Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Clóvis Rossi

‘SÃO PAULO – Do jeito que caminham as coisas, o melhor que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem a fazer é imitar Bill Clinton: ir à televisão para um mea-culpa.


Recapitulemos um pouco o caso Clinton: negou primeiro o caso com a estagiária da Casa Branca, foi apertado por um procurador (este, sim, politicamente motivado) e pela maioria republicana no Congresso até que resolveu contar tudo e pedir desculpas ao público (e à família).


A situação de Lula é, por enquanto, até mais confortável.


Não apareceu, até agora, o batom na cueca, como os repórteres ironicamente chamam uma prova contundente, ao contrário da mancha no vestido que surgiu no caso Clinton/ Monica Lewinsky.


Além disso, há uma quase generalizada disposição de poupar Lula -em parte, pela reserva de simpatia de que ainda goza e, em parte, porque a oposição quer deixá-lo ferido, mas não morto, até a eleição de 2006.


No caso Clinton, os setores conservadores, movidos por uma moral torta, queriam chupar sua jugular de um só sorvo.


Não sei francamente que tipo de mea-culpa Lula poderia fazer, porque não sei o que o presidente sabe sobre o gigantesco imbróglio armado na República. Seja qual for, será certamente melhor que esse gotejar diário de cadáveres políticos insepultos. Melhor para ele e para o país.


É possível até que Lula tenha de pedir desculpas não por seus próprios malfeitos, se existem, mas pelas culpas alheias, embora de amigos e aliados. Paciência.


Pior será manter o país refém de uma situação que o repórter Fernando Canzian, desta Folha, resumiu assim no almoço de ontem entre companheiros: ‘O incrível é que todo mundo acredita em tudo o que Roberto Jefferson diz, menos que caiu um armário em seu olho’. Patético, mas verdadeiro.’


 


Merval Pereira


‘Estratégia arriscada’, copyright O Globo, 7/7/05


‘O deputado federal Roberto Jefferson começou a explicitar a estratégia que vai adotar para tentar evitar sua cassação ao declarar, no programa do Jô Soares, que não aceita ser julgado pela Câmara do mensalão. Ele tem dito que calcula que cerca de 80 a 100 deputados recebiam o pagamento para apoiar o governo na Câmara, e juntando uma coisa a outra, coloca em xeque a autoridade do conjunto de deputados para julgá-lo por quebra de decoro.


Desqualificar a Câmara pode ser uma estratégia arriscada e até mesmo golpista, mas tudo indica que Jefferson quer aproveitar a súbita popularidade para desmoralizar sua quase certa punição.


Os participantes da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito dos Correios tiveram ontem uma reação retardada diante das acusações do deputado Jefferson, que declarou a Jô Soares que alguns dos membros da CPI recebiam mensalão, e, por isso mesmo, fizeram uma inquirição amena com ele. Quando depôs na CPI dos Correios, Roberto Jefferson ameaçou seus membros declarando que fizera o levantamento das prestações de contas de todos que estavam ali, deputados e senadores, e tinha como provar que todas as prestações eram falsas.


O deputado Jorge Bittar, por exemplo, foi ameaçado explicitamente por Jefferson, cujo PTB apoiou sua candidatura a prefeito do Rio no ano passado, a pedido do então chefe da Casa Civil José Dirceu. ‘Estou lhe aguardando. Vou falar sobre o senhor’, disse Jefferson, como se soubesse de segredos da campanha eleitoral que denegririam o deputado petista. Sem que Bittar esboçasse o mínimo gesto de repulsa à ameaça, nem mesmo quando chegou sua hora de questioná-lo. Nesse momento, foi tão cordial que, ao invés de ser acusado de alguma coisa por Jefferson, recebeu dele elogios.


Mais tarde, o jornal O GLOBO mostrou que as declarações de alguns dos membros da CPI eram muito superiores à média de R$ 200 mil denunciada por Roberto Jefferson. Mesmo assim, poucos reagiram às denúncias. Ontem, indignados, pediram que Roberto Jefferson fosse instado a apresentar os nomes dos membros da CPI que, segundo suas denúncias, receberam o mensalão.


O fato é que, desde o momento em que afrontou seus colegas na CPI dos Correios, Roberto Jefferson estava montando sua estratégia de desqualificar seus julgadores. O site ‘Consultor Jurídico’, especializado no assunto, divulgou um estudo segundo o qual ‘mesmo que perca o mandato parlamentar, julgado politicamente pelos seus pares, o deputado Roberto Jefferson (PTB/RJ) não deverá ser incriminado pela Justiça’. Segundo o site, o deputado estaria blindado pelo instituto da imunidade parlamentar, estabelecida pelo artigo 53 da Constituição.


Apenas no caso dos R$ 4 milhões que supostamente teria recebido do publicitário Marcos Valério em nome do PT, para financiamento de campanhas eleitorais, o deputado Roberto Jefferson poderia estar sujeito a punições, por não ter declarado o dinheiro à Justiça Eleitoral. Mas, mesmo assim, há controvérsias, a começar pelo fato de que o PT nega que tenha lhe dado o dinheiro.


Existe uma expectativa na Câmara de que a qualquer momento o deputado Roberto Jefferson poderá aparecer com uma mala de dinheiro para devolvê-lo publicamente ao PT, criando uma situação mais embaraçosa ainda. Roberto Jefferson tem dito, com um ar de ironia, que não distribuiu o dinheiro aos candidatos do PTB, porque o PT não deu recibos da doação. Mas que poderia fazer uma retificação na Justiça Eleitoral se o recibo fosse dado.


Roberto Jefferson, em várias entrevistas, já disse que se sente ameaçado de ser cassado sozinho, pois cada um dos cerca de 100 deputados envolvidos com o mensalão tem pelo menos dois ou três amigos. Caso seja provado que houve realmente o pagamento de mensalão, o deputado Roberto Jefferson não será cassado, pois a representação contra ele pelo presidente do Partido Liberal foi por quebra de decoro ao acusar os deputados do PL e do PP de receberem o mensalão.


Mas, como o julgamento é político, ao lançar a suspeita sobre boa parte da Câmara, Roberto Jefferson está trabalhando com a dúvida: quem pode garantir quantos são os interessados diretos? E os indiretos, por questões de amizade ou outros interesses? Quantos votos serão decisivos para uma condenação? E, apenas para raciocinar, se o deputado Roberto Jefferson for absolvido pelo plenário da Câmara, não terá sido por intimidação?


No regimento interno da Câmara, no capítulo XIII, artigo 180, que trata ‘das votações’, está definido no parágrafo sexto: ‘Tratando-se de causa própria ou de assunto em que tenha interesse individual, deverá o deputado dar-se por impedido e fazer comunicação nesse sentido à Mesa, sendo seu voto considerado em branco, para efeito de quórum’.


Esse artigo poderá ser argüido pelo deputado Roberto Jefferson para tentar invalidar seu julgamento, criando pelo menos uma grande discussão jurídica.


***


Mesmo que a teoria da conspiração dos petistas esteja providenciando uma nova versão para a denúncia do golpismo, incluindo agora uma conspiração de empresas multinacionais contra o governo Lula nas licitações das estatais, não é possível deixar de notar que, no mínimo, esse lobista Marcos Valério fazia tráfico de influência dentro da máquina governamental.


E as muitas coincidências que ligam o aumento de seu patrimônio ao começo do governo Lula, que teve início com o aval a um empréstimo do PT, são impressionantes. Só em livros de ficção um enredo desses seria aceitável.’


 


Contardo Calligaris


‘Roberto Jefferson e a ‘Guerra dos Mundos’’, copyright Folha de S. Paulo, 7/7/05


‘Na coluna da semana passada, disse que os discursos politicamente incorretos são aqueles que tratam seus ouvintes como menores ou como idiotas.


Aparentemente, esses discursos são também uma estratégia política fadada ao fracasso.


Roberto Jefferson está com a palavra, constantemente, desde sua primeira entrevista a Renata Lo Prete (Folha, 6 de junho). Claro, podemos nos perguntar se há provas de tudo o que ele avança e podemos detestar seu passado ‘collorido’. Mas não paramos de escutá-lo. Por quê? Acontece que ele é o único que parece nos tratar como gente grande.


Os que são objeto de suas acusações travam uma luta diária, feita de desculpas, evocações de passados gloriosos e declarações de justas intenções. Eles não têm nenhuma chance de ganhar a batalha. Roberto Jefferson fala mais alto porque ele não faz apelo ao nosso entusiasmo, à nossa fidelidade a grandes convicções ou à nossa suposta grandeza moral. Sua atitude não é a de quem propõe um ideal ou se propõe como ideal (sempre improvável) para as crianças. Ele não pretende estar acima da gente, pois sua autoridade vem de suas manchas. Tampouco ele nos interpela como se fôssemos muito melhores do que realmente somos. Ele nos fala, por assim dizer, de adulto para adulto.


Triunfo do cinismo? Não exatamente. As razões do sucesso de Roberto Jefferson são as mesmas que fazem o charme do filme ‘Guerra dos Mundos’, em suas duas versões, a de Byron Haskin (1953) e a de Spielberg, que está em cartaz.


Vi a primeira aos sete anos, em 55, pois, no cinema que freqüentava, os filmes chegavam tarde. Ficaram, na minha memória, os periscópios dos extraterrestres (que me valeram, na época, algumas noites insones) e uma sensação final de otimismo, tanto mais estranha que, no começo dos anos 50, minha cidade (Milão) se parecia com as ruínas produzidas pela invasão dos marcianos. Nestes dias, revi o filme de 53 e experimentei a mesma sensação sem saber bem por quê.


Logo, assistindo ao filme de Spielberg, que me produziu um efeito parecido, entendi a razão de meu otimismo. No filme de 53, os humanos, bem prosaicos, acham uma boa idéia instalar um quiosque de hambúrgueres ou sorvetes ao lado do objeto misterioso que acaba de cair do céu. No filme de Spielberg, o protagonista é um pai adolescente atrasado, irresponsável e egoísta. Em ambos os casos, os humanos, perseguidos e acuados, revelam-se capazes do pior: saques e vale-tudo para salvar a pele. Em ambos os casos, nossas armas não chegam a amassar a carroçaria dos extraterrestres, que nos exterminam tranqüila e metodicamente. E não aparece nenhum super-herói, nenhum presidente piloto de caça, à la ‘Independence Day’.


Não quero estragar o prazer de quem planeja ver o filme, mas, em resumo, a conclusão é esta: os humanos não são salvos pela sua força nem pela sua inteligência nem pela duvidosa nobreza de seu caráter. O que salva o planeta e a gente é nossa sujeira.


Ambos os filmes poderiam terminar com um aviso aos invasores, canibais, vampiros e outros: cuidado, os humanos são fracos, mas eles são indigestos. Na hora de morder, desconfie de gambás e porcos-espinhos.


Comentando comigo o filme de Spielberg, um adolescente brincou: por que os extraterrestres estão sempre pelados? Se são mais avançados que a gente, como é que ainda não inventaram calças e saias? Respondi-lhe o seguinte: é por isso mesmo que eles são mais ‘avançados’ que a gente. Se nossa ciência é capenga e não consegue produzir viagens interestelares, escudos magnéticos e raios letais, talvez seja porque nosso pensamento é parasitado por desejos reprimidos, sentimentos de culpa, inibições, preocupações com a opinião dos outros, brigas de casais e outras ninharias que nos levam, por exemplo, a cobrir algumas partes do corpo. Nossa civilização é uma vasta neurose, sem a qual, sem dúvida, seríamos muito mais racionais e eficientes.


Num tom mais sério, meu jovem interlocutor notou também que os extraterrestres da ‘Guerra dos Mundos’ nos exterminam sem nenhum problema de consciência. Se os papéis fossem invertidos, muitos de nós se inibiriam na hora de massacrar, pois reconheceriam no corpo esverdeado dos estrangeiros não uma rã, mas um semelhante. Afinal, se as baleias e os golfinhos são dos nossos, por que não os marcianos? Com isso, meu interlocutor começou a pensar que a neurose que atrapalha nossa razão e produz nosso ‘subdesenvolvimento’ talvez tenha lá seus aspectos positivos.


Alguns estranharam que Spielberg retomasse uma história que parece afastada de seu humanismo habitual. Nada disso: o enredo de ‘Guerra dos Mundos’ dá prova de um humanismo exacerbado, embora propriamente pós-moderno; não celebra a excelência, o gênio e os músculos idealizados de nossa espécie, mas sugere que nossa força está em nossas misérias reais: bicho ruim não morre fácil.


Da mesma forma, Roberto Jefferson (ai do extraterrestre que tentasse comê-lo) é um personagem pós-moderno. Como acontece com os humanos da ‘Guerra dos Mundos’, sua força é sua imperfeição.’


 


Cora Rónai


‘Estava escrito nas estrelas’, copyright O Globo, 7/7/05


‘O ano de 1989 foi um dos piores da minha vida. Nas eleições, na contra-mão da maioria dos meus amigos, escolhi votar em Covas, que julgava um homem de bem, comprometido com o Brasil. Ao contrário de Lula, que me parecia no máximo pitoresco, e de Collor, evidentemente doido. O problema é que decidi não só votar em Covas, mas também ajudar sua candidatura. Distribuía folhetos e santinhos, e usava, nas janelas do meu carro, uns bonitos adesivos de propaganda, feitos pelo Millôr.


Pois nunca me senti tão discriminada e tão só quanto então. Num instante nossos amigos deixaram de ser amigos e viraram petistas full-time , soltando fogo sagrado pelas narinas ideológicas. Praticamente cortaram relações comigo e os que pensavam como eu. Um ou outro ligava, mas não conseguia disfarçar a superioridade autocongratulatória, de quem dá uma esmola ou visita uma comunidade carente. Eram visivelmente superiores àquelas pessoas que tinham o impudor de pensar diferente, e que mereciam, no mínimo, o ostracismo social. Estavam sendo ideologicamente magnânimos. Vivi desde situações bizarras, como a discussão com um casal de milionários consumistas defendendo o pseudo-proletariado no sofá da sala repleta de peças art-nouveau, às constrangedoras, como o dedo espetado no meu peito por uma estagiária do ‘Jornal do Brasil’ que, no elevador, me cobrava não estar usando um button do PT, Pureza Total.


O pior era voltar para casa. Meu caminho passava pelo Garota de Ipanema, que se transformara em point. Petista, claro: não havia outros. O mundo era petista. Entrar na Vinicius com o sinal fechado virou pesadelo. Meu pobre Fiat atravessava um corredor polonês em que levava murros e era chutado pelos democratas alcoolizados. Quando eu finalmente estacionava na garagem, antes de desabar em prantos, ainda tinha que tirar os lulalás que haviam sido colados na lataria. O que me esperava lá em cima não era melhor: ofensas e ameaças nojentas na secretária eletrônica.


***


Atravessei a ditadura mais ou menos incólume, apesar de ser jornalista, como tantos, abertamente contra o regime. A questão é que, dos militares, não se esperava outra coisa senão antagonismo e ‘pau neles!’ (nós). Aquela era a ordem natural das coisas, a lei e a ordem, eles de lá, nós de cá. Mas como lidar com amigos e companheiros de idéias subitamente transformados em inimigos encapuzados com a máscara da ideologia? Como lidar com a indiferença e a descrença, ou, no máximo, com a ‘infinita paciência’, com que os amigos recebiam meus desabafos?


A questão é que, para eles, não havia partido mais democrático do que o PT, santamente mergulhado em eternas reuniões para decidir as menores coisas. O que acontecia lá fora eles não sabiam, nem queriam saber. Ignorância é poder!


A violência na secretária eletrônica e na lataria do automóvel era excesso natural de uns poucos ‘radicais’; meu sufoco dentro do carro sacudido pela turma da Vinicius era bobagem de boneca intelectual, coisa de mulherzinha.


Perdi alguns amigos, perdi toda a confiança em outros. Mudei de trajeto, desliguei a secretária e, decisão pequeno burguesa, jurei que jamais votaria no PT. Quando Covas perdeu no primeiro turno, passei a defender o voto nulo. A vida do carro, do qual tirei os adesivos, melhorou muito; já a minha não. Pouca gente entende o voto nulo como manifestação política. Não passava pela cabeça de ninguém que uma pessoa razoavelmente letrada e medianamente civilizada pudesse optar por anular o voto. Para mim, que considero o voto uma procuração que passo a alguém para exercer meu direito de cidadania, não havia outra saída.


Meus ex-amigos petistas estavam convencidos de que, não sendo Lula, eu era, inevitavelmente, Collor. Sem coragem de declarar. Para eles era mais fácil ‘raciocinar’ assim. É curioso, e ao mesmo tempo assustador, que não tenha ocorrido a nenhum deles que pudesse haver algo profundamente errado com a premissa de que, numa eleição livre, alguém precisasse esconder seu voto. Mais curioso (e igualmente assustador) era observar o pequeno número de carros que circulavam com adesivos do Collor. Qualquer pesquisa de opinião pública feita a partir de adesivos de vidros de automóveis daria vitória esmagadora para o PT.


Até hoje me pergunto quantos votos o PT não perdeu naquele ano por causa da sua falta de vocação para o diálogo, ou melhor, sua falta de desconfiômetro — e da truculência da sua militância. Sempre que ousei tocar nesse assunto com petistas, nenhum jamais reconheceu que houve ali qualquer coisa errada. Tudo mero exagero de xiitas exaltados. Exatamente como hoje, exceto que a violência deu lugar à roubalheira. Não sei o que é pior.’