Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Celso Lafer

"A Torre de Babel é uma das grandes metáforas do livro do Gênesis. Lida com um paradoxo: o da afirmação inicial da unidade do gênero humano, servido por uma mesma língua, tendo como ascendente comum Noé e a subseqüente dispersão dos seres humanos sobre toda a face da Terra, falando diversas línguas e se dividindo em distintas nações. Confundir ‘a linguagem de todos os habitantes da Terra’ foi a reação de Deus à construção da torre e o nome Babel é explicado pela raiz do verbo hebraico ‘bll’, confundir. A incomunicabilidade é, assim, um dos grandes temas da vida internacional, de acordo com a Bíblia, desde o princípio das coisas.

A tradução, que pressupõe o conhecimento de outras línguas além da própria, é o caminho para superar a incomunicabilidade inerente à pluralidade multicultural da condição humana. Antes da existência dos tradutores profissionais e, por assim dizer, desde a Torre de Babel, sempre se traduziu e por essa razão os viajantes, os mercadores, os embaixadores eram bilíngües ou poliglotas.

Traduzir permite o alargamento do horizonte intelectual pelo acesso que oferece ao repertório de outras culturas. ‘Saber muitas línguas é ser muitas vezes homem’, diz o provérbio português. É por essa razão que o conhecimento de outras línguas em nosso país é uma exigência normal do exame vestibular e um usual pré-requisito para o ingresso nos cursos de pós-graduação.

A tradução instiga a descoberta do potencial latente na própria língua. Tobias Barreto dá-nos um exemplo ao mencionar uma observação de Emerson sobre o escritor como um patinador, que vai, em parte, para onde quer ir, em parte, para onde o levam os seus patins. Acrescenta a seguir que, não compreendendo bem, como nordestino, o que é patinar no gelo, reformula a imagem dizendo que o escritor é como o canoeiro dos nossos rios: ‘Arriba em parte, aonde pretende arribar, e em parte aonde lhe permite a força da correnteza.’ É por isso que traduzir é compreender, pressuposto para a convivência amistosa e para a ‘cooperação entre os povos para o progresso da humanidade’, um dos princípios que constitucionalmente regem as relações internacionais do Brasil (Constituição federal, artigo 4, IX).

Recordo, neste contexto, a distinção que fez Fernando Pessoa entre a dimensão internacional e a universal de uma língua. A dimensão internacional tem entre os seus atributos a difusão e a capacidade de atender aos requisitos da comunicação no mundo. O latim ou o francês foram línguas internacionais. No mundo contemporâneo, registra Pessoa, a língua internacional é o inglês, dimensão sustentada pela universalidade da sua literatura e pelos desdobramentos do fato de ser uma língua imperial. Para Pessoa, o atributo de uma língua universal é a sua capacidade ‘de responder na íntegra a todas as formas de expressão possíveis’ e, por isso, poder ‘espelhar com fidelidade, através da tradução, a expressão de outras línguas’. O português não é, diz o grande poeta de Mensagem, uma língua internacional, mas é uma língua universal.

A universalidade do português nos ajuda a ter uma visão ampla das coisas do mundo, mas diplomaticamente esta visão precisa estar instrumentada pelo domínio de outras línguas, a começar pelo inglês como língua internacional. Na condução da política externa, que traduz necessidades internas em possibilidades externas, ‘quem não se comunica se trumbica’, como dizia o Chacrinha.

O domínio de línguas é condição do multilateralismo. Sem o domínio do inglês o ministro Amorim não teria tido as condições que teve para atuar na montagem, na Organização Mundial do Comércio (OMC), do G-20. Sem o conhecimento do inglês o secretário-geral Pinheiro Guimarães não poderia, como cônsul que foi em Boston, cuidar efetivamente da proteção dos nacionais no exterior.

O Instituto Rio Branco sempre foi um centro de excelência. É hoje um curso de pós-graduação – um mestrado profissionalizante. Nele só podem ingressar os que têm curso universitário completo. Não há nenhuma razão consistente para que a prova de inglês não seja uma prova eliminatória, como são as provas de língua no acesso aos cursos de pós-graduação na USP. Além de alargar horizontes, o prévio domínio de língua estrangeira é exigência óbvia de um mestrado profissionalizante, como o do Instituto Rio Branco, pois o diplomata precisa superar os desafios da Torre de Babel.

As justificativas oficiais e oficiosas do Itamaraty para a mudança de critério não são convincentes. O ensino do inglês no curso médio e a profusão dos cursos de inglês no País inteiro, em resposta à necessidade do conhecimento desta língua para o exercício de tantas atividades profissionais, não fazem do seu domínio no Brasil contemporâneo um privilégio aristocrático, restrito a filhos de diplomatas ou aos ‘bem-nascidos’ em geral. Também não exigem o excepcional autodidatismo de Tobias Barreto, que apenas se valeu de um dicionário e de uma gramática para apreender o alemão. O argumento dos atuais responsáveis pelo Itamaraty é o do nivelamento por baixo, que caracteriza os excessos do igualitarismo. Exprime a desqualificação do conhecimento, da qual é também uma expressão a proposta da reforma universitária. É uma manifestação da aversão à cultura, à palavra e à ciência, ou seja, da propensão ‘misologocrática’ do governo do PT, para recorrer ao neologismo de Roberto Romano. Nesta toada, o Brasil, em vez de ter uma diplomacia de qualidade, acabará, por obra de um laxismo populista, tendo uma diplomacia dos piores, e não a dos melhores. Em bom português: precisava mais essa? Celso Lafer, professor titular da Faculdade de Direito da USP, foi ministro das Relações Exteriores no governo Fernando Henrique Cardoso"



Claudio de Moura Castro

"Tudo como dantes…", copyright O Estado de S. Paulo, 16/02/05

"O jovem professor esbravejava de raiva: ‘Absurdo! Onde já se viu um país sério onde se permite que a congregação da faculdade delibere apenas usando a língua inglesa? Em meu próprio país, se eu quiser ser ouvido pelos demais professores, tenho de aprender inglês!’

De fato, neste simpático país dos trópicos havia esta anomalia lingüística, contrariando todas as leis locais. Mas isto até era o de menos, diante da maneira pela qual se havia instalado aquele curso superior. Somente a força dos militares que estavam por trás de tudo explicaria tamanho rol de irregularidades. Segundo muitos – dentre os quais se incluía o nosso zangado assistente -, era o cúmulo do entreguismo.

Os milicos trouxeram dos Estados Unidos um professor e deram a ele carta branca para contratar quase todos os outros professores no exterior. Noventa por cento dos professores-titulares foram contratados no estrangeiro. E mais, pagos regiamente em dólar, o que já era proibido no país desde a Constituição de 1830.

O caso destas contratações foi parar nas mãos de um jovem procurador, que ficou horrorizado com as arbitrariedades dos militares. Pior, quando foi ler o contrato, descobriu que havia uma cláusula rescisiva em favor do tal professor americano. Esta permitia a ele cancelar seu contrato, bem como os de todos os demais, se a seu juízo houvesse uma queda na qualidade do ensino. E o cancelamento seria unilateral, pois continuariam a receber seus salários, mesmo de volta aos países de origem.

Diante do parecer indignado do jovem advogado, os militares chamam-no para uma entrevista. Chave de galão? Boa conversa? Nada disso, o advogado convenceu-se do sonho dos idealizadores do tal projeto. Passou então a buscar uma forma legal para pagar aos gringos e para comprar equipamentos no exterior, sem as formalidades das licitações públicas. Apaixonou-se tanto pelo projeto que virou professor.

No cotidiano da escola, os gringos sempre foram mais bem tratados do que os da terra. Brigam no fundo do quintal duas esposas de professores. Uma delas é mulher de um capitão que ensina na escola. A outra é mulher de um professor americano. A origem da briga já foi esquecida, talvez um cachorro que estragou o jardim do vizinho, mas o caso termina no gabinete do coronel diretor. Percorrendo o anuário militar com os nomes de capitães, exclama: ‘Muitos, pois não? Quantos professores neste país são capazes de ensinar a matéria do americano? Nenhum? Ora, então diga a sua mulher que agüente firme ou faça as pazes com a do americano.’

Em outra ocasião, um estrangeiro foi surpreendido no seu gabinete com uma secretária no colo. Os defensores da virtude e do pudor irrompem na sala do diretor. Mas o argumento é o mesmo: ‘Temos algum melhor para substituí-lo? Não? Pois, então, que o intendente providencie uma segunda cadeira na sala do professor, para que a moça não tenha que se sentar no seu colo.’

Para a satisfação e o contentamento de muitos, este país finalmente conseguiu cortar o mal pela raiz: foi enormemente dificultada a contratação de professores estrangeiros. Ponto, parágrafo. Era preciso botar estes gringos no seu lugar!

Mas vamos dar nomes aos bois.

O país era o Brasil, lá pelos fins dos 40.

O militar era o, então, coronel Montenegro, homenageado pela Capes como um dos pais da ciência e tecnologia no Brasil.

O advogado era o professor Paulo Tolle, ex-secretário de Educação de São Paulo, mais adiante, diretor regional do Senai (SP). Aliás, foi ele quem me contou este caso.

A escola cheia de gringos era o Instituto Tecnológico da Aeronáutica, o nosso familiar ITA, em São José dos Campos.

O professor americano era o dr. Richard Smith, chefe do Departamento de Aeronáutica do MIT, que se dispôs a vir ao Brasil criar uma escola de Engenharia Aeronáutica. Naquele momento, só um contrato leonino e salários régios poderiam atrair um americano eminente para um país bagunçado e sem tradições tecnológicas como o Brasil.

O jovem professor zangado ficará no anonimato.

Quando o Reino de Castela precisou de tecnologia e de um bom comandante para suas expedições, contratou o estrangeiro Cristóvão Colombo.

Quando o Japão precisou de técnicos estrangeiros no fim do século passado, não relutou em pagar-lhes mais do que a seus ministros.

Quando acabou a 2.ª Guerra, os Estados Unidos se abasteceram de quantos cientistas havia soltos na Europa. Somente nos últimos anos, os Prêmios Nobel concedidos para os Estados Unidos passaram a ir para americanos natos. A geração dos imigrantes predominou por muitas décadas na lista dos agraciados. Permanece hoje em virtualmente todos os países desenvolvidos a mais completa liberdade de contratação de estrangeiros nas universidades (eu mesmo por pouco não viro professor-titular em uma universidade na Califórnia).

Sem os asiáticos, os departamentos de engenharia das universidades americanas desabariam. O mesmo se daria com certas áreas científicas de universidades inglesas e francesas.

Mas o Brasil tenta pôr os estrangeiros no seu lugar, isto é, fora da universidade, desencorajados de contribuir para a nossa ciência e tecnologia.

Nota do autor: O presente ensaio foi escrito ao final da década de 80. Lamentavelmente, o seu tema se tornou outra vez candente, justificando a sua exumação.

Claudio de Moura Castro é economista, especialista em educação"



Cristiana Nepomuceno

"Mudanças na Câmara podem afetar permanência de Eunício no Minicom", copyright Telecom Online, 15/02/05

"A surpreendente vitória do deputado Severino Cavalcanti (PP-PE) para presidente da Câmara pode tornar o jogo de xadrez da reforma ministerial mais complicado e influir na permanência de Eunício Oliveira no Ministério das Comunicações. O partido de Eunício, que tem dois ministérios (o outro é o da Previdência, ocupado pelo senador Amir Lando), embora não tenha sido o único a trair o governo, também não garantiu ajuda suficiente para eleger Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-SP) presidente da Câmara, apesar de a bancada pemedebista contar com 88 deputados. O desempenho pouco satisfatório do PMDB pode enfraquecer Eunício no Minicom. O Ministério pode ser uma peça importante nas negociações políticas que virão para que o governo consiga fortalecer a base aliada. Outro indício de que o cacife político de Eunício pode ser afetado foi a escolha hoje do deputado federal Saraiva Felipe (MG) para ser o novo líder do PMDB na Câmara. A indicação de Saraiva foi feita agora à tarde pela bancada do partido em documento enviado à Secretaria Geral da Mesa contendo 47 assinaturas de deputados do PMDB. Saraiva substituirá José Borba (PMDB-PR), muito ligado ao ministro e que o substituiu na liderança do PDMB quando Eunício assumiu o Minicom. Hoje,15, começaram oficialmente os trabalhos legislativos de 2005 no Congresso Nacional. Agora, começam as disputas pelas presidências das comissões. Segundo informações da Agência Câmara, o deputado Inocêncio Oliveira (PMDB-PE), eleito primeiro secretário da Câmara, disse que por acordo o PT terá direito a quatro comissões e o PMDB três. Mas os nomes dos deputados que irão presidir as comissões ainda não estão definidos."



Gilberto de Mello Kujawski

"O linguajar de Lula", copyright O Estado de S. Paulo, 18/02/05

"Dora Kramer, com sua acuidade habitual, analisa detidamente as implicações políticas daquela maneira de falar de Lula, que no começo parecia até pitoresca, mas hoje, de tão repisada, está começando a cansar.

‘Há de haver uma explicação para o empenho do governo em geral e do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em particular na consolidação do pensamento banal, da palavra tosca e do ato irrelevante como valores representativos do caráter nacional’ (Em nome da lei do pior esforço, Estado, 26/1).

O falar errado de Lula não constitui um dado isolado e sem conseqüências. Sua ‘palavra tosca’ arrasta consigo o ‘pensamento banal’, que, por sua vez, responde pelo ‘ato irrelevante’. As aberrações lingüísticas condicionam a banalidade do pensamento e a irrelevância dos atos de um governo sem forma nem figura de governo. Se tudo se limitasse aos erros gramaticais de Lula, seria fácil absolvê-lo. Mas o que denunciam aqueles erros não se resume à quebra das regras acadêmicas da linguagem, e sim algo muito mais grave – o simplismo das idéias, inadequado à complexidade dos problemas de governo, e a ineficácia da conduta, limitada a medidas irrelevantes, isto é, paliativas.

Dirão os incautos que Lula, homem do povo, tem o direito, e até a obrigação, de falar como o povo. Poderiam invocar Manuel Bandeira, naquele poema clássico do modernismo, Evocação do Recife:

‘A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros

Vinha da boca do povo na língua errada do povo

Língua certa do povo

Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil…’

Aqui é que mora a dúvida. Lula fala, mesmo, a língua do povo? Basta falar errado para falar a língua do povo? Sabemos que a língua popular, na sua informalidade, tem sabores insubstituíveis e é vivamente expressiva, quer na versão da fala plebéia da população de baixa renda, quer na versão caipira, ou na versão sertaneja, da qual Euclides da Cunha fornece amostra eloqüente em Os Sertões:

‘Patrão e amigo.

Participo-lhe que a sua boiada está no despotismo. Somente quatro bois deram o couro às varas. O resto trovejou no mundo.’

Magnífico exemplo da linguagem sóbria e enérgica do sertanejo.

Fica evidente que Lula, por mais populista que quisesse ser, nunca poderia adotar, na íntegra, nem a língua caipira, nem a do sertanejo, nem a de Adoniran Barbosa, sem cair no ridículo mais atroz. Lula não é ‘doutor’, mas também não é caipira, nem sertanejo, e há muito tempo deixou de ser o pau-de-arara emigrado do Nordeste. Seu perfil mais autêntico é o de membro da elite metalúrgica do ABC, camada diferenciada de trabalhadores, da qual saem os grandes líderes sindicais, que se recusam a falar errado (Paulinho, Marinho, Feijó e outros).

Então, o que faz Lula? Ele não se apropria da língua popular em nenhum de seus níveis. A fim de parecer homem do povo, o avesso da malsinada elite de grã-finos e doutores da burguesia, ele se limita a maltratar a língua, engolindo os esses, violentando a sintaxe, forçando erros de concordância, como se isso bastasse para ‘falar gostoso o português do Brasil’. Em suma, Lula forja um arremedo de língua popular, distante tanto dos padrões da linguagem formal, como dos usos legítimos da fala popular (caipira, sertaneja ou periférica). O discurso de Lula degenera num Frankenstein assustador: ‘A gente tem que ser gentis’, soltou outro dia.

‘Considerando que o presidente sabe falar normalmente (sem preciosismos, mas no limite do linguajar aceitável) quando quer, qual a necessidade de discursar aos carteiros agredindo o português da forma como fez ontem, sem deixar quase nenhuma frase incólume?’ (Dora Kramer).

A necessidade, é claro, de fazer média com o povão e com seu público interno, a intelligentsia pós-revolucionária, que se orgulha de ter guindado à Presidência um ex-metalúrgico (sem letras, mas ‘com muita intuição e carisma’). Jamais Lula poderia falar como FHC, Sarney, Collor ou até Itamar, pois é imperioso lembrar que ele é o povo no poder. A mensagem subliminal dessa intelligentsia pós-revolucionária diz assim: renunciamos à tomada do poder pelas armas, mas não abrimos mão de agredir as instituições burguesas vigentes e, quando nosso grande líder messiânico mutila o idioma pátrio, são as instituições culturais, jurídicas, civis e políticas que ele está ferindo no cerne.

O povo também estropia a língua, mas com inocência. Na fala estropiada de Lula há de tudo, menos (menas) inocência.

Gilberto de Mello Kujawski, escritor e jornalista, prepara o livro A Identidade Nacional e outros Ensaios (Funpec). Não faz parte de nenhuma academia e de nenhuma faculdade, pública ou privada, e de nenhum partido político. E-mail: gmkuj@terra.com.br"