‘O deposto líder iraquiano Saddam Hussein compareceu nesta quinta-feira a um tribunal para ser notificado de que é acusado de genocídio e outros crimes contra a humanidade. A audiência durou apenas cerca de meia hora, mas para mim significou quase três semanas de trabalho.
A sala da corte era muito pequena. Não posso precisar a dimensão, mas trata-se de uma minúscula sala de tribunal de uma base militar dos EUA. Lá havia apenas um punhado de jornalistas que estavam confinados no quartel, e eu estava entre esses poucos privilegiados – um pool de repórteres, eu e um outro jornalista. Também estava lá apenas algumas poucas câmeras de estações de TV árabes.
Eu não sabia se teria essa posição exclusiva no tribunal, mas eu estava trabalhando nesta reportagem muito agressivamente nas últimas três semanas.
Eu dei muitos vários furos sobre o tema do processo – como quando sua custódia legal seria transferida e o que ocorreria depois.
Eu tinha bons contatos no meio legal iraquiano. E mantenho o velho hábito de ‘cultivar minhas fontes’. Fui convidada pelo lado iraquiano a assistir à sessão, já que não era parte do pool.
Senti-me muito gratificada, afortunada e orgulhosa por ter conseguido impor um significativo golpe jornalístico.
Esta está entre as 10 principais reportagens de minha carreira. Eu nunca tinha visto Saddam pessoalmente antes. Nunca tinha entrevistado Saddam.
Nunca havia estado em sua presença antes. Agora, estava pela primeira vez, e eu podia vê-lo a três ou quatro metros de distância.
Eu diria que ele era uma sombra do ex-presidente que foi. Estava magro.
Tinha perdido, nos disseram, cinco quilos e meio. Tinha barba e bigode, diferentemente de quando era presidente e usava apenas bigode. Sua pele estava muito escura e tinha bolsas sob os olhos.
Ele parecia um homem velho e cansado. Não se arrastava, mas caminhou muito vagarosamente quando os guardas o permitiram fazê-lo. Não vestia um uniforme de prisioneiro. Em lugar disso, Saddam vestia um terno cinza, calça marrom – às quais eram sustentadas por um cinto – e sapatos pretos engraxados.
Esta era uma grande história porque tratava-se de Saddam Hussein – o homem que tinha sido demonizado e transformado em alvo dos Estados Unidos por duas guerras. E, lá, ele parecia essa figura muito diminuída, uma sombra.
Esse homem tinha sido um onipotente, um ditador. No passado, ele decidia de forma brutal o destino de muitas pessoas. E, hoje, ele estava à mercê de um tribunal iraquiano. Essa não deixa de ser uma dinâmica muito interessante.’
Robert Fisk
‘EUA censuraram audiência de Saddam’, copyright Folha de S. Paulo / The Independent, 3/07/04
‘Uma equipe de oficiais militares americanos censurou toda a cobertura das audiências de Saddam Hussein e seus assessores, anteontem. Imagens que mostravam Saddam acorrentado só foram liberadas ontem.
Os depoimentos de 11 membros de alto escalão de seu antigo regime foram apagados. Um cinegrafista de uma rede americana que exigiu a devolução de suas fitas -que continham áudios da sessão- ouviu de um oficial americano: ‘Não. Agora elas pertencem a nós. De qualquer maneira, não confiamos em vocês’.
De acordo com jornalistas americanos, um almirante americano vestido à paisana disse às equipes de TV que o juiz exigira que não houvesse gravação em áudio da audiência inicial de Saddam. Ele ordenou às equipes que desligassem os cabos de som de seus equipamentos durante a audiência.
Várias das seis equipes presentes fizeram de conta que estavam obedecendo às instruções. Uma delas contou: ‘Ficamos sabendo, mais tarde, que o juiz não deu ordem para desligarmos nosso som. Os americanos mentiram. O juiz queria som e imagens’.
Num primeiro momento as equipes de TV ouviram que uma equipe de câmera do Departamento da Defesa dos EUA forneceria o som para seus vídeos. Mas, quando a CNN e a CBS procuraram a sede da antiga autoridade de ocupação -transformada oficialmente na Embaixada dos EUA-, descobriram que três oficiais americanos tinham ordenado a censura da fita que mostrava Saddam sendo conduzido para o tribunal com uma corrente em volta da cintura ligada a algemas nos pulsos. Os americanos não explicaram as razões da censura.
‘Eles foram grosseiros e não ligaram para nós’, comentou outro integrante de uma equipe de TV americana. ‘Eles estavam mandando nos procedimentos. Os americanos decidiram o que o mundo poderia ver desse julgamento -que, supostamente, é um julgamento iraquiano. Havia uma autoridade britânica no tribunal, e não fomos autorizados a fotografá-la. Os outros homens eram militares americanos que tinham recebido ordens de vestir-se como civis, para que fossem vistos como ‘civis’ no tribunal.’
Num primeiro momento, três oficiais americanos assistiram às fitas gravadas pela CNN, pelo governo dos EUA e por um canal iraquiano financiado pelos americanos. ‘Felizmente, tiveram preguiça de verificar todas as fitas, de modo que conseguimos transmitir nosso áudio por satélite’, disse um dos jornalistas.
‘Fiz de conta que estava desligando o som da câmera, mas o homem que afirmava ser um almirante americano não entendia de câmeras, de modo que pudemos gravar o som. Os censores americanos na embaixada foram pouco atentos -foi assim que conseguimos transmitir o som. A única coisa que os americanos conseguiram cortar da maioria das fitas foi o comentário de Saddam de que ‘isto é um teatro -o verdadeiro criminoso é Bush’.’
Emissoras de TV de todo o mundo ficaram espantadas, ontem, com a chegada das primeiras fitas do julgamento de Saddam, sem som -e ainda não foram informadas de que o material foi censurado por americanos. ‘O que podemos fazer quando um oficial americano nos diz que o juiz não quer som -e então descobrimos que ele mentiu?’, perguntou um câmera americano.
As fitas mostram o rosto -e a fita de som recuperada revela a voz- do juiz Raid Juhi, cujo nome foi largamente divulgado na imprensa árabe ontem. Segundo as equipes de TV, Juhi queria que o mundo ouvisse Saddam.
Apesar disso, os americanos apagaram o áudio dos depoimentos dos 11 ex-ministros no governo de Saddam, incluindo os depoimentos do ex-vice-primeiro-ministro Tariq Aziz e de ‘Ali Químico’, o primo de Saddam que é acusado pela morte de curdos em Halabja com gás tóxico.
A fita dos depoimentos gravada pelo Departamento da Defesa dos EUA foi tomada pelas autoridades americanas, de modo que não existe mais registro técnico das palavras desses 11 homens, exceto pelas anotações feitas pelos repórteres presentes, quatro americanos e dois iraquianos.
Recentemente o juiz Juhi disse: ‘Não tenho segredos. Um juiz não deve se envergonhar das decisões que toma’. Ao que parece, os americanos não pensam assim. Tradução de Clara Allain’
Folha de S. Paulo
‘Saddam na TV deixa iraquianos perplexos’, copyright Folha de S. Paulo, 2/07/04
‘Muitos iraquianos reagiram com silêncio, perplexidade e temor quando Saddam Hussein apareceu na televisão. Independentemente de ser a favor ou contra o ex-ditador, a maioria não deixou de notar a magreza e o tom desafiador.
‘Veja, o salafrário está falando’, disse o faxineiro Muhammad Ali rompendo o silêncio de 30 segundos que se fez em um salão de chá em Bagdá. ‘Ouvi dizer que ele costumava comer um veado inteiro por refeição, e agora ele parece muito mais magro.’
Outro cliente notou que Saddam não tinha algemas. ‘Por que suas mãos estão livres? Ele parece confortável. Eles chamam isso de punição de um ditador?’, afirmou Arkan Hinmis.
‘Saddam tinha muitos palácios, enquanto seu povo morria de fome. Mas hesito em falar, porque ele ainda tem agentes’, disse Mustafa, que não quis declarar seu sobrenome. ‘Mesmo que as imagens fossem da execução dele nós não falaríamos’, foi a reação de uma mulher também temerosa.
Em um hotel, 16 homens tinham seus olhos pregados na TV. ‘Olhe para ele. Não é a face de um prisioneiro. Ele está comandando a corte’, disse um homem, com a aprovação dos demais.
Nas áreas em que há forte presença sunita, houve muitas manifestações de apoio ao ex-ditador. ‘Se dependesse de mim, ele estaria de volta à Presidência hoje, não amanhã’, afirmou Ahmed Abdallah, no bairro Adhamiya, em Bagdá. ‘Pelo menos Saddam nos dava segurança. Não vimos nada de bom dos americanos’, disse Odai Faleh, em Ramadi.
Em diversos países árabes, onde raramente uma alta autoridade tem de responder por crimes, o julgamento de Saddam está sendo visto como uma mensagem para os demais líderes da região. ‘O julgamento deveria ser um exemplo para todos os líderes árabes que governam com ditaduras. Esse será o destino deles’, afirmou Mohammed Ruaini, do Iêmen.
‘Nós vivemos numa ditadura. Com o tempo, os excessos das autoridades enegrecerão os corações das pessoas e o resultado vai ser pior do que no Iraque’, disse o egípcio Bassim Murad.
O governo do Kuait, invadido por Saddam em 1990, anunciou que enviará representante ao julgamento. ‘O Kuait exigirá que ele seja executado de acordo com o sistema judicial do Iraque’, afirmou o ministro da Informação, Mohammad Abulhasan.
Tropas da Jordânia
O rei Abdullah, da Jordânia, anunciou que poderá enviar tropas ao Iraque se houver um pedido do governo interino. Caso isso se confirme, será o primeiro país árabe a mandar soldados. ‘Minha mensagem é: ‘Digam-nos como podemos ajudar e daremos 110% de apoio’, afirmou Abdullah. Com agências internacionais’