Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Claudia Antunes

‘Tudo a favor do afeto, mas a ênfase nos valores familiares que o presidente Lula colocou em suas declarações de fim de ano traz uma semelhança incômoda com a retórica do seu colega americano, George W. Bush. Para fazer justiça, vale ressaltar que Lula não defendeu um modelo familiar único nem misturou o tema com preceitos religiosos que estão no campo da opção pessoal.

O que incomoda é saber que essa onda de exaltação do ‘núcleo da sociedade’ contrasta com um padrão global de liberalismo econômico radical que reforça o individualismo, põe a competição acima da ética e conspira contra a vida coletiva. A solidariedade, mais do que doar roupas e comida, exige o compromisso de tornar as pessoas menos desiguais.

Nos EUA, Bush enaltece a família depois de encerrar um mandato no qual a parcela da população abaixo da linha de pobreza cresceu por três anos consecutivos e milhares de mães perderam filhos, a maior dor possível, numa guerra sem razão.

Notícias publicadas nos últimos dias no ‘New York Times’ exemplificam como funciona o chamado ‘conservadorismo compassivo’: para reduzir o déficit no Orçamento trilionário da potência belicista, universitários carentes terão menos US$ 300 milhões em auxílio público, enquanto a contribuição americana a fundos internacionais de ajuda alimentar sofrerá corte de US$ 600 milhões.

Aqui, Lula disse que hoje há menos ‘apego à família’ e criticou os pais que deixam os filhos serem criados por babás. Talvez o presidente, inspirado em sua experiência pessoal, não se dê conta de que são raros os casos em que delegar a educação da prole é conseqüência de uma escolha.

Os brasileiros têm cada vez menos tempo para ficar em casa, para refletir ou para ir à reunião da associação de bairro, porque, com a queda do valor do trabalho, precisam ir à luta por muito mais horas para garantir seu sustento. Uma campanha publicitária sobre o afeto pode fazer chorar, mas, do ponto de vista da eficácia de políticas públicas, é dinheiro jogado fora.’



Ricardo Daehn

‘Olhares sensíveis’, copyright Correio Braziliense, 22/12/04

‘Convidados pelo Banco do Brasil para série de curtas, cineastas discutem sentimentos em obras que vão além do cunho institucional

Um grupo de público específico – com cineastas e jornalistas – reunido para bater palmas para uma série de filmes institucionais. Contado a grosso modo, o episódio de lançamento dos sete curtas-metragens, recém-concluídos e prestes a ingressar na grade das principais emissoras de tevê, soa a delírio coletivo. Mas, a verdade é que se trata de inovadora experiência em que o patrocinador (o Banco do Brasil) apostou não só na liberdade criativa de sete renomados cineastas brasileiros, mas ainda na capacidade de se sobressair, sem apelar para constrangedoras cenas publicitárias, num merchandising muito subliminar.

‘Os curtas tratam de valores que dão margem à formação da identidade nacional. Apostamos portanto na nossa expressão cinematográfica, que tem obtido grande reconhecimento pelo mundo’, explica o diretor de marketing do banco, Henrique Pizzolato. Com projetos coordenados por Daniel Filho (que também assina um dos curtas), os cineastas Fernando Meirelles (em parceria com Nando Olival), Jorge Furtado, Cacá Diegues, Carla Camurati, Beto Brant e Andrucha Waddington foram abastecidos por temas saídos de pesquisas com brasileiros anônimos que apontaram valores ressaltados na nossa cultura.

Com investimento de R$ 13 milhões – incluídos custos de produção e de veiculação nas redes Globo, Bandeirantes, SBT, Rede TV! e Record -, a série de filmes será exibida a partir de 24 de dezembro, em horário nobre, entre 19h e 22h. Em três minutos, cada título (orçado em R$ 700 mil) explora um valor, entre os quais fraternidade, originalidade, confiança e afeto. A iniciativa mobilizou elenco formado por nomes como Baby do Brasil, Analu Prestes, Berta Zemel (Desmundo), Ravi Lacerda (Abril despedaçado) e Fábio Nepô (De Passagem). Entre os técnicos, despontam Marçal Aquino, Walter Carvalho, César Charlone e Marcelo Durst.

O elo entre todos os filmes é justamente o que os torna particulares: cada diretor imprimiu a marca própria. São curtas assinados pela diversidade dos realizadores. ‘Com o tema alegria, por exemplo, evitei incorrer em clichês como o varredor dançando na avenida ou a óbvia comemoração de um gol. Busquei a minha verdade, e percebi que, na condição de avô, pai e filho, a felicidade eterna vem dos laços familiares’, conta Daniel Filho.

Um conturbado almoço de família – que guarda paralelo com os desentendimentos estrelados pelo cineasta-ator no longa Querido estranho – ilustra o curta-metragem encabeçado por Juan e Mary, pais do diretor. Curiosamente se trata da estréia do diretor em curtas-metragens.

Num tom pessoal, quase de mea-culpa, Jorge Furtado, outro diretor convidado, aproveitou o tema fraternidade para regressar à região periférica de Porto Alegre, 15 anos depois das filmagens, na locação, do emblemático curta Ilha das Flores. O reencontro com a realidade rendeu registro, desta vez, documental.

A partir de texto auto-explicativo – ‘é um filme pensado em voz alta’, atesta Furtado -, o ator Paulo José retoma o tema da miséria, ao ler carta enviada pelo diretor propondo novo projeto de curta, aliando a realização da fita com efetivas melhorias físicas no local. ‘As reivindicações partiram de reuniões com a Associação de Papeleiros e de ONGs. O filme possibilitou a construção de quadra de esportes e uma casa com escola e cozinha’, ressalta o diretor.

Pureza onírica

‘Adaptei o meu tema (originalidade) de uma experiência vivida pela Daniela Thomas, que foi seqüestrada por um taxista de Bangu. Ele tinha o sonho de filmar a Via Dutra, mas precisava de platéia. Daí, não achei nada mais original do que um cineasta amador de vanguarda, que filma túneis e ainda rapta, das ruas, os espectadores’, revela Andrucha Waddington.

Nos moldes eletrizantes de Cidade de Deus, Fernando Meirelles (em parceria com seu colaborador em Domésticas, Nando Olival) – outro nome do projeto – optou por incluir na narrativa a visão agregadora do antropólogo Darcy Ribeiro. Filmado numa passarela em Santa Efigênia, um suposto atentado ao pudor cometido por um ‘camarada com cara de alemão’ deflagra uma discussão sobre identidade nacional que comporta o exame de uma gigantesca árvore genealógica.

Cacá Diegues também se apóia na cultura popular – ‘não como peça de museu, mas como ferramenta dinâmica de sobrevivência’, aponta o diretor – para desfilar conhecimentos seculares do Lunário perpétuo, na trama do curta que conduziu. Antônio Nóbrega, de posse da inseparável rabeca, faz as vezes de mestre-de-cerimônia.

Afeto e confiança, a cargo, respectivamente, de Carla Camurati e Beto Brant, foram pontos de partida que se esbarraram no desenvolvimento dos curtas. Ambos tratam de sentimentos puros que gravitam ao redor das crianças protagonistas.

Enquanto Beto Brant se concentrou na harmonia causada por um menino-de-recados que semeia paz, ao omitir insultos trocados entre um casal, Carla Camurati se alimentou de sentimentos aguçados pela recente condição de mãe. No enredo do curta, a demonstração de afeto entre um garçom e o filho se dá de forma lúdica, num subúrbio carioca. ‘Às vezes, também sinto falta de tempo para expressar esta coisa tão universal, divina, e que não precisa de tradução, que é o afeto’, arremata a diretora.’



Fernando Rodrigues

‘R$ 3.888,88 por segundo’, copyright Folha de S. Paulo, 22/12/04

‘O Banco do Brasil vai torrar R$ 13 milhões numa campanha publicitária de final de ano. Segue na mesma linha do comercial ‘o melhor do Brasil é o brasileiro’.

A dinheirama é para exaltar sete ‘valores brasileiros’ (sic) -afeto, alegria, confiança, conhecimento, fraternidade, identidade e originalidade. Laboriosa, a diretoria do BB convidou sete diretores para realizar sete filmes de três minutos cada.

Coincidência ou não, alguns dos sete diretores convidados são contra o projeto da Ancinav, a agência que o Planalto deseja criar para controlar atividades culturais.

Mais coincidência: os diretores ganham R$ 700 mil cada para criar e produzir os seus três minutos sobre os tais valores. Embolsam R$ 3.888,88 por segundo de filme. Tudo para dizer o quanto o ‘conhecimento’ faz parte do patrimônio nacional.

O argumento básico para defender a campanha é conhecido. O Banco do Brasil concorre no mercado. Precisa fazer anúncios. Como o BB é rentável, faz o que bem entende com o seu dinheiro. Mais ou menos.

O principal acionista do Banco do Brasil é o governo federal -logo, a campanha dos ‘valores brasileiros’ é realizada com o meu, o seu, o nosso dinheiro. Ninguém sabe com precisão quanto a instituição consome em propaganda e em patrocínio, salvo em uma outra campanha.

No domingo de manhã, liga-se a TV e dezenas de pessoas de amarelo estão jogando vôlei de praia ou estão na torcida. O telespectador nem imagina que o dinheiro da brincadeira sai do seu bolso. Outro assunto proscrito no BB e no governo é o quanto se gasta com publicidade neste ou naquele jornal, revista, TV ou rádio.

Há uma tradição no Brasil de governos tentarem levantar o ânimo dos miseráveis com propaganda. Foi assim na ditadura. Nos governos civis, idem. Com FHC, estatais faziam campanhas monumentais. Agora, com Lula, a história é a mesma.

Eis aí um valor genuinamente brasileiro: edulcorar a realidade torrando dinheiro com publicidade.’