gomercindo Saraiva, irmão do caudilho
uruguaio Aparício. Borges conhecia Aparicio, mas achava que Autran falava de
outro personagem, já que o Aparicio de Borges era Saravia, não Saraiva, como se
diz em português. Para Eneida, essa confusão de grafia provaria a distância
entre as duas línguas no mesmo hemisfério. E evocaria outro encontro, que Borges
teve com a literatura brasileira, ao ouvir em um navio, em 1914, a Canção do
Exílio, de Gonçalves Dias..


À véspera da comemoração dos 110 anos do nascimento de Borges, em 24 de
agosto próximo, mais livros querem virar o argentino do avesso. Nem todas as
publicações são criativas como a da pesquisadora Eneida, que vê um ‘verbete
Borges inscrito na suposta Enciclopédia Literária Global’. Ao circular
infindavelmente, ela diz, esse verbete transformaria Borges em ‘alucinação
coletiva’ e eliminaria sua autoria.


Felizmente, para o leitor comum e desinteressado, há o Borges que caminhou
pelas calçadas de Buenos Aires e, vendo os anos passarem, declarou em um verso:
‘O tempo está vivendo-me’. O Olhar de Borges – Uma Biografia Sentimental, de
Solange Fernández Ordóñez, arregaça as mangas para entendê-lo a partir da
aproximação familiar que teve com ele. O livro, lançado na Argentina no ano
passado, chega ao Brasil em primeira edição pela mesma Autêntica.


A pesquisadora é filha de Carlos Fernández Ordóñez, advogado a quem Borges
legou seus cadernos de rascunhos. Nesses volumes, o escritor anotou ideias,
transcreveu textos que lhe interessaram, preparou as aulas que daria e construiu
as memórias para suas conferências, ministradas desde o fim dos anos 1920 até a
perda total da visão, nos anos 1950.


Três meses após a morte de Borges, em 1986, morreu Ordóñez, e sua filha
Solange, desde então, compartilha os cadernos com outros herdeiros. Não pode
reproduzir seu conteúdo, embora tenha permissão para detalhar procedimentos
adotados pelo autor em sua escrita. Borges, diz ela, reelaborava os escritos
inúmeras vezes.


E como se trata de uma biografia sentimental, o que faz Solange Ordóñez em O
Olhar de Borges é revelar as impressões que lhe causavam o escritor desde a
infância. Um herói do argentino era Macedonio Fernández. O amigo falava melhor
do que escrevia. E dizia que resolveria o enigma do universo se um dia se
estendesse no campo. Mas de nada serviria a descoberta, porque ele não seria
capaz de transmiti-la. Para Solange, Borges agia de forma parecida com a de
Macedonio nas reuni-ões de família. O humor era enorme.


Em um almoço, Borges disse ter perguntado a um professor de filosofia acerca
do temporal e ele lhe respondeu que nos últimos anos se havia avançado
muitíssimo na solução do problema do tempo.. Borges riu ao ponderar que, se a
consulta tivesse sido sobre o problema do espaço, o professor diria que se havia
avançado muito nas últimas quadras. Borges gostava de outra anedota. Um homem na
rua lhe perguntou: ‘Você é Jorge Luis Borges?’, ao que ele respondeu: ‘Não tenho
muita certeza’.


Bem-humorado era também o amigo Adolfo Bioy Casares, que Borges dizia ser seu
‘verdadeiro e secreto mestre’. Juntos, eles criaram o escritor-personagem Bustos
Domecq, cujos textos Arrigucci revisa para lançamento próximo. ‘Durante anos, a
dupla identidade de Bustos Domecq não foi revelada. Quando por fim se soube, as
pessoas pensaram que, como Bustos era uma brincadeira, não se podia levar muito
a sério o que ele escrevia’, diz Borges no Ensaio Autobiográfico.


Embora Borges aponte no ‘anarquista filosófico’ Guillermo, seu pai, um
formador intelectual, a mãe, Leonor Acevedo, declarou a Solange Ordóñez, em
longa entrevista, que ‘os filhos são mais da mãe que do pai’. Há apontamentos
seus ao lado daqueles do filho nos cadernos de rascunhos. Em uma página, Borges
escreve que o avô, quando menino, ao procurar pêssegos, deparou ‘com as cabeças
dos decapitados’. A mãe o corrige: ‘Com o sangue que corria por entre as barbas
dos mortos’.’


 


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