Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Claudia Antunes

‘Os necrológios de Susan Sontag registram que ela foi tachada de antiamericana, entre outros adjetivos ferozes, quando, logo depois do 11 de Setembro, publicou na ‘New Yorker’ um artigo no qual atribuía os atentados ‘às ações e alianças’ dos Estados Unidos e dizia que os terroristas que explodiram as torres gêmeas poderiam ser tudo menos covardes, como os havia chamado George W. Bush.

O episódio teria terminado como um debate acalorado se o objetivo das críticas fosse somente o de contestar equívocos na análise da ensaísta. Porém, ao negar qualquer legitimidade às inquietações de Sontag, elas visavam excluir da mídia, e principalmente da TV e do rádio, idéias que pudessem pôr em xeque a ordem unida que dali em diante deveria ser seguida pelos americanos.

O resultado desse furor censório só foi conhecido neste ano, quando os principais jornais dos EUA admitiram ter caído na falácia das armas de destruição em massa e começaram a questionar uma estratégia de política externa que teve a pretensão de começar pelo Iraque uma revolução democrática no Oriente Médio.

A ofensiva que reduziu ao mínimo a contestação ao governo foi, além de estúpida, desnecessária. Se, no período que vai do New Deal aos anos 60, a centro-esquerda teve maior influência entre os pensadores ouvidos pela imprensa americana, o quadro já havia mudado quando Bush foi eleito. A partir dos 80, neoconservadores ganharam a comunicação de massa a partir dos seus ‘think tanks’. Nomes como Fukuyama e Kristol tornaram-se tão conhecidos quanto Galbraith ou Stiglitz.

Na França, berço dos intelectuais engajados, aconteceu o mesmo, com os falecidos Sartre, Foucault e Bourdieu dando lugar aos ‘novos filósofos’ Bernard-Henri Lévy e Glucksmann, hoje na linha de frente do combate ao islamismo radical. Nos EUA, como em toda parte, a campanha contra o ‘liberalismo’ (no sentido americano) da mídia foi extemporânea e indica um desejo de dominação que vai além da hegemonia.’



Ubiratan Brasil

‘A ferrenha discussão com García Márquez’, copyright O Estado de S. Paulo, 29/12/05

‘Susan Sontag participava ativamente de polêmicas, especialmente quando o assunto a contrariava. Uma de suas mais ferrenhas aconteceu há quase dois anos, quando ela protagonizou uma discussão com o escritor colombiano Gabriel García Márquez, prêmio Nobel de literatura, ao recriminar seu ‘silêncio’ diante da execução de três pessoas em Cuba.

Sontag abriu a polêmica em fins de abril de 2003, durante a Feira Internacional do Livro de Bogotá, semanas depois da execução dos três principais autores do seqüestro de uma embarcação cubana com 40 passageiros a bordo.

‘Admiro García Márquez como um grande escritor, mas não me parece correto que ele guarde silêncio diante do que está ocorrendo em Cuba’, disse Susan.

O round seguinte foi disputado dias depois, quando o escritor respondeu: ‘Sobre a pena de morte, não tenho nada a acrescentar ao que já disse em particular e em público: desde que tenho memória, sou contra ela em qualquer lugar, motivo ou circunstância’, afirmou. E ainda cutucou: ‘Tenho por norma não responder a perguntas desnecessárias ou provocadoras, a não ser que provenham – como é neste caso – de uma pessoa tão merecedora e respeitável’ como Sontag.’

Dias depois, García Márquez retornou ao assunto, insatisfeito com alguns meios de comunicação que teriam manipulado sua resposta à escritora para que parecesse que ele estava contra a revolução cubana. Em uma nota enviada ao jornal mexicano La Jornada, afirmou: ‘Este é um indício de que muitas declarações sobre a situação cubana – ainda que de boa fé – podem estar fornecendo e ampliando dados que os EUA necessitam para justificar uma invasão a Cuba’, disse García Márquez na nota.

‘Não estou satisfeita em absoluto com a resposta de García Márquez ao desafio que lhe impus de se pronunciar sobre a situação em Cuba’, rebateu Sontag, em outubro, classificando de ‘desonestidade intelectual’ o silêncio do escritor colombiano.

‘Sobre Cuba, García Márquez calou-se sobre coisas que sabe e, por isso, não tem sido honesto’, disse. Ela qualificou de ridícula a explicação do escritor em conversas particulares de que tem ajudado muitos dissidentes a sair de Cuba. ‘Sinto por García Márquez, mas há coisas sobre as quais não se pode silenciar.’ Prudente em não jogar mais lenha na fogueira, o colombiano calou-se.’



Antonio Gonçalves Filho

‘Ficção, o lado mais esquecido de Susan Sontag’, copyright O Estado de S. Paulo, 2/01/05

‘A grande parte dos obituários da escritora americana Susan Sontag, morta na terça-feira, de câncer linfático, aos 71 anos, destacou seu papel como ensaísta polêmica, mas preferiu mencionar apenas de passagem suas novelas, como se sua escritura fosse produto de uma doutora Jekyll que assassinava as próprias idéias e escondia o cadáver entre personagens de ficção. Até por uma questão de justiça, é preciso reler com atenção as novelas de Susan Sontag, especialmente Na América (Companhia das Letras, R$ 51,50), para acabar de vez com o preconceito de que ela foi uma esquerdista à procura de autopromoção. Ela só queria entender a América. Morreu, mas entendeu.

Não, ela não foi perversa ao proclamar, duas semanas depois dos atentados do 11 de Setembro, na revista New Yorker, que a mídia americana havia transformado a tragédia em espetáculo, infantilizado o público e subestimado sua inteligência com a retórica ‘demagógica e estúpida’ de que o ato terrorista foi um ataque ‘covarde’ à ‘civilização’. Covarde? Civilização? Alguém disse civilização? Susan Sontag foi, sim, realista. Escreveu que aquilo não era Pearl Harbour, mas fruto da política externa americana e de seu complexo de superpotência.

Embalada como uma novela do século 19, Na América oferece tanto uma visão histórica dos Estados Unidos de 130 anos atrás como uma reflexão sobre o presente. Na América elege uma atriz polonesa como protagonista, que parte para a Califórnia com o objetivo de encontrar uma utópica comunidade de patrícios no Novo Mundo (a velha história do sonho americano). O fato de Maryna Zalezowska ser uma atriz estrangeira resume a história: ela vai conquistar a América com sua capacidade de representar e reinventar a si mesma em condições adversas.

Em síntese: Maryna troca de nome e assume a persona da americana de sucesso, tipo Scarlett O’Hara, a voluntariosa heroína do clássico …E o Vento Levou, que agita as mãos para o céu, em plena miséria da guerra civil americana, e promete que jamais vai passar forme, nem que para isso tenha de roubar e matar. Maryna segue a trilha. É a América personificada, que passa como um trator em tudo o que cruza seu caminho. Quanto mais Susan retrocede ao século 19 para estudar a América, mais ela se parece com a dos atentados terroristas. Percebendo que o país não mudara tanto assim – exceto pelo fato que os imigrantes, agora, não são mais europeus, mas asiáticos -, Susan Sontag construiu um romance que é, ao mesmo tempo ficção e ensaio.

Foi assim desde o primeiro livro de ficção, The Benefactors, lançado em 1963. A escritora, que sempre se considerou, antes de tudo, uma novelista, tinha bons motivos para fazer de seu protagonista Hippolyte um homem de sua época, fragmentado, cubista, que flutua entre o mundo dos sonhos e o mundo real. O livro de estréia foi visto por alguns críticos como um Gide de segunda mão, também porque, como o escritor francês (paixão dela e de Roland Barthes), seu modelo era o estilo de prosa do romance do século 19 (daí o interesse da escritora americana por Machado de Assis). Há quem identifique nessa fixação uma certa neurose retromaníaca, mas é preciso lembrar que a escritora foi uma das primeiras vozes a se pronunciar a favor do ‘nouveau roman’ francês, defendendo Robbe-Grillet em Contra a Interpretação, seu livro de ensaios que divulgou, entre os americanos, a obra do cineasta franco-suíço Jean Luc Godard e do dramaturgo irlandês Samuel Beckett.

Não é seu melhor livro como ensaísta, que continua sendo Sob o Signo de Saturno (L&PM, esgotado). A característica do espírito saturnino, lento, reflexivo, é própria de escritores como ela, que procuram estabelecer relações entre passado e presente. O espírito de Leni Riefenstahl, a cineasta de Hitler, por exemplo, sempre foi nazista, argumenta a ensaísta em Fascinante Fascismo (página 59), numa época (1974) em que os críticos tentavam reabilitar a diretora, livrando-a do entulho do 3.º Reich com elogios ao seu ‘dedicado’ registro da tribo dos últimos Nuba, nas montanhas do Sudão. Pura retórica racista, rebateu Sontag. Ao enaltecer as provações físicas do homem Nuba, Leni Riefenstahl apenas repetiu o discurso eugênico que celebra a sociedade do mais forte. A essência do mal, o espírito protéico, sobreviveu ao ditador Hitler. Susan Sontag não era nada fraca.’



Antonio Brasil

‘A morte da pensadora das imagens’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 29/12/04

‘Em meio a uma ‘onda’ de imagens terríveis com milhares de mortos na Ásia, surge a notícia da morte da pensadora norte-americana Susan Sontag. Tudo a ver. Ela dedicou boa parte da sua vida a lutar contra a nossa indiferença em relação a essas imagens. Também lutou pelas causas mais nobres da esquerda americana. Nos anos 70, foi contra a guerra do Vietnã. Nos últimos anos, fez questão de denunciar a guerra no Iraque e os abusos contra os prisioneiros em Abu Grabi. Sontag era única. Já foi descrita como a ‘A Amante do Vulcão’ pela verdadeira paixão com que lutava pelos direitos humanos. Ela foi vitoriosa em muitas lutas. Mas, após 30 anos, perdeu a batalha final contra o câncer.

Diante da dor… dos outros

Seu último livro, ‘Regarding the Pain of Others’ ou ‘Diante da Dor dos Outros’ ‘Companhia das Letras, 2003’ parecia prever a coincidência, ironia ou ‘sincronia’ do destino. A apresentação do livro destaca que ‘graças à televisão e ao computador, imagens do sofrimentos são apresentadas diariamente pelos meios de comunicação. Mas como a representação da crueldade nos influencia? O que provoca em nós exatamente? Estamos insensibilizados pelo bombardeio de imagens?’.

Susan Sontag faz uma ‘nova reflexão sobre as relações entre notícia, arte e representação dos horrores da guerra, da dor e da catástrofe. Discutindo argumentos sobre como essas imagens podem inspirar discórdia, fomentar a violência ou criar apatia, a autora evoca a longa história da representação da dor… dos outros’. Susan Sontag lutava contra a nossa própria indiferença em uma era de imagens terríveis.

Com um texto preciso e provocador, Susan Sontag sempre abordou questões cruciais para a compreensão da vida contemporânea. Ainda segundo a apresentação do livro, ‘de sua reflexão surge uma certeza desafiadora: a relevância dessas imagens depende, em última instância, da maneira com que nós, espectadores, as encaramos’. Susan Sontag preferiu não dar as costas ao poder das imagens. Ela sempre encarou a imagem como uma força revolucionária e libertadora. Sua análise precisa se tornou referência no estudo da fotografia.

Sobre Fotografia

Seu livro mais conhecido, ‘On Photography’ ou ‘Sobre Fotografia’ (Companhia das Letras, 2004), fez história no âmbito dos estudos da imagem. Publicado originalmente no Brasil em 1983, reúne seis ensaios escritos na década de 70, em que a romancista e filósofa Susan Sontag analisa a fotografia como fenômeno de civilização. O resultado é ‘uma história social da visão, demonstrando seu lugar central na cultura contemporânea’.

Susan Sontag não era a típica intelectual obscura e hermética. Seu estilo era ‘simples, direto, leve e sedutor, marca de uma das mais atuantes intelectuais da atualidade’. Ela fazia questão de dizer que ‘a realidade, como tal, é redefinida pela fotografia’. Uma realidade repleta de imagens que representam muitas dores, sofrimento e desastres. Sontag mostrou em seus ensaios como as noções de fato e representação se embaralham nas sociedades industriais e consumistas, onde ‘tudo existe para terminar numa foto’. Mas nunca deixou de ser otimista. ‘Eu não quero expressar alienação’. Sontag acreditava no poder do ‘olhar’ público para mudar o mundo.

Agora, se você ainda não se tornou indiferente à dor… dos outros, veja as fotos extraodinárias do desastre na Ásia colhidas pelos satélites-espiões aqui. Mas também procure refletir sobre o poder dessas fotos ao ler os diversos livros de Susan Sontag, a pensadora das imagens.’