‘Ele é a Gata Borralheira. Não, melhor, ele é o Patinho Feio da literatura contemporânea. Como tal, era um troncho, um desvalorizado, até desabrochar como uma Gisele Bündchen das letras.
A história de Peter Finlay é, em verdade, quase tão boa quanto a de ‘borralheiras’ e ‘feios’, quase tão boa (ou melhor) do que a de seu próprio romance, ‘Vernon God Little’, que será lançado na próxima semana no Brasil, pela editora Record. Quando saiu, na Inglaterra, em janeiro de 2003, o livro era um livro qualquer, assinado por um tal DBC Pierre. Aos poucos o romance foi crescendo, no boca a boca, resenha a resenha, até ser indicado para a lista inicial do Booker Prize, prêmio mais prestigiado da língua inglesa .
Foi só com ‘Vernon God Little’ já na reta final do Booker que a verdadeira história de seu autor saiu às ruas. Em reportagem bombástica nos círculos das letras, o jornal britânico ‘The Guardian’ revelou que o escritor tinha um passado de altas picaretagens (extraliterárias, diga-se), relações barras-pesadas com heroína e cocaína, um tiro tomado e trapaças como a venda da casa de um amigo sem que este fosse consultado ou recebesse algum tostão.
Nascido na Austrália, criado no México e com vida errante por lugares como os subúrbios de Londres ou o Texas, onde ambienta ‘VGL’, Finlay se escondera neste seu romance de estréia atrás do pseudônimo DBC Pierre, que significa Dirty But Clean Pierre (Pierre Sujo, Mas Limpo).
A brincadeira vinha do apelido de seu tempo de junkie, Dirty Pierre. Finlay, ou DBC Pierre, como queira, agora estava ‘clean’ e a literatura era o modo como ele fazia sua ‘última tentativa’, depois de tentar emplacar como cartunista, cineasta, ou caçador de tesouros no México (sério).
E ele chegou lá. Achou seu baú de moedas de ouro com seu primeiro livro: ganhou o Booker Prize 2003 e seus R$ 250 mil (mais ganhos indiretos, como vendagens ‘sextuplicadas’ de seu livro e venda de direitos para o cinema).
Pierre, 42, hoje morando em uma cidadezinha no interior da Irlanda, pouco aproveitou de toda essa gaita. Usou o que ganhou para começar a pagar credores.
Dirty But Clean, ele diz que hoje é um rapaz respeitável, limpo, limpo. Em entrevista à Folha, a primeira que dá ao Brasil, ele mostra que não chega a ser Pierre, o Totalmente Asséptico. Escalado como primeira grande atração da Bienal do Rio, em maio, ele brinca que seus planos são de, assim que chegar aqui, pegar o maior copo de caipirinha que encontrar e dar um jeito de perder sua passagem de volta. Leia trechos da conversa.
Folha – Você disse ao ganhar o prêmio que o sentimento de culpa foi a única pressão que o levou a escrever. Seu estoque de remorso é grande o bastante para que você continue na literatura?
DBC Pierre – Caceta, eu tenho culpa suficiente para construir catedrais. Verdade que agora a energia está mudando. Existe pressão para que eu fique mais refinado, o que aumenta o desafio. Mas sinto que tenho sido uma espécie de artista durante toda a minha vida, de modo que as fantasias sempre me acompanharam. Remorso foi só o empurrão para o compromisso de me expressar em 300 páginas de palavras, o que é bem difícil. Escrever um romance é como tentar pintar uma natureza-morta de ratos vivos.
Folha – Antes de ‘VGL’ você chegou a tentar contos ou romances?
Pierre – Não. Contos são uma modalidade muito difícil, um passo em direção à poesia, onde cada palavra é calculadamente importante. Em um romance você tem direito de perder-se dentro de uma pintura mais ampla. Como eu havia tentado pintura, desenho, fotografia, eu sempre senti que um dia poderia pintar com palavras, mas bem no futuro.
Embora adore palavras não tenho uma educação verdadeira em literatura, em inglês ou em qualquer outra coisa. Foi só a explosiva pressão da vida que me fez tentar. Uma das situações de vida mais poderosas que existe é não ter nada a perder. Agora tenho de tentar não perder meu poder.
Folha – Seu romance lida com temas barras-pesadas como pena de morte ou assassinatos em massa em escolas. Mas ‘VGL’ não é um livro pesado. Por que você usou assuntos cascudos para sua comédia?
Pierre – Porque são temas tão trágicos que são naturalmente cômicos. Neste livro sinalizo como a realidade é hoje muito mais ridícula do que qualquer ficção. Chegamos à era em que tragédia e comédia se acharam de verdade.
Folha – O diretor do Booker Prize, John Carey, disse, ao anunciar seu prêmio, que seu livro era o reflexo da relação de fascínio e alarme que o resto do mundo tinha com a América moderna. Concorda?
Pierre – Concordo. Observar os EUA de uma forma global é fascinante e assustador porque os EUA são a ponta da linha de nossa cultura e a coisa está se desenrolando sem controle. Assim nos vemos chegando àquela área da irracionalidade generalizada.
Folha – Seu livro me lembrou uma versão contemporânea de ‘O Apanhador no Campo de Centeio’, de Salinger. Você vê semelhança de ‘VGL’ com este ou outros livros?
Pierre – Não li muito nos anos que cercaram a escrita de ‘Vernon’. Sou um leitor vagaroso. Mas gosto de literatura e, no final da adolescência, tiveram grande impacto em mim obras como ‘On the Road’, de Kerouac. Li ‘O Apanhador’ no tempo de escola, e me lembro de ter pensado quão genial seria escrever uma obra literária do ponto de vista de uma criança qualquer. Isso me deu um sentimento de liberdade, porque até então vinha lendo Chaucer, Milton e Shakespeare, que, quando você é um garoto, é algo como seguir a sua mãe nas compras.
Folha – No passado você chegou a fazer literalmente uma caça ao tesouro, no México. Ganhar o Booker de repente teve este sabor?
Pierre – É uma passagem pouco conhecida de minha vida, mas há 20 anos eu realmente fiz parte de uma caravana que tentava achar um vale perdido onde haveria restos do Império Azteca, incluindo parte de seu tesouro. Literatura é um tesouro mais viável. Mas para consegui-lo você deve viver em cavernas e caçá-la todos os dias.
Folha – Você virá para Bienal do Livro do Rio. Ouvi dizer que seu próximo romance terá passagens no Brasil. Você já esteve aqui?
Pierre – Venho esperando por toda a minha vida uma oportunidade de visitar o Brasil. Logo que chegar aí vou colocar em prática meu plano de me atracar em algum canto com uma grandiosa caipirinha e dar um jeito de perder minha passagem de volta. Não conheço muito daí, embora tenha lido algo de Rubem Fonseca e de Autran Dourado, mas tenho o feeling de que encontrarei almas muito férteis.
Folha – Você vai continuar sendo o Pierre Sujo, mas Limpo?
Pierre – Por enquanto sim. Quero ser Pierre Limpo, apenas. Não sei se isso será possível depois que eu for para o Brasil. Sou facilmente corruptível diante de mulheres bonitas, música e bebida.’
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‘Prêmio que revelou DBC é ‘revelação’’, copyright Folha de S. Paulo, 15/1/05
‘Uma mão lava a outra. O Booker Prize levou DBC Pierre às alturas, mas DBC Pierre também ajuda a corroborar o status de prêmio mais ‘cool’ da literatura contemporânea ao Booker Prize. Criada em 1969, a premiação britânica vem ganhando nos últimos anos a condição de galardão mais prestigiado da língua inglesa.
‘Hoje o Booker já é mais prestigiado no mercado editorial internacional do que prêmios tradicionais como o Goncourt. Só perde nisso para o Nobel’, diz a editora da Record, Luciana Villas-Boas.
Titio Nobel, com mais de cem anos, ainda é imbatível, com sua tradição e seus US$ 1 milhão (o Booker dá menos de um décimo). Mas em essência é um prêmio que certifica talentos conhecidos.
Não é à toa que o Booker passou recentemente a ser chamado também de Man Booker. O patrocinador do prêmio é o conglomerado Man Group, da área de investimentos. E investimento é o que o Booker faz nos seus premiados, muitas vezes ‘apostas’ no escuro.
A lista de últimos vencedores, abaixo, mostra que as aplicações vêm sendo bem feitas -e que vencer o prêmio é bom passaporte para ser publicado até em países distantes como o Brasil (dos últimos 18 vencedores, só cinco ainda não saíram por aqui).
‘A Vida de Pi’, do canadense Yann Martel, recém-lançado pela Rocco, e ‘Vernon God Little’ são exemplos concretos e recentes da força do prêmio. Então desconhecidos, hoje vendem globo afora.
Outro editor de alguns vencedores do Booker, Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, que publica, entre outros, J.M. Coetzee (juntamente com o australiano Peter Carey o único que já ganhou duas vezes o prêmio), diz que a influência nas vendas é indireta.
‘Por ser importante e conceituado o prêmio ajuda a indicar aos editores bons livros e sinaliza para a imprensa a qualidade literária dos ditos cujos’, diz Schwarcz.
Outro dono de alguns ‘Bookers’, Paulo Rocco, da editora que leva seu sobrenome, fala no mesmo diapasão. ‘No Brasil o prêmio tem uma importância muito mais prestigiosa do que comercial’, afirma.
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‘Cinco razões que fazem do livro um grande livro’, copyright Folha de S. Paulo, 15/1/05
‘São umas dez ou 15 as razões que fazem de ‘Vernon God Little’ um dos melhores romances dos últimos anos. Vejamos algumas.
1) Frescor. Talvez pela trajetória pouco literária do autor, sua escrita não é contaminada com vícios literários;
2) Originalidade. Qualidade prima da anterior, pode ser conferida em trechos ‘bizarros’ à ‘…um filme que você já viu, com notas de piano elétrico tinindo ao fundo, suaves como ovários caindo em farinha de aveia’;
3) Humor. ‘Voz’ mordaz do personagem faz o leitor dar daqueles risos solitários;
4) Fluidez. Ritmo do escritor é bem encadeado. Uma página imanta a outra;
5) Trama. Ah, a história do livro. É boa. Aos 15 anos, Vernon Gregory Little é acusado de ser cúmplice de assassinato à Columbine em escola no interior do Texas. Anti-herói, não consegue provar sua inocência. Foge ao México, é preso, com pena de morte. Etc. Etc.’
A ARTE DA ENTREVISTA
‘‘A Arte da Entrevista’ compõe mosaico sem coordenação’, copyright Folha de S. Paulo, 15/1/05
‘O livro ‘A Arte da Entrevista’, que acaba de sair em segunda edição, nove anos após a original, é um documento importante para quem se interessa por história e jornalismo.
Ele reúne 48 entrevistas, publicadas entre 1823 e 2000. Delas, 32 vieram de um sucedâneo precursor em língua inglesa, o ‘Penguin Book of Interviews’. Das outras 16, 14 são de personalidades brasileiras ou concedidas a jornalistas brasileiros.
Embora o organizador do volume, Fábio Altman, descreva na apresentação quatro critérios que nortearam a seleção dos textos, fica a impressão de que eles compõem mosaico um pouco disforme, independentemente do enorme valor intrínseco que cada entrevista -e sua reunião– sem dúvida tem.
Os critérios, em si, são descoordenados entre si: produção de efeito imediato (do ponto de vista político), produção de retrato de um tempo, coragem do entrevistado de se expor e referência ao jornalismo. Além da dificuldade de definir exatamente cada um desses quesitos, falta a indispensável coerência interna entre eles capaz de fazer resultar um trabalho mais útil.
A isso, some-se a diversidade geográfica, cronológica, cultural e profissional dos entrevistados, e se tem um compêndio muito pouco ordenado, apesar de composto por peças interessantes individualmente.
Não é este um dos objetivos do trabalho, mas uma coleção de entrevistas poderia justificar a edição de um ensaio alentado sobre a técnica e/ou o gênero em si. A apresentação de Altman, apesar de levantar pontos relevantes, não cumpre tal papel nem parece ter tido a ambição de fazê-lo.
A entrevista é um dos instrumentos essenciais da coleta de informação, a matéria-prima básica do jornalismo. Apesar disso, pouco se tem escrito sobre ela. A maioria dos textos jornalísticos se baseia, ao menos em parte, em entrevistas, ou seja, perguntas e respostas sobre fatos ou idéias de interesse público.
Ela também é um gênero jornalístico (ou seja, um tipo de texto, como são a reportagem, a crônica, o artigo, o editorial etc.), e é dele que se trata nesse livro. A discussão da entrevista como gênero também tem merecido pouca reflexão crítica na literatura especializada.
Como acertadamente afirma Altman em sua apresentação, ‘não há boa entrevista sem bom entrevistador’. Por isso, muitas vezes as melhores entrevistas são diálogos entre personalidades de estatura intelectual equivalente. Faltam, inclusive, mais exemplos desse tipo de entrevistas no livro.
Fazer o entrevistado falar significativamente e reproduzir sua fala de modo compreensível e interessante para o público, confrontar idéias e opiniões com ele, contestar lugares-comuns e frases feitas, dispor de informações para não reproduzir imprecisões são algumas das tarefas básicas de um bom entrevistador.
A entrevista -que também é importante em outras atividades humanas, além do jornalismo, como a psicanálise, a antropologia, a medicina, a literatura e tantas mais– seguramente merece mais estudos e reflexões por parte do jornalismo, seus praticantes e seus pesquisadores. Ler os textos dessa coletânea já um bom começo para instigar o pensamento. (Carlos Eduardo Lins da Silva é jornalista e diretor da Patri Relações Governamentais e Políticas Públicas)’
AUDIOVISUAL
‘Hystórya hystéryka do audiovisual’, copyright Jornal do Brasil, 15/1/05
‘Dois livros brasileiros são essenciais para o entendimento de um tipo de produção audiovisual que não está submissa às regras da balança comercial. Um é Cinema de invenção, bíblia de Jairo Ferreira (1945-2003), diretor de Guru e os guris e O vampiro da cinemateca, sobre a estética experimental da marginália brazuca (tipo Sganzerla, Bressane, Luiz Rosemberg Filho). O outro é Revolução do Cinema Novo, onde Glauber documenta o que em sua anárquica prosa chamar-se-ia ‘hystórya’. A ‘hystéryka hystórya’ de um tipo de produção comprometida com a transgressão.
Bastante lúcido em uma dialética que ora ou outra escorrega para a sofística, Glauber contempla a trajetória do cinemanovismo que varreu o mundo a partir dos anos 60, contagiando franceses (Godard, Truffaut), italianos (Bertolucci, Bellochio) etc, com propostas de revisão cultural. E fala com a visão de um teórico que conheceu o movimento em fase embrionária. Daí as chances de sobra que tem para provocar e enaltecer.
Mais válido do que nunca nestes tempos de Cidade de Deus, Contra todos e congêneres menos gloriosos, Eztetyka da fome ainda é o biscoito fino da ensaística glauberiana, pelo esforço de manter atual o conceito de terceiromundismo como vetor de equilíbrio para o neo-imperialismo. Cinema-verdade é outro texto bastante bem-vindo no momento do boom dos documentários, pela avaliação do cineasta para o colega Jean Rouch, morto ano passado: ‘Não é propriamente um cineasta. É sobretudo um homem interessado em antropologia e sociologia (…) que usa o cinema como instrumento’.
Ao destilar sua fúria, sem temperança, Glauber põe pingos no idiossincrático projeto de um cinema industrial, com lugar para a autoralidade.’