Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Comércio ilegal de rádio e TV funciona sem repressão


Folha de S. Paulo, 29/3


Laranjal de concessões


A revelação de que testas de ferro são utilizados regularmente para a aquisição de concessões de rádio e TV nas licitações do governo federal vem reforçar a necessidade de reforma urgente do sistema.


Levantamento desta Folha mostrou que funcionários públicos, donas de casa e até uma cabeleireira e um enfermeiro constam como donos de rádios e TVs. Nada contra essas profissões, claro, tão dignas como quaisquer outras.


O problema reside no fato de a renda desses supostos proprietários ser incompatível com os valores das transações feitas em seus nomes. São, no jargão da delinquência, meros ‘laranjas’.


O objetivo da fraude é ocultar os verdadeiros donos das emissoras. São especuladores, igrejas e políticos que, por motivos vários, não podem ser a face visível dessas empresas de comunicação. Driblam, assim, proibições legais e têm liberdade para agir em prol dos próprios interesses, raramente condizentes com os do público.


Quase tão chocante quanto constatar a burla é ver o Ministério das Comunicações admitir, com candura, que não teria meios de identificar o uso de laranjas. ‘Seria preciso quebrar o sigilo fiscal da empresa e dos sócios e fazer escuta telefônica para saber se há um sócio oculto por trás dos proprietários declarados’, disse o secretário de Serviços de Comunicação Eletrônica do ministério.


Ora, a reportagem da Folha, sem fazer uma coisa nem outra, apontou 44 laranjas em 91 concessões conferidas de 1997 a 2010.


A incapacidade de identificar fraudes, no entanto, é apenas uma das muitas deficiências do processo de concessão. Há quase 900 licitações feitas entre 1997 e 2001 ainda não concluídas. Assim, fica claro que não só falta celeridade às concessões no país como o longo tempo gasto não se traduz em processo mais criterioso.


O governo discute, desde o ano passado, um novo marco regulador para a mídia eletrônica. Um anteprojeto que veio a público em dezembro proibia políticos de receberem concessões de rádio e TV. A medida é acertada, uma vez que o controle de meios de comunicação de massa confere uma vantagem indevida a seus proprietários no processo eleitoral.


É muito improvável que o Congresso vá nessa direção. O próprio ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, favorável à proibição, já admitiu que é mais fácil o Parlamento votar o impeachment de um presidente que rejeitar a renovação de uma concessão. Nada menos que 61 eleitos em 2010 informaram ter rádio ou TV -fora os que se valem de laranjas.


O ministro Paulo Bernardo anunciou que pedirá a cassação das concessões em poder de laranjas, mandará investigar outras irregularidades e tornará mais rígidas as regras das licitações. O público começará a acreditar nesse tipo de promessa quando ocorrer, de fato, a primeira cassação.




 


 


 


Folha de S. Paulo, 29/3


Carlos Heitor Cony


Laranjas de ontem e de hoje


Quando ia de trem para o interior do antigo Estado do Rio, ao passar por Nova Iguaçu, logo à saída do ex-Distrito Federal, sentia o cheiro das laranjas que, de um lado e de outro da via férrea, invadia os vagões que perdiam o cheiro de fumaça das velhas locomotivas e ganhavam aquele perfume de sumo, de fruta fresca e encantada, dos imensos laranjais que nos acompanhavam por algum tempo.


Era um cheiro bom, e além do cheiro, também era bom ver as laranjeiras verdes e pejadas de frutos cor de ouro. Tínhamos a impressão de que os laranjais nunca terminavam, eram imensos e eram eternos.


Passou-se o tempo e, por ironia, temos hoje outro tipo de laranja que nos acompanha, que está em toda a parte, no governo e fora dele, no empresariado, na economia, na política, nos esportes, quase na vida diária e pessoal de cada um.


É uma invasão de laranjas, mas laranjas malcheirosas, de péssimo aspecto, que transformam a realidade num truque de mágica, gente que é o que não é; e gente que não é e passa a ser, para efeito de driblar a lei.


Tudo e todos parecem ser laranjas uns dos outros. Onde há dinheiro grosso, concessões de rádio e televisão, alguma forma de poder grossíssimo, há concentração de laranjas que espionam e são espionados, gravam-se fitas e vídeos, aparecem documentos que são e não são legais. O emaranhado que se cria entre o laranja e o seu produtor, ou seja, aquele que o contrata e o paga, é difícil de ser avaliado e dificílimo de ser punido.


Qualquer jogada de peso no mercado cria um laranjal de influências, laranjas que têm dono, algumas se expõem, outras se escondem. E ao contrário das laranjas da antiga Nova Iguaçu, não perfumam o trem em que viajamos.



 


 


 


Folha de S. Paulo, 29/3


Elvira Lobato


Governo retomará rádios e TVs em nome de laranjas


O ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, anunciou ontem que o governo cassará as concessões de rádio e TV que foram adquiridas em licitações públicas por empresas registradas em nome de laranjas.


A decisão foi tomada um dia depois de a Folha revelar que entre os vencedores de concessões milionárias estão funcionários públicos, donas de casa, cabeleireira, entre outros trabalhadores com renda incompatível com o valor dos negócios.


Alguns admitiram ter emprestado os nomes para que os reais proprietários não aparecessem. De 91 empresas analisadas pela reportagem, 44 não funcionam nos endereços oficiais.


Segundo Paulo Bernardo, o ministério já tinha conhecimento de parte das ‘ocorrências’, embora desconhecesse detalhes sobre o uso em larga escala de laranjas.


O ministro disse que pedirá ao Ministério Público Federal que investigue também a revenda de concessões pela internet, revelada pela Folha na edição de ontem.


‘A legislação proíbe a revenda das concessões até que a emissora complete cinco anos de funcionamento. Quem comprou e revendeu para ganhar dinheiro pode perder a concessão’, disse.


QUEBRA DE SIGILO


Paulo Bernardo comentou o caso da Empresa Ursa Maior, registrada em nome da cabeleireira Neide Maria Pedroso, da Itapecerica da Serra (SP), que venceu licitações para três concessões de rádio, por R$ 8,19 milhões.


Afirmou que há indícios de que ‘há algo muito errado’ e que o Ministério Público tem poder para pedir a quebra de sigilo fiscal, bancário e telefônico e descobrir se existe um proprietário oculto por trás das empresas.


Outras medidas anunciadas foram a suspensão da abertura de novos editais de licitação enquanto o ministério não concluir a tramitação dos processos que estão acumulados e a modificação dos próximos editais para inibir o uso de laranjas.


Ele defendeu a exigência de que os candidatos depositem uma garantia de 20% do valor de mínimo de venda estabelecido pelo governo.


Os perdedores receberão o dinheiro de volta ao final da licitação e o ganhador o usará como parte do pagamento pela concessão.


ACÚMULO


A reportagem da Folha mostrou ainda que 890 licitações feitas de 1997 a 2001 ainda não foram concluídas. Bernardo admitiu que a tramitação dos processos pelo ministério é lenta e prometeu concluir todos os processos acumulados em 18 meses.


Ele anunciou ainda que encaminhará à AGU (Advocacia-Geral da União) vários processos parados porque o comprador não pagou o prometido. E defendeu que as concessões licitadas há mais de dez anos, e ainda não concluídas, sejam canceladas e feitas novas licitações.


Outras providências anunciadas foram as mudanças de regras para a emissão de outorgas de emissoras educativas e de retransmissoras de TV, que são autorizadas gratuitamente pelo governo.


Segundo o ministro, para tornar ‘mais transparente’ a distribuição das outorgas será feita uma consulta pública ainda nesta semana.



 


 


 


Folha de S. Paulo, 28/3


Elvira Lobato


Comércio ilegal de rádio e TV funciona sem repressão


No rastro das licitações de venda de concessões de rádio e TV surgiu um mercado ilegal de emissoras que o governo, reconhecidamente, não reprime.


Concessões recém-aprovadas pelo governo estão à venda abertamente em sites especializados na internet, contrariando a lei.


A legislação só permite a transferência de controle de emissoras depois de cinco anos em funcionamento, e ainda assim com autorização do governo e do Congresso, que aprova cada concessão.


Antes do prazo, só é permitida a transferência de 50% das cotas. Mas as concessões mudam de mãos por contratos de gaveta.


O secretário de Serviços de Comunicação Eletrônica do Ministério das Comunicações, Genildo Lins de Albuquerque Neto, reconhece que não tem meios para coibir o comércio ilegal.


Segundo ele, os contratos de gaveta devem ser investigados por Polícia Federal e Ministério Público, assim como o uso de laranjas para a compra de concessões.


Como a Folha revelou ontem, os laranjas são usados para camuflar os reais donos de veículos de comunicação -em geral especuladores, políticos e igrejas.


APARÊNCIA LEGAL


A Folha apurou que igrejas são os principais clientes desse mercado. Elas adquirem principalmente rádios em sites que trazem links do Ministério das Comunicações e da Anatel para dar aparência de legalidade.


O site Radiodifusão & Negócios, por exemplo, anuncia a venda de uma rádio FM ‘por montar’ em São Paulo por R$ 4,8 milhões.


Emissoras educativas e retransmissoras de TV, distribuídas gratuitamente, também estão à venda em outros sites e por corretores autônomos. Os preços variam de acordo com o local.


A venda é feita por meio de um contrato de transferência imediata de 50% do capital da empresa, e de direito de opção sobre os 50% restantes. Assim, o vendedor não pode recuar do compromisso com o comprador.


Simultaneamente, o comprador recebe uma procuração que lhe dá poderes para responder pela empresa junto ao Ministério das Comunicações e à Anatel.


Sem se identificar, a reportagem conversou com um vendedor, pelo celular, sobre o aluguel de rádios a igrejas.


‘O contrato é assinado com pagamento adiantado de dois meses de aluguel. A igreja fica com o comando total da rádio. É assim que funciona’, disse o corretor.


A Folha não conseguiu localizar os responsáveis pela página na internet.



 


 


 


Folha de S. Paulo, 27/3


Elvira Lobato


Laranjas compram rádios e TVs do governo federal


Donas de casa e cabeleireira são proprietárias de concessões milionárias. Por trás das empresas há igrejas, políticos e especuladores que, assim, conseguem ocultar a participação


Empresas abertas em nome de laranjas são usadas frequentemente para comprar concessões de rádio e TV nas licitações públicas realizadas pelo governo federal, aponta levantamento inédito feito pela Folha.


Por trás dessas empresas, há especuladores, igrejas e políticos, que, por diferentes razões, ocultaram sua participação nos negócios.


Durante três meses, a reportagem analisou os casos de 91 empresas que estão entre as que obtiveram o maior número de concessões, entre 1997 e 2010. Dessas, 44 não funcionam nos endereços informados ao Ministério das Comunicações.


Entre seus ‘proprietários’, constam, por exemplo, funcionários públicos, donas de casa, cabeleireira, enfermeiro, entre outros trabalhadores com renda incompatível com os valores pelos quais foram fechados os negócios.


Alguns reconheceram à Folha que emprestaram seus nomes para que os reais proprietários não figurem nos registros oficiais. Nenhum, porém, admitiu ter recebido dinheiro em troca.


Há muitas hipóteses para explicar o fato de os reais proprietários lançarem mão de laranjas em larga escala.


Camuflar a origem dos recursos usados para adquirir as concessões e ocultar a movimentação financeira é um dos principais.


As outras são evitar acusações de exploração política dos meios de comunicação e burlar a regra que impede que instituições como igrejas sejam donas de concessões.


Não há informação oficial de quanto a venda das concessões públicas movimentou. De 1997 a 2010, o Ministério das Comunicações pôs à venda 1.872 concessões de rádio e 109 de TV. Licitações analisadas pela reportagem foram arrematadas por valores de até R$ 24 milhões.


Também não existem dados oficiais atualizados sobre as licitações disponíveis para consulta. As informações do ministério deixaram de ser atualizadas em 2006.


Para chegar aos donos das empresas, a Folha cruzou informações fornecidas pelo governo com dados de juntas comerciais, cartórios, da Anatel e do Senado, que tem a atribuição de chancelar as concessões.


Em nome de Deus


Pessoas que admitiram ter emprestado seus nomes dizem que o fizeram por motivação religiosa ou para atender a amigos ou parentes.


Donos, respectivamente, das Rádio 630 Ltda. e Rádio 541 Ltda., João Carlos Marcolino, de São Paulo, e Domázio Pires de Andrade, de Osasco, disseram ter autorizado a Igreja Deus é Amor a registrar empresas em seus nomes para ajudar a disseminar o Evangelho.


Políticos também podem estar por trás de empresas. O senador Romero Jucá (PMDB-RR), líder do governo no Senado, é apontado pelo sócio no papel da Paraviana Comunicações como o real dono da empresa, que comprou duas rádios FM e uma TV em licitação pública.


Em e-mail enviado à Folha, João Francisco Moura disse que emprestou o nome a pedido do amigo Geraldo Magela Rocha, ex-assessor e hoje desafeto de Jucá.


Magela confirmou a versão. O senador foi procurado quatro vezes pela reportagem para responder à acusação, mas não se pronunciou.


O radialista e ex-deputado estadual Paulo Serrano Borges, de Itumbiara (GO), registrou a Mar e Céu Comunicações em nome da irmã e do cunhado. A empresa comprou três rádios e duas TVs por R$ 12,7 milhões e, em seguida, as revendeu.


Borges disse apenas que usou o nome da irmã por já ter outras empresas em seu nome, sem dar mais explicações. E que revendeu as concessões por não ter dinheiro para montar as emissoras.


Chama a atenção o fato de que algumas concessões são adquiridas com ágio de até 1.000%. Empresários do setor ouvidos pela Folha dizem que as rádios não são economicamente viáveis pelos valores arrematados. O setor não tem uma explicação comum para esse fenômeno.


A rádio de Bilac (SP), por exemplo, foi vendida por R$ 1,89 milhão, com 1.119% de ágio sobre o preço mínimo do edital. A empresa está registrada em nome de uma cabeleireira moradora de Itapecerica da Serra (SP).





 


 


Folha de S. Paulo, 27/3


Elvira Lobato


Ministério diz não ter como saber se donos são laranjas


Secretário da pasta diz que investigação cabe à PF e que não há lei que impeça desempregado de abrir uma empresa


O secretário de Serviços de Comunicação Eletrônica do Ministério das Comunicações, Genildo Lins de Albuquerque Neto, diz não ter meios de identificar se os nomes que aparecem nos contratos sociais das empresas são laranjas ou proprietários de fato, e que essa é tarefa para a Polícia Federal e para o Ministério Público Federal.


‘Seria preciso quebrar o sigilo fiscal da empresa e dos sócios e fazer escuta telefônica para saber se há um sócio oculto por trás dos proprietários declarados’, afirmou.


Alega ainda que não pode contestar a veracidade de documentos emitidos por instituições de fé pública, como os cartórios e as juntas comerciais que registram os contratos das empresas.


‘Não há lei que impeça um soldado, um desempregado ou um funcionário público subalterno de abrir empresa. Não tenho como obrigá-los a comprovar, antes da licitação, se têm ou não o dinheiro para pagar a concessão.’


A prioridade, segundo o secretário, é colocar em dia os processos de concessão atrasados -após a licitação há um longo caminho até a aprovação definitiva.


Ele prometeu zerar o estoque de rádio e TV acumulados no prazo de um ano e meio. Até lá, está suspensa a abertura de novas licitações.


‘Entre a licitação pública de venda da concessão e a emissão de licenciamento da emissora há uma via crucis administrativa. Os procedimentos são lentos e burocratizados. Cada processo passava três vezes pelo gabinete do ministro até a aprovação da outorga. A partir de agora, só irá ao ministro uma vez.’


Ele avalia que os editais de licitação foram malfeitos e deixaram brechas para as empresas adiarem o pagamento das outorgas e a assinatura dos contratos.


Atrasos


Os processos de concessão se arrastam por mais de dez anos. Cerca de 890 licitações feitas entre 1997 e 2001, no governo Fernando Henrique, ainda não foram concluídas.


Licitações feitas até 2002 juntavam concessões em diversos locais num só edital. Como as empresas disputavam em regiões diferentes, quando um candidato era inabilitado em uma delas, os demais processos paravam.


Mesmo com os processos se acumulando, novas licitações foram abertas, agravando o problema. Em 2000 e 2001, sem ter concluído licitações anteriores, o ministério pôs à venda 1.361 concessões. Até hoje, 40% desses processos viraram contratos.


Não foi criado um filtro que impedisse o candidato de vencer mais concessões do que o limite legal. A legislação diz que nenhuma empresa ou acionista pode ter mais de seis rádios FM, quatro AM e dez geradoras de TV comercial em todo o país.


Há casos de empresas e pessoas físicas declaradas vencedoras de mais concessões do que o permitido.


Também há problemas com prazos. O ministério teria dez dias, a contar da aprovação no Congresso, para convocar o vencedor, e 60 dias para assinar contrato de concessão. Há 336 processos aprovados pelo Congresso sem assinatura do contrato de concessão.