CENSURA
Fantasmas à solta
O jornalista paraense Lúcio Flávio Pinto é um paradoxo ambulante. Sua história poderia ser o perfeito exemplo para quem acredita haver, no Brasil atual, sérios riscos à liberdade de imprensa e de expressão. Criador do Jornal Pessoal, publicação quinzenal de 2 mil exemplares editada em Belém, Lúcio Flávio já foi fisicamente agredido, coleciona 33 processos judiciais, 19 deles propostos pela mesma família, e está proibido pela Justiça de citar nominalmente em sua publicação figuras públicas por ele investigadas. ‘É um claro movimento para sufocar a minha atividade. Gasto tempo e dinheiro nesses processos e cogitei fechar o jornal. Estou mais pobre do que há dez anos. Mantenho a operação por uma questão de honra’, afirma.
Para a Associação Nacional dos Jornais (ANJ), que ao lado da Aner, dos editores de revista, e da Abert, das emissoras de rádio e tevê, fez de 2010 um ano em defesa da liberdade de imprensa, o caso de Lúcio Flávio não se aplica. A ANJ o classifica como ‘rixa familiar’ e não o cita em seus relatórios periódicos das inúmeras ocorrências de agressões e intimidação contra repórteres. O motivo é que a perseguidora do jornalista, a família Maiorana, controla o maior grupo de comunicação do Pará, integrado por jornais, rádios e a principal retransmissora da Rede Globo na região. ‘Sou o repórter mais perseguido por um grupo de mídia da história’, brinca Lúcio Flávio. Em uma ironia tipicamente brasileira, o conglomerado dos Maiorana é um dos patrocinadores do portal de liberdade de expressão mantido pela ANJ. Rômulo Jr., que surrou o jornalista, presidiu a comissão de liberdade de imprensa da OAB do Pará.
Nos confins do Brasil, e em certas periferias das grandes cidades, a atividade jornalística sempre foi arriscada. Entre 2005 e 2009, a Federação Nacional dos Jornalistas registrou dez assassinatos de repórteres. Na maior parte das vezes, os algozes foram policiais ou bandidos envolvidos com o crime organizado. Outros profissionais, como agentes públicos e integrantes de ONGs, estão submetidos ao mesmo tipo de risco. Mas não parece ser essa a matriz das preocupações das associações patronais que, neste ano eleitoral, agitam freneticamente sua bandeira. ‘Em qualquer democracia do mundo corre-se risco à liberdade de imprensa e expressão’, afirma Roberto Muylaert, presidente da Aner. Muylaert, por escrito, elenca uma série de ‘ameaças’, entre elas ‘as várias tentativas do governo de ‘regulamentar’ a atividade em nome do ‘controle social’, que ninguém sabe direito o que é’.
Talvez o leitor se pergunte se há mesmo riscos iminentes de censura à atividade jornalística. Quando se olha do ponto de vista estrito dos números, o País parece rumar em sentido contrário. Na última década, apesar da desvalorização do real em 1999 que quase levou os grandes grupos à bancarrota, houve um crescimento exponencial do número de jornais, revistas, rádios e tevês. Só para citar três casos: são da última década a semanal Época e os diários Valor Econômico e Brasil Econômico, este último lançado há menos de um ano.
Na tevê por assinatura, depois de anos de estagnação, os assinantes saltaram de cerca de 3 milhões para mais de 8 milhões – e a recuperação do mercado atrai novos competidores. A internet oferece cada vez mais uma diversidade sem-fim de informação e opinião, para todos os gostos e públicos. Houve um big-bang de blogs e sites noticiosos em um ambiente no qual a censura é praticamente impossível de ser exercida. Além disso, para o bem e para o mal, multiplicaram-se os meios de comunicação em poder de igrejas, sindicatos, associações, universidades e dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Apesar da censura à biografia não autorizada de Roberto Carlos, exigida pelo próprio cantor, o mercado de livros vive momento semelhante: as vendas anuais subiram de 299 milhões em 2003 para mais de 350 milhões de exemplares.
Nem mesmo os representantes das associações empresariais têm certeza da extensão do risco que acreditam pairar sob nossas cabeças. A exemplo de Muylaert, o presidente da Abert, Daniel Slaviero, cita as propostas de ‘controle social’ defendidas por setores do governo e do PT, mas faz questão de ressaltar: ‘É inegável que o Brasil vive um ambiente democrático. A questão é que precisamos manter uma vigilância permanente para que se garanta a liberdade de imprensa’.
Professor da UnB e autor de diversos livros sobre mídia, Venício Lima acha que as empresas de comunicação se apegam a uma platitude (‘quem seria contra a liberdade de imprensa?’) para escapar das discussões sobre a regulação da propriedade e o cumprimento de normas da Constituição. Lima também acredita que, em ano eleitoral e na esteira de outros lobbies, os meios de comunicação atuam em favor de seus interesses econômicos. ‘Há uma intolerância das empresas em relação aos debates sobre regulação.’
Nota-se um excesso de zelo nessa quadra dos acontecimentos. Em 16 de julho, a Abert, a ANJ e a Aner enviaram à Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República um documento conjunto no qual ressaltam a necessidade de se defender a liberdade de imprensa e de expressão. O texto, destacado nos principais jornais, foi a contribuição das associações a uma consulta pública feita pela secretaria. O único ponto é que não há na pasta comandada por Samuel Pinheiro Guimarães discussão alguma a envolver conteúdo e produção jornalística. Parte do plano Brasil 2022, o capítulo sobre Comunicações trata exclusivamente de infraestrutura, como a universalização dos serviços de telefonia e banda larga. Uma contribuição, portanto, tão prestativa quanto inútil.
O álibi dos paladinos da liberdade de expressão têm sido propostas equivocadas e, em geral, inócuas encampadas por setores do governo nos últimos oito anos, mas nunca levadas adiante. A última delas constava do Plano Nacional de Direitos Humanos e previa a criação de uma comissão para classificar os meios de comunicação de acordo com seu compromisso com o assunto. Há ainda a defesa do diploma para jornalistas, cuja obrigatoriedade, suspensa pelo Supremo Tribunal Federal, voltou a ser aprovada em uma comissão da Câmara Federal. O diploma é, porém, assunto menor: se não chega a ser uma ameaça real à liberdade de imprensa também não pode ser considerado uma iniciativa a seu favor. Quanto à discussão sobre o combate ao monopólio da mídia retirado do programa de governo de Dilma Rousseff entregue ao Tribunal Superior Eleitoral, é outra platitude: ninguém pode ser a favor do monopólio.
Venício Lima diverge, inclusive de CartaCapital, da interpretação corrente dada ao que se chama de ‘controle social’ da mídia. Para o acadêmico, o princípio engloba, entre outros pontos, estimular a fiscalização da sociedade das concessões de rádio e tevê, conforme prevê a Constituição. Responsável por fiscalizar as outorgas e renovações, o Congresso Nacional, recheado de parlamentares proprietários de meios de comunicação eletrônicos, faz vistas grossas.
Embora Slaviero garanta ser a Abert a favor do debate de uma nova legislação que modernize os códigos criados antes da internet e da convergência digital, historicamente a mídia prefere estimular a ‘Lei da Selva’ no Congresso: nos bastidores, agem para travar discussões legislativas mais amplas e acelerar mudanças pontuais adequadas a seus interesses econômicos imediatos. Durante o governo Fernando Henrique Cardoso, ao menos três projetos de uma lei geral de radiodifusão foram implodidos pela ação do lobby das emissoras.
O primeiro a sugerir a discussão foi Sérgio Motta, quando ocupava o Ministério das Comunicações. O último ocupante do cargo no governo FHC, Juarez Quadros, deixou à equipe de Lula uma minuta de legislação que os tucanos nunca conseguiram levar ao Congresso. Em compensação, no início de 2002, afogadas em dívidas por conta da desvalorização do real três anos antes, as empresas obtiveram, com patrocínio de FHC, a mudança no Artigo 222 da Constituição, que permitiu a entrada de capital estrangeiro nas companhias do setor até o limite de 30%.
Nos primeiros meses do governo Lula, sob o comando de José Dirceu, negociou-se uma linha especial de crédito no BNDES. O pró-mídia só não foi adiante porque a Rede Globo, principal interessada, conseguiu resolver seu problema financeiro antes. Daí em diante, uma a uma, da criação da Agência Nacional do Cinema (Ancinav) à Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), as iniciativas foram detonadas, em geral sem maiores esclarecimentos à opinião pública. Na quinta-feira 22, o governo publicou, no Diário Oficial, as normas para a criação de um grupo de trabalho que vai discutir uma nova lei de comunicação de massas. O ministro Franklin Martins garante que, desta vez, a proposta não dormitará eternamente em uma gaveta de Brasília. Será?
Pode ser que as mudanças tecnológicas obriguem a mídia a um debate mais amplo sobre seu espaço econômico. A ‘Lei da Selva’ foi útil enquanto não havia um competidor com mais musculatura financeira. Mas o interesse crescente das operadoras de telefonia mudou o cenário. Relator na Câmara dos Deputados de um projeto de lei sobre tevê por assinatura, Jorge Bittar (PT-RJ) levou anos para quebrar a resistência dos grupos de mídia, principalmente por conta da exigência de cotas à produção nacional e regional. Um consenso mínimo permitiu a aprovação e o projeto seguiu ao Senado, onde espera o fim das eleições para voltar à pauta. Nesse meio-tempo, porém, toda a discussão acabou atropelada por uma resolução da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).
Em decisão que parece feita de encomenda para a Oi, ávida por ampliar sua participação na tevê paga, a Anatel decidiu liberar concessões pelo custo administrativo da licença, de cerca de 9 mil reais. Nada de leilões ou concorrência, basta requerer a outorga. As empresas que já operam no segmento chiaram: para elas, a agência não poderia tomar a decisão por causa da lei em tramitação no Congresso. Em jogo, um mercado que, após uma década de estagnação, tem ganhado cerca de 1 milhão de novos assinantes por ano. ‘Agora todo mundo quer aprovar a nova legislação, o que é bom’, diz Bittar.
As emissoras de rádio e televisão também partiram para uma guerra particular contra o portal Terra, controlado pela espanhola Telefónica. Segundo a Abert, o Terra é uma empresa jornalística e deve se submeter ao Artigo 222. Ou seja, apenas 30% de seu capital pode pertencer a estrangeiros. Uma audiência pública recente transformou o Congresso no palco dessa batalha. Com um décimo do poderio financeiro das operadoras de telefonia, os grupos de mídia apostam na sua força política. ‘Quem produz conteúdo jornalístico de forma regular e com fins econômicos é uma empresa de comunicação e deve se submeter às leis’, afirma Slaviero. Paulo Castro, diretor-geral do Terra, afirma que o portal está seguro de sua legalidade e diz não existir na Constituição nenhuma proibição explícita à produção de conteúdo na internet. ‘Somos uma empresa brasileira de capital estrangeiro. O comando é de brasileiros e o conteúdo é feito por brasileiros.’
Há muito dinheiro e uma dúvida na mesa. Primeiro, a grana. No Brasil, a internet já é a quarta mídia e abocanha cerca de 7% da verba publicitária. Em poucos anos, deve ultrapassar revistas e jornais em faturamento com anúncios. O fenômeno já ocorre em diversos países. Até o fim de 2012, o número de brasileiros conectados à rede mundial de computadores deve crescer 50% e atingir a marca de 120 milhões. Durante a Copa da África do Sul, a cobertura especial do Terra, mesmo sem direito à transmissão das partidas, chegou a registrar audiência maior do que a da Band, autorizada pela Globo a exibir os jogos.
Agora, a dúvida. Como fazer valer uma regra nacional sobre uma mídia que pode ser produzida de qualquer ponto do planeta? Para impedir efetivamente o acesso à internet, o Brasil seria obrigado a fazer justamente o que os cavalheiros da liberdade de expressão dizem abominar: adotar regras de censura semelhantes às do Irã e da China. Por causa disso, nenhuma nação democrática conseguiu até hoje estabelecer normas de controle do fluxo de informação na internet. Nem nos Estados Unidos, na Turquia e na África do Sul, países com as maiores barreiras à entrada de capital estrangeiro nos grupos de mídia, impõem-se restrições ao mundo virtual. Slaviero reconhece a dificuldade de fazer valer a norma, mas diz que uma empresa realmente interessada em disputar o mercado no Brasil não teria condições de operar fora de nossas fronteiras. E lembra a barreira da língua. Castro cita países da América Central que recebem conteúdo do Terra produzido no México. Em tese, nada impediria o portal de comprar conteúdo em português e postá-lo a partir do Paraguai ou de Portugal – embora, tenha razão Slaviero, isso limita seu potencial de crescimento.
E existe um ponto ainda mais crucial do embate entre teles e tevês. Em 2016, quando a radiodifusão migrar totalmente para o sistema digital, as emissoras serão obrigadas a devolver ao Estado as frequências analógicas. Caberá à União definir o destino e, principalmente, os destinatários dessas concessões, aptas, por exemplo, a ampliar a oferta de banda larga no País. Será uma chance de expandir a concorrência ou, como de hábito, manter as coisas como sempre foram.
Os negócios, e seus interesses às vésperas de uma eleição presidencial, não parecem o único alicerce a sustentar a bandeira da liberdade de imprensa. Por ironia, um risco real à mídia, mas não generalizado a ponto de liberar tantos fantasmas, emergiu de uma mudança legal apoiada pelos principais grupos do setor. Após a derrubada da Lei de Imprensa pelo STF, em abril de 2009, cresceram os casos de censura prévia impostas por decisões da Justiça.
‘A censura judicial é um risco atualmente subavaliado no Brasil. Ele tem se disseminado e atingido blogs, jornais variados’, afirma Eugenio Bucci, ex-presidente da Radiobrás e pesquisador visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP. ‘Acho que isso espelha a mentalidade de uma nação que acha normal censurar.’
Parênteses: Bucci considera a ‘censura judicial’ o segundo maior risco à liberdade de imprensa no Brasil. O principal, segundo ele, é o excesso de gastos dos diversos níveis de governo em publicidade.
O mais notório caso de ‘censura judicial’ é o imposto a O Estado de S. Paulo por um magistrado amigo da família Sarney, que proibiu o diário paulistano de publicar grampos vazados da Operação Boi Barrica da Polícia Federal. O alvo da operação foi Fernando Sarney, filho empresário do senador José Sarney. Foi um ato condenável, mas, no momento, o Estadão vale-se do fato de forma retórica. Na quinta 22, o jornal noticiava estar a 365 dias sob ‘censura’. Como o conteúdo das gravações já foi divulgado e Fernando Sarney desistiu da ação em 18 de dezembro passado, o diário poderia, se quisesse, publicar os grampos – o que derruba a tese de censura. O que parece mover os advogados do jornal é a busca de uma decisão judicial que reforce uma jurisprudência favorável às empresas jornalísticas.
O mais deletério, por atingir um pequeno jornal de uma pequena cidade desprovida de concorrência na área de comunicação, talvez seja o do jornalista Sergio Fleury. Fundador do semanário O Debate em Santa Cruz do Rio Pardo, cidade paulista de 40 mil habitantes, Fleury tem sido sistematicamente perseguido pelo juiz Antonio José Magdalena, alvo de reportagens do jornal por uso indevido de verbas públicas. Por vingança, Magdalena transformou Fleury em corréu em um processo no qual ele figurava inicialmente como testemunha. O caso: O Debate havia publicado entre aspas acusações de um político contra outro e que já haviam sido feitas no horário eleitoral gratuito. Multado em 2 mil salários mínimos, Fleury conseguiu reduzir a pena pela metade. Mesmo assim, para uma publicação de 7 mil exemplares, é um fardo insuportável: quase 600 mil reais. Estranho ainda é o fato de a multa ter sido decidida em 1999, mas a execução pelo juiz só ter sido ordenada em novembro passado.
Em consequência, o jornalista tenta anular a cobrança com base no novo Código Civil, que reduziu de 20 para 3 anos a prescrição de sentenças de indenização.
Segundo especialistas, o fim da Lei de Imprensa deixou um vácuo que aumentou o poder discricionário dos juízes de primeira instância. Autor da arguição ao Supremo que levou à extinção da legislação, o deputado Miro Teixeira (PDT-RJ) acredita tratar-se de uma fase de adequação. ‘Há no Brasil a cultura de que as autoridades são intocáveis e isso se reflete nessas decisões, erradas, pois a Constituição deixa clara a não possibilidade de censura prévia. Estamos na fase de assimilação dos novos tempos.’
Advogada de jornalistas e veículos de comunicação há mais de 20 anos, Taís Gasparian considera a ‘censura judicial’ pior do que a exercida na ditadura. ‘Naquela época, ao menos, havia os censores que liam o que iria ser publicado e decidiam o que cortar. Hoje os juízes estão proibindo sem saber do que se trata.’ Segundo Gasparian, é preciso firmar uma jurisprudência para impedir interpretações do Código Civil prejudiciais à liberdade de imprensa. O Artigo 21, por exemplo, determina: ‘A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências (…) para impedir ou fazer cessar ato contrário’. Já a Constituição define que a liberdade de imprensa precede outros direitos, como frisou o ministro Carlos Ayres Britto durante o julgamento que extinguiu a lei.
Mozart Valadares, presidente da Associação dos Magistrados do Brasil, e Luiz Fernando Vidal, da Associação dos Juízes para a Democracia, concordam: com o fim da Lei de Imprensa houve um claro aumento da censura prévia judicial. ‘Vejo um avanço orgânico, ainda que não hegemônico, de decisões desse tipo em várias partes do País e em várias esferas da Justiça’, afirma Vidal. ‘Não há uma vontade deliberada da magistratura, mas é preocupante’, acrescenta Valadares. ‘Mesmo assim, não vejo espaço para um retrocesso na liberdade de imprensa e expressão.’
Coordenadora do núcleo de estudos de mídia e política da PUC de São Paulo, Vera Chaia discorda da tese da existência de uma cultura autoritária na sociedade brasileira a favor da censura. ‘O cidadão não quer um controle da imprensa, quer ser informado.’ O resto, afirma a pesquisadora, são fantasmas.
ANÁLISE
Jornalismo, desenvolvimento e sustentabilidade
O profissional que construiu a história do jornalismo no século XX não é o mesmo desta nova era
O jornalismo vive um momento instigante nesta primeira década do século XXI. A entrada para valer na Era da Informação, como é conhecido o nosso tempo, faz do jornalismo um suporte para as transformações que vão mudar o comportamento da humanidade nos próximos anos, seja para o bem, ou para se adaptar às rigorosas condições ambientais anunciadas. O jornalista desta nova era, no entanto, não é o mesmo tipo de profissional que construiu a história e a tradição do jornalismo no século XX. Chegou a vez de um profissional mais informado, qualificado e preparado para atuar em ambientes de múltiplas variáveis. O melhor exemplo da transversalidade exigida deste profissional é o exercício do jornalismo que atua com pautas sobre desenvolvimento humano, meio ambiente e sustentabilidade.
É comum se imaginar que esse é um profissional que tem de estar em dia com fatos da natureza e só. Esta é uma visão simplista em um mundo em transformação. O fato é que o jornalista que atua com pautas ambientais deve estar preparado para tratar de temas tão diversos como biodiversidade, mudanças climáticas, camada de ozônio, agenda marrom, tecnologias ambientais empresariais, água e saneamento, ISO 14.000, indicadores de sustentabilidade, ISO 26.000, energia em todas as suas formas, além de processos de produção dos mais diversos itens industriais, como papel e celulose, alimentos e seus impactos socioambientais. E isto é apenas uma pincelada no universo de conhecimento específico por onde deve transitar este profissional. A transversalidade que deve existir nas pautas que abordam temas socioambientais, necessárias nos veículos de comunicação, deve começar no jornalista.
Portanto, a qualificação é o principal desafio a ser enfrentado por profissionais que pretendem expandir o olhar do jornalismo sustentável sobre todas as pautas. Descobrir a vertente socioambiental em qualquer que seja o tema a ser trabalhado. O segundo grande desafio é a construção dos espaços editoriais onde essas pautas transformam-se em matérias, tanto nas mídias especializadas, como nas mídias tradicionais. Nas redações dos grandes meios a presença da pauta socioambiental começa a ganhar corpo, com dezenas de textos e reportagens de TV todos os dias. No entanto, ainda há uma certa inconsistência na forma de tratar a maioria dos temas. Nem todos os links ambientais que as pautas permitem estão realmente presentes nas matérias. Algumas vezes por falta de interesse, outras, por falta de conhecimento específico.
No caso das mídias especializadas o desafio é encontrar recursos financeiros para manter os projetos editoriais em pé. Muitas das mais importantes publicações que atuam com pautas ambientais existem apenas por teimosia de seus editores, já que não existe de fato um modelo de financiamento à informação no Brasil. E este problema não é apenas das mídias ambientais, mas sim do modelo de financiamento da informação no Brasil, ou a falta dele. A Constituição brasileira prevê o direito do cidadão à informação, mas não oferece a contrapartida de garantias a este direito. Existem mecanismos que de certa forma coíbem a censura, mas não existem mecanismos que garantam que uma informação relevante realmente chegue à sociedade. Empresas e governos não têm juízo de valor sobre o tipo de informação que financiam com sua publicidade. E isto precisa ser revisto e repensado, inclusive pela sociedade enquanto consumidores.
De uma forma geral as pautas importantes estão quase todas nas mídias, o que não está é a transversalidade. A inter-relação entre os temas que mostram que a maioria das pautas tem uma vertente ambiental. A mídia ainda tende a trabalhar como se a realidade coubesse em escaninhos. Cada tema vai para uma gavetinha e é tratado separadamente. Quando fala em energia, não se interliga a questão entre o modelo de geração e a utilização da energia, assim como os impactos socioambientais que provocam. Esta ausência está presente no debate sobre a necessidade futura de energia no Brasil para o crescimento econômico. Não se discute que modelo de desenvolvimento é este que necessita de cada vez mais energia, a ponto de precisar pagar um preço ambiental cada vez mais exorbitante. Ou seja, vamos precisar de energia, mas, para quê? Esta resposta genérica ‘para o desenvolvimento’, não pode ser aceita sem questionamentos. É preciso decompor o uso desta energia em suas diversas utilizações e ver se a sociedade precisa ou quer estes usos.
O modelo de desenvolvimento está no cerne da questão ambiental e os jornalistas ainda não estão, em grande parte, preparados para questionar este modelo. Então, se há pautas relevantes que estão fora da mídia, são as que questionam de forma consistente o modelo de desenvolvimento que vem sendo mantido e estimulado no Brasil e no restante do mundo, baseado na produção cada vez maior de energia e o uso imoderado de recursos naturais e estimulado por demandas fictícias de necessidades de consumo.
O jornalismo está em um dos melhores momentos de sua história. Existem tecnologias fantásticas para a difusão de notícias e informações, como a internet e as novas tecnologias de informação digital no rádio e na televisão. Pela primeira vez o jornalista pode realmente ser um profissional liberal e exercer sua profissão da forma como melhor lhe convier.
O jornalista tem neste cenário de Sociedade da Informação uma vantagem competitiva decisiva: ele está preparado para lidar com a informação. A internet rompeu com todas as fronteiras do planeta e é um dos dois principais ambientes da batalha da informação: TV e a Internet.
A parcela da sociedade global que se utiliza da linguagem escrita para obter informação tem na internet seu habitat. Os visuais ficam com a TV. De qualquer forma, quem está preparado para trabalhar com informação são os jornalistas. Que sorte a nossa viver para presenciar este salto da humanidade. É quase como ser um dos pioneiros que andaram de trem ou de navios a vapor.
Mas tudo isto são apenas ferramentas para se trabalhar. Precisamos saber que modelo de desenvolvimento queremos. A enxada não decide o cultivo.
* Dal Marcondes é jornalista, foi editor de economia em alguns grandes jornais e revistas, e é diretor de redação da Envolverde
TECNOLOGIA
A transparência digital no Brasil ainda é trabalho de poucos
Há uma outra interação entre tecnologia e política em 2010 que vale a pena ficar de olho além das campanhas eleitorais feitas pela internet, inspiradas pela que ajudou a eleger Barack Obama em 2008.
O pleito de outubro, que escolherá presidente, senadores e deputados, será o primeiro em que os dados públicos oferecidos por diferentes esferas do governo estão sendo mais que usados, são remixados.
Da maneira mais direta possível, remix é quando a junção de dois conteúdos digitais criam um terceiro totalmente novo. Por mais que seja amplamente divulgado em músicas, o conceito também pode ser aplicado em vídeos e dados digitais.
Combinados entre si ou com outros dados, informações públicas podem oferecer um panorama mais completo da atuação de um determinado governante, alertar para indícios de corrupção ou simplesmente oferecer facilidades ao cidadão.
O melhor exemplo do impacto deste movimento apareceu no blog do coordenador de projetos da Transparência Brasil, Fabiano Angélico, que descobriu que 16 políticos receberam dinheiro de empresas ou pessoas autuadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego por trabalho escravo.
Fabiano chegou à conclusão após cruzar os dados sobre autuação por trabalho escravo com a lista de doações para campanhas eleitorais fornecida pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Dos 16 políticos, 11 estão no Norte ou Nordeste. A planilha está disponível para consulta online.
O exemplo mais impactante de fiscalização a partir de dados públicos publicados na internet veio em 2008. A jornalista Sônia Filgueiras descobriu no Portal da Transparência que o gasto dos cartões corporativos do Governo Federal havia dobrado em 2007 na comparação com o ano anterior.
Publicada no jornal O Estado de São Paulo, a notícia derrubou a então ministra da Igualdade Racial, Matilde Ribeiro, e motivou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), encerrada sem indiciamentos. Feita manualmente, a garimpagem no site federal mostrou como, bem usada, a ferramenta pode ser uma forma de fiscalização.
Tecnicamente, remixes como o publicado por Fabiano exigem dados estruturados de maneira que uma máquina possa ler, entender e cruzar com outras informações. Esta necessidade implica colaboração dos governos: é preciso oferecer dados ‘legíveis’ para máquinas.
Melhor exemplo disto é Data.gov, site lançado pelo governo dos Estados Unidos cinco meses após a posse de Barack Obama apenas para oferecer em formatos abertos base de dados de agências federais para que qualquer cidadão possa baixar e reaproveitar.
É neste ponto que o movimento brasileiro ainda engatinha. Informações públicas são oferecidas, em iniciativas como o Portal da Transparência, em formatos que dificultam o remix. A transparência garantida por lei é um processo manual, não automatizado.
Para chegar aos 16 políticos de sua lista, Fabiano precisou baixar os dados em PDF e transformá-los em CSV, formato aberto que pode ser usado no cruzamento de informações.
Quem se aventura em serviços semelhantes usa uma técnica chamada de ‘scraping’ (do inglês raspagem) – um programa é criado apenas para colher automaticamente os dados, que serão organizados em um banco de dados alternativo.
Remixes políticos brasileiros, como o SACSP (que mapeia as reclamações do cidadão de São Paulo), o Violência em São Paulo (contabilizando casos de violência em regiões da cidade) e o Xerifes do DF (apontando a influência de deputados eleitos baseado nas regiões do Distrito Federal), são frutos desta técnica. Em outras palavras, são feitos no braço.
Os primeiros passos já foram dados. Desde o dia 12 de março, o Governo de São Paulo oferece 37 bases de dados da Fundação Sistema Estadual de Análises de Dados (Seade) dentro do site Governo Aberto SP. Nas próximas semanas, outras agências começarão a trabalhar para coletarem e organizarem suas próprias bases de dados.
Um remix político sozinho não aniquila a corrupção. O cruzamento de diferentes dados pode resultar em uma nova perspectiva (nem sempre agradável) da realidade que torna o remix uma valiosa ferramenta de fiscalização.
Há de se lamentar que, tanto do lado da demanda como da oferta, a transparência digital no Brasil é trabalho de poucos, que fazem fiscalização a partir da garimpagem.
Atualização: um leitor me alerta corretamente que, por mais que tenha ganhado projeção no jornal O Estado de S. Paulo, o primeiro veículo a apontar o aumento nos gastos dos cartões corporativos foi o blog Coturno Noturno, uma semana antes da reportagem de Filgueiras. Obrigado, Celso.
LIVRO
Bastidores de uma guerra
Enquando a União Soviética invadia o Afeganistão na década de 1980, o fotojornalista francês Didier Lefèvre (1957-2007) foi convidado a companhar uma missão dos Médicos Sem Froteiras em terras afegãs. Nesta viagem, que durou cerca de três meses, foram usados cento e trinta rolos de filme, que resultaram em mais de quatro mil fotografias. Parte delas pode ser vista na série de livros O Fotógrafo – Uma História no Afeganistão (Ed. Conrad), cujo terceiro volume chega agora às livrarias brasileiras.
Estes finos livros de capa dura foram feitos à seis mãos e são belíssimo resultado de uma parceria entre o fotógrafo e dois amigos, Emmanuel Guibert e Fédéric Lemercier. Em uma mistura de história em quadrinhos com fotografia, Guibert é responsável pelos desenhos e Lemercier pela diagramação.
Com base nas histórias contadas por Lefèvre, montaram um diário de viagem, em que as fotografias em preto e branco se misturam com desenhos e vão narrando esta incrível jornada desde sua concepção, ainda na França, e regresso.
Nos primeiros dois volumes, sabemos como o fotógrafo topou embarcar na missão e quais foram suas primeiras impressões. Registrou, por exemplo, cirurgias complexas feitas em acampamentos precários, crianças e adultos feridos por bombardeios na região de fronteira entre Afeganistão e Paquistão. Registros que impressionam pela crueldade e, ainda sim, pela beleza. Lefrève fotografa e aprende costumes, mas mesmo quando já habituado, não consegue perder o nervosismo ao ver adolescentes brincando com metralhadoras.
Ao final do segundo volume, o francês decide voltar pra casa e, para ganhar tempo, opta por fazer o caminho do volta ao Paquistão sozinho. Para isso, teria que atravessar ilegalmente a fronteira a pé, dormir sob neve, tomar cuidado para não pisar em minas. Queria, além de tudo, fotografar. Mas precisaria, em primeiro lugar, sobreviver.
Este recém lançado terceiro volume é a parte mais impressionante da viagem. É quando se vê de fato sozinho, à mercê de aproveitadores que extorquem dinheiro em troca de informações ou à sorte de alguns poucos que lhe oferecem ajuda. O mais interessante desta linguagem que mistura quadrinhos e fotografia é que por meio dela, podemos sentir o estado de espirito do viajante. Quanto mais desgastado e deprimido, menor vontade de fotografar ele tinha.
Somos levados pela viagem até a chegada na França, quando ele vai ao encontro da mãe, em novembro de 1986. Uma sequência de imagens dela passeando com sua cadela na praia de Blonville fecham esta aventura de maneira tranquila e bucólica, que destoam da tensão afegã. ‘Foi sensacional, mãe, e não me aconteceu nada de ruim’, disse o fotógrafo, então com quase 30 anos. Ela demoraria quase vinte anos para saber de fato, pelas páginas destes livros, os detalhes da viagem do filho.
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