Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Colapso americano é colapso keynesiano

A grande mídia mundial – e a brasileira no rastro – ressuscita, neste momento, o grande economista inglês John Maynards Keynes, autor, entre outros brilhantes livros, de Teoria Geral do Juro e da Moeda.

Mas, não é a solução keynesiana, que dinamizou o capitalismo americano, na base da economia de guerra, durante todo o século 20, a que está entrando em profunda crise nos Estados Unidos?

Seria Keynes, isto é, a solução guerreira, tocada por gastos públicos, a solução, se, na América, virou problema?

É o neoliberalismo ou o keynesianismo adotado por Tio Sam que entra em crise, se, na verdade, não existe sistema neoliberal americano? Colapso americano não seria o colapso keynesiano, nos termos da aplicação da solução de Keynes, a partir do pós-guerrra sob o dólar forte americano, para fixar nova divisão internacional do trabalho?

O modelo é amplamente conhecido: os Estados Unidos seriam o grande consumidor mundial, emitindo moeda sem lastro – garantida por bombas atômicas – para realizar as exportações dos aliados no mercado americano, assumindo estes, em compensação, responsabilidade de comprar os títulos do tesouro de Tio Sam, emitidos para bancar a segurança do mundo contra o avanço do comunismo, mediante expansão da dívida pública interna americana. O desenho explodiu na crise do subprime.

O Estado e o sistema

Keynes, mesmo, desconfiava da sua própria solução e previu que ela poderia não ser eterna, como imaginam os seus discípulos: ‘Penso ser incompatível com a democracia capitalista que o governo eleve seus gastos na escala necessária para fazer valer minha tese – a do pleno emprego – exceto em condições de guerra. Se os Estados Unidos se insensibilizarem para a preparação das armas, aprenderão a conhecer sua força‘ (John Maynards Keynes, no jornal New Republic, 1940, citado por Lauro Campos em A crise da ideologia keynesiana, Campus, 1980).

O ensinamento básico do genial economista, matemático e filósofo inglês representa a sua crença básica: o capitalismo necessita da guerra. Ele, segundo Lauro, havia entendido essa lição fundamental depois da primeira guerra mundial de 1914. Embora a guerra promovesse destruição, como reconheceu, ela promove riqueza e prosperidade, que rompe as contradições que o laissez faire promove, estressando a produção e consumo em contradição que explode em deflação, ou seja, em destruição tanto do capital como do trabalho.

A guerra seria a solução. Marx havia dito que o capitalismo expandiria ao máximo as forças produtivas, entraria na senilidade e passaria a desenvolver, dialeticamente, o seu oposto, as forças destrutivas, na guerra, sob comando do Estado, que ultrapassaria a economia de mercado, algo que esboçou em O rendimento e suas fontes – A economia vulgar. Aí divide sua obra maior, O Capital, em seis etapas: I – O Capital, II – A propriedade fundiária, III – O trabalho assalariado (envolvendo capital e trabalho, na produção e consumo), IV – O Estado, V – O comércio exterior e VI – O mercado mundial e crise. O Estado, segundo Marx, entraria em cena para salvar o sistema, tornando parte intrínseca dele.

Uma ‘relíquia bárbara’

O pensamento keynesiano se reforça na linha de Marx, no compasso dessa constatação. O governo inglês, na guerra, experimentara, com o aumento dos gastos nas atividades bélicas, recuperação forte da economia, tirando os setores produtivos de bens duráveis da crise de realização no livre mercado. Gastos guerreiros que geram renda para ser gasta no setor de bens e serviços privados, sem necessitar aumentar a oferta, de modo a manter relativa escassez capaz de sustentar preços altos.

Tal fato, temporariamente, favoreceu a libra esterlina, afetada pela expansão do dólar, de um lado, e do marco alemão, de outro, desde a grande crise neoliberal de 1873-1893. Lorde Keynes sabia que os dias da sua querida Inglaterra estavam contados, principalmente depois que os governos ingleses resistiram à desvalorização monetária, como alternativa para preservação do padrão-ouro, sob o qual o poder inglês se erigiu nos séculos 17 e 18. O cachimbo fez a boca torta.

A guerra, algo totalmente anti-liberal, foi, keynesianamente, a solução ideal. Na linha preconizada por Marx, a produção das mercadorias destrutivas exigiria, sob comando político do Estado, expresso no governo, uma nova representação monetária, cujo perfil seria, naturalmente, diferente do dado pelo padrão-ouro, que se transformaria, segundo Keynes, em ‘relíquia bárbara’.

A guerra fria

Lauro Campos, em A crise da ideologia keynesiana, seguindo os passos de Marx, conceitua as mercadorias destrutivas como ‘não-mercadorias’, cujo único consumidor, o governo, lançava na circulação, para adquiri-las, uma não-moeda, não-valor, oposto da moeda sob o padrão-ouro, ancorada em metais. Ou seja, ativos fictícios substituiriam os ativos reais, para garantir, na guerra e na especulação, a adequada reprodução capitalista. A ficção impulsiona a realidade.

Essa moeda sem lastro teria como garantia a capacidade de endividamento dos governos. Por isso, o que está entrando em crise, agora, nos Estados Unidos, é a incapacidade do governo americano, sob desconfiança do mercado, de continuar emitindo moeda sem lastro para enxugar moeda podre, jogada na circulação pelo próprio governo.

O papel dele de ser o entesourador geral de uma moeda que tende permanentemente à inflação está, com o dólar como representação monetária mundial, batendo biela, como demonstra à larga a realidade.

A onda neokeynesiana, que nasce no rastro da primeira grande crise monetária, traz no topo a proposta de solução que se transformou em problema. A mídia, que nunca discutiu o assunto para valer, bate palmas.

Keynes foi o remédio do qual o capitalismo lançou mão durante todo o século 20 para sustentar a demanda global via economia de guerra. A guerra fria, por exemplo, segundo o Instituto Peel, representou a âncora capitalista no pós-guerra, impondo gastos públicos americanos da ordem de 15 trilhões de dólares, algo, relata o instituto, não levado em conta na contabilidade dos neoliberais como fator determinante de sustentação do sistema.

Mais renda para o consumo

O prêmio Nobel Joseph Stiglitz destacou que a demanda global, nos últimos cinco anos, somente foi mantida graças aos gastos de mais de 2 trilhões de dólares do governo americano em guerras. Destruição como salvação.

O desenvolvimento das forças capitalistas, que promove, de um lado a acumulação e, de outro, o subconsumismo, condenou o sistema capitalista à crônica insuficiência de demanda global, como destacaram Malthus e Marx.

O capitalismo, segundo eles, marcharia sempre, como aconteceu durante todo o século 19, para a deflação. Malthus, que considerou a economia ciência lúgubre, viu que o excesso de eficiência do sistema, tocado pela ciência e a tecnologia a serviço da produção, necessitaria, dialeticamente, do seu oposto, ou seja, a ineficiência. Escândalo para os neoliberais.

Quem patrocinaria essa suficiência ineficiente para sustentar a eficiência insuficiente? O governo, elevando seus gastos, disse Robert Malthus, autor de Princípios de Economia Política.

Keynes, neomalthusiano, marxista disfarçado, via nos gastos governamentais em guerra a dissipação necessária, para promover renda para o consumo, sem que houvesse necessidade de aumentar a produção, como destaca Lauro Campos, em Malthus e Keynes, duas almas gêmeas a serviço do capitalismo (Senado).

Inflação e deflação

Em 1929, o capitalismo, basicamente bi-setorial, baseado nos departamentos I e II, produtor de bens de produção e produtor de bens de consumo, D1e D2, respectivamente, alcançou a contradição insolúvel apontada por Marx. O subconsumismo levara o sistema à deflação. A salvação seria o seu oposto, a inflação, que, de acordo com Keynes, é a ‘unidade das soluções’.

O Estado, como antevira Marx em O rendimento e suas fontes – a economia vulgar, entra no processo quando as contradições entre D1 e D2 emergem em colapso. Foi o que aconteceu em 1929.

Os neoliberais sempre se incomodariam durante todo o século 20 com D3, gastos do governo, puxando D1 e D2, keynesianamente. Reagiram a ele, por não entenderem, complemente, a gênese da moeda que vai dar sustentação a D3, diferente a moeda do século 19, que bancara a bissetorialidade de D1 e D2.

Os gastos do governo, de D3, precisariam, para contragosto dos neoliberais e comentaristas econômicos, crescer mais que o próprio PIB. Puxaria, com inflação, o setor privado, tendente, cronicamente, à deflação. Dialética.

Espírito animal empresarial

A nova moeda capitalista, emitida por D3, gastos do governo, do Estado, que se transforma, efetivamente, em capital, na economia monetária keynesiana, é, para os neoliberais mero fator de troca, que não deve ser levada em conta na formulação macroeconômica, dado que seria neutra. Visão esquizofrênica.

Como em novo contexto, no qual os gastos do governo, ineficientes, precisam salvar o setor produtivo privado, eficiente, a moeda sob o padrão-ouro não servia mais, pois se transformara em ‘relíquia bárbara’ (Keynes).

O conselho de Keynes para os Estados Unidos, a partir de 1936, para que lance mão do state money sem medo para conhecer sua verdadeira força é a expressão exata da macroeconomia capitalista bombada pela moeda capitalista política impulsionadora da economia de guerra – produção bélica e espacial, expansão da máquina pública etc.

Sem o governo gastar além das suas receitas, acima do percentual do PIB, com seu capital, sua moeda, não existiria capitalismo no século 20. Lênin sairia amplamente vencedor, depois da revolução soviética.

O governo, nesse contexto, é, como diz Keynes, a única variável econômica verdadeiramente independente, sob o capitalismo, ao elevar a quantidade da oferta de moeda na circulação. Quando faz isso gera o que denominou de ‘eficiência marginal do capital’, ou seja, o lucro, que faz nascer o espírito animal empresarial. Tal estratégia estatal 1 – diminui os salários, 2 – eleva os preços, 3 – diminui os juros e 4 – perdoa a dívida dos investidores.

A moeda mundial

Desperta, dessa forma, o espírito animal investidor, enquanto precisaria exercitar, sem receios, a capacidade governamental de enxugar o meio circulante, via expansão da dívida pública interna, que, dialeticamente, cresce no lugar da inflação.

Como continuar o jogo keynesiano, sem a capacidade infinita de entesourar para enxugar a base monetária para evitar enchente inflacionária?

Seria Keynes a solução, se esta, nos Estados Unidos, ou seja, no país mais rico do mundo, transformou-se em problema, já que o empoçamento de moeda na economia decorre do excesso de colocação dela em circulação pelo próprio governo, estimulador da sua reprodução ampliada no mercado derivativo?

A grande mídia, nesse contexto, dá uma de avestruz. Mete a cabeça na areia e se torna prisioneira de um círculo de giz.

O poder midiático nesse momento, mais perdido que cego em tiroteio, precisa de uma raiz, mesmo que falta, para se sustentar, porque os seus argumentos neoliberais faliram.

Apega-se, desesperadamente, em Keynes, até há pouco, asperamente, criticado por ela. Mas, teria fôlego a solução de Keynes, em 1944, de propor, em Bretton Woods, o bankor, moeda mundial, escritural, que controlaria a contabilidade global, administrando os déficits dos balanços de pagamentos por intermédio pelas mãos das grandes potências?

A bancarrota financeira

Naquela ocasião, os Estados Unidos, saídos fortes da guerra com o dólar super-poderoso, pronto para exercitar as relações de troca globais em seu nome, em nome do império americano, disseram não.

Keynes enfiou a viola no saco e concordou com o neopoder, ao qual passou a dar conselhos. Sua entrevista ao repórter e economista Santiago Fernandes, do Jornal do Brasil e do Banco do Brasil, em Bretton Woods, relatada no livro A Ilegitimidade da Dívida Externa do Brasil e do III Mundo, demonstra sua visão geral do poder americano.

O dólar, e não o bankor, disse, seria a representação e equivalência monetária global, impondo deterioração nos termos de trocas cambiais, em favor dos americanos e em prejuízo dos aliados, especialmente, da periferia capitalista.

A proposta sugerida por Keynes, repetida, agora, pelos sete grandes, as superpotências, baleadas pela crise, teria cara de pão velho, amassado.

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em reunião com os tucanos em Brasília, acendeu a luz. Disse que emerge novo tempo caracterizado por inversão nas relações de troca. O que vale mais no calor da bancarrota financeira: as moedas dos ricos, sem lastro, ou a riqueza, por exemplo, da América do Sul, cujo lastro são as matérias-primas fundamentais que a manufatura global?

Humanidade estressada

Os sete grandes comem grama e arrotam leitão. Sarkozy e W. Bush, desmoralizados, têm moral para reunir os grandes, fixar novas relações de trocas a partir de um neo-bankor keynesiano, se a solução de Keynes virou problema?

O novo Keynes não poderia abarcar apenas os 7 Grandes, se eles não têm mais poder de impor deterioração na relação de troca global com suas moedas deslastreadas de qualquer valor real.

Pode ser, mas não seria para promover mais guerras. Nem elas serão mais bem vindas para os governos americanos, que terão que gastar tanto, internamente, para salvar os consumidores da explosão monetária, que sobrarão menos recursos para mandar para o Iraque, para continuar puxando a demanda global capitalista, via economia guerreira.

A paz e não a guerra é o novo desejo de consumo de Tio Sam. Pelas mãos de Keynes? Pode, também, ser, mas não apenas administrados pelos sete grandes, que perderam a força.

A solução keynesiana surgiu no século 20 para salvar o capitalismo da crise de 1929, mas entrou, quase 70 anos depois, na crise do Estado devedor, que entrou na economia, com moeda própria, para salvar o setor privado. Todos os três, agora, estão atolados, keynesianamente.

Se pintar neokeynesianismo, teria que ser global, valendo para todos e, portanto, não terá, apenas, a cara capitalista de Keynes, expressa no modelo de guerra. O colapso americano-keynesiano estressou a humanidade e a própria Terra, destruída pela sede do lucro.

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Jornalista, Brasília, DF