‘Estréiam amanhã dois documentários notáveis, ‘Entreatos’ e ‘Peões’.
Em ‘Entreatos’, João Moreira Salles documenta os últimos 30 dias da campanha presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva, desde pouco antes do primeiro turno até o dia da vitória.
Em ‘Peões’, Eduardo Coutinho entrevista 21 metalúrgicos e metalúrgicas do ABC paulista que participaram das greves de 1979 e 1980, quando se afirmou a liderança de Lula.
Os filmes são formalmente diferentes: ‘Entreatos’ é uma filmagem indiscreta, uma espécie de longo flagrante, enquanto ‘Peões’ é um documentário ativo, em que os protagonistas são convidados a falar. Eles são unidos, obviamente, por um fio narrativo, que vai do bojo do percurso político de Lula até sua eleição à Presidência.
E há uma outra razão que reúne os dois filmes: juntos, eles constituem uma meditação comovedora sobre as relações entre o público e o privado, ou melhor, entre o cotidiano de nossas vidas e a história que lhe dá sentido, que o justifica e, eventualmente, que o atropela.
Primeiro, ‘Peões’. As personagens escolhidas por Coutinho são trabalhadores do ABC que participaram das greves de 79 e 80, mas que não se enveredaram para a política.
Para realizar o documentário, foi necessário reconhecer e encontrar militantes ‘anônimos’ que apareciam em filmagens e fotografias da época. O espectador assiste, aliás, a reuniões em que grupos de sindicalistas se dedicam a essa tarefa. Também é apresentado o momento em que as personagens se deparam com suas próprias imagens nas manifestações de 79 ou 80.
É possível que você tenha participado de uma daquelas manifestações de massa que, retroativamente, parecem mudar um pouco o rumo da história. Talvez você estivesse no comício das Diretas na praça da Sé, em janeiro de 1984, ou na Passeata dos Cem Mil, em 1968. Claro, nem por isso você aparece nas fotos (evitar de aparecer nas fotos podia ser uma medida razoável de prudência política), mas, ainda hoje, contemplando as imagens da multidão, você se lembra de que estava lá, em algum lugar, no meio daquele mar de povo.
Talvez você tente se enxergar na multidão. Talvez você brinque de ‘Onde Está Wally na História?’. Afinal, seria um jeito de dar a sua vida uma significação maior do que as dores e os prazeres de sua vida amorosa, familiar e profissional.
A qualidade do filme de Coutinho e a razão da emoção que ele proporciona é essa: as entrevistas devolvem aos ex-metalúrgicos ‘anônimos’ o orgulho de terem estado lá, de terem sido protagonistas de um grande momento coletivo de protesto e de liberdade.
O cotidiano do aposentado é resgatado por uma lembrança que confere lustre e sentido à vida.
Ora, ‘Entreatos’ é o contraponto de ‘Peões’. A significação coletiva do momento apresentado é evidente e invasiva: Lula se torna presidente do Brasil. Mas o filme privilegia quase exclusivamente as cenas do cotidiano, espreita as palavras e os gestos que, geralmente, seriam excluídos dos livros de história.
A questão é saber se esses gestos e essas palavras ainda são possíveis. Num momento do filme, Lula observa: ‘Estou começando a ficar preocupado com o que é que vai mudar na minha vida a partir de uma eleição (…) com a perda de liberdade’. Ele está pensando no peso dos rituais da Presidência: ‘Aquela coisa toda oficial’.
Essa consideração, pensativa e tocante, faz que o humor brincalhão de Lula no filme assuma, de repente, um tom nostálgico, como se fosse o resto de uma parte de seu ser condenada ao silêncio pelos rigores de sua futura função.
Os peões de Coutinho se afastaram do momento em que suas vidas fizeram história. O Lula de João Salles decidiu fazer história e sabe que, por isso, está sacrificando um pouco de sua vida.
Talvez essa nostalgia do cotidiano perdido seja o traço mais íntimo de Lula presidente. Ela se expressa, por exemplo, na obstinação em continuar sendo ‘ele mesmo’.
A cada vez que Lula improvisa, afastando-se do texto escrito de um discurso, imagino que sua assessoria de imprensa segure a respiração. Mas, seja qual for a digressão, resta que a dificuldade em adotar a retórica abstrata do poder é uma qualidade moral.
O ditado diz que não há grandes homens para seus mordomos. Ou seja, o privado nunca seria glorioso, e o grande homem seria aquele que não luta com o nó de sua gravata, pois já está, sempre, engravatado: ele renunciou às ‘misérias’ privadas para enaltecer sua significação pública.
Ora, sempre pensei o contrário do ditado. Parece-me que só pode haver grandes homens para seus mordomos. Não porque os mordomos conheceriam os segredos de alcova que comprovam ou não a grandeza do homem. Mas porque uma condição da grandeza está na própria incapacidade de renunciar à concretude da vida privada: se não há nada para mordomo ver, é que a função substituiu o sujeito. Ele não terá como ser grande, por falta de ser homem.
Essa condição mínima da grandeza vale sobretudo para um governante, pois sua incapacidade de renunciar à sua vida privada, nesse caso, deveria garantir que ele não esquecerá a vida concreta dos governados.’
Ricardo Calil
‘A classe operária é uma ficção’, copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 26/11/04
‘Uma semana atrás, o cineasta Eduardo Coutinho estava preocupado com o rumo da cobertura de imprensa sobre seu documentário ‘Peões’, no qual 21 metalúrgicos do ABC que participaram das greves de 1979 e 1980 contam suas trajetórias de vida. ‘A dor de cabeça aumenta muito quando o filme sai do segundo caderno do jornal para entrar no primeiro’, explicou. Coutinho se referia à polêmica criada em torno do corte de uma cena em que a aposentada Luiza, que cuidava da lanchonete do sindicato, conta que Lula bebia.
Nas fitas de vídeo distribuídas à imprensa, Luiza dizia o seguinte: ‘Mas não pode falar muito alto isso não. Lula bebia. Lula bebia, bebia mesmo. Lula tinha um armário na sala dele que… garrafão assim… (mostrando a altura com as mãos). Nós recebia uísque em garrafão. Era até um homem chamado Gordo. Ele levava pra gente, e a gente já tinha aquilo tudo reservado, pra noitada. Aí meu marido falava: ‘Que horas você chega?’ Eu dizia: ‘Se não tiver trabalho, eu chego cedo.’ Imagina, às vezes eu nem ia pra casa, amanhecia o dia.’
Nas cópias em película, que chegam hoje aos cinemas, a cena foi excluída. Especulou-se que o corte havia sido pedido por Lula, pelo PT ou ainda pelo sindicato – preocupados com a proporção que o assuntou tomou depois da reportagem do ‘New York Times’ sobre os supostos hábitos etílicos do presidente. Mas Coutinho explica que decidiu tirar a cena porque achou que Luiza iria se sentir mal com a situação.
Em um debate sobre o filme, disse que ela poderia ser vista como ‘traidora de classe’. Depois, considerou a expressão infeliz. ‘O filme busca justamente os traidores de classe. Eu não queria pessoas que se ajustassem a essa idéia de ‘classe operária’ alienada da produção e com ódio do patrão. Eu vou atrás do cara que virou sacoleiro, taxista, que comprou uma chácara, que manda recado pra sobrinha. É isso que me interessa.’
Será uma pena se ‘Peões’, um dos mais importantes fatos culturais do ano, for encarado apenas pelo viés do escândalo político. O filme dá um passo adiante em um projeto de cinema marcado pela aposta na singularidade do homem comum. Também estabelece um diálogo entre diferentes momentos da carreira de Coutinho, cineasta com a obra documental mais consistente em atividade no país.
Como em ‘Cabra Marcado para Morrer’, o diretor conjuga memória individual e memória coletiva, ao confrontar imagens antigas dos personagens (em fotos e documentários da época das greves) com as imagens novas que realizou. Como em ‘Santo Forte’ e ‘Edifício Master’, ele faz um cinema baseado na força da palavra e do acaso que se produz no momento da filmagem.
‘Peões’ será lançado hoje em conjunto com ‘Entreatos’, de João Moreira Salles, que mostra os bastidores da campanha que elegeu Lula presidente. Como diz Coutinho na entrevista a seguir, são filmes complementares. ‘O ‘Peões’ mostra de onde Lula surgiu, ‘Entreatos’ mostra aonde ele chega. São dois momentos essenciais para compreender o Lula.’
Quando e como surgiu o projeto de ‘Peões’?
Há quatro anos, o Ismail Xavier, professor de cinema da USP, queria criar um núcleo independente, de produção de filmes junto com teses universitárias. Pensei em fazer alguma coisa sobre a periferia de São Paulo e, de repente, surgiu a idéia do ‘Peões’. Eu teria uma equipe não-paga, de alunos e estagiários, e poderia passar três, quatro meses fazendo o filme. Não deu certo por mil razões burocráticas. Mas isso ficou na minha cabeça. Até que veio a idéia do João (Moreira Salles) de fazer as duas campanhas de 2002, a do Lula e a do seu concorrente no segundo turno, que seria provavelmente o Serra. Lembrei do outro projeto e pensei na possibilidade de ele fazer o Lula, e eu fazer esse negócio do ABC, que é onde o Lula nasceu como líder. Daí pensei nas carinhas dos desconhecidos que estão nas fotos e filmes das greves. Queria perguntar: ‘Quem são vocês?’
E como vocês decidiram pelo ‘Peões’, em vez do filme sobre o Serra?
Em agosto de 2002, a gente teve uma reunião com o Lula. João contou que havia essas duas possibilidades. Lula fez a escolha sem dizê-la. Ele falou: ‘Perca ou ganhe, minha campanha é histórica’. Até porque um cara do PT disse brincando que, se o Lula perdesse, ele viraria uma ONG. Daí o Lula falou em seguida: ‘E eu só existo porque existiram as greves de São Bernardo’. Ele tomou a decisão por nós. E foi maravilhoso. Digamos que a solução fosse Lula e Serra. Haveria dois problemas. O primeiro: qualquer um de nós iria querer ficar com o Lula. Não é porque a gente gosta mais de um ou de outro. É porque o Lula é um grande ator, e o Serra não é. Segundo: o João só teve esse acesso enorme ao Lula porque eu não estava fazendo o Serra. Ia ter vazamento, espionagem. Seria um inferno, para nós e para o filme. O João filmou tudo o que era possível. E eu fiquei lá em São Bernardo filmando do jeito que eu gosto. Foi bom para todo mundo.
O Lula é o centro de ‘Entreatos’. Que papel ele ocupa no seu filme?
A sinopse do meu filme nem tem a palavra Lula. A presença do Lula está implícita. Se o gancho se refere à greve, a greve vai aparecer, e o Lula era o líder. As pessoas acham que ele é o centro pelos filmes antigos que aparecem, porque hoje ele é o presidente, e também porque a imprensa força a barra. Mas os heróis do filme são 21 metalúrgicos, e 9 deles não falam do Lula. Ele é o centro mítico do filme, porque liderou uma greve que virou lenda. Mas eu estou interessado nas pessoas comuns que fizeram a greve. Um virou sacoleiro, outro taxista, outro comprou uma chácara, outra tem um recado para dar pro sobrinho. É outro eixo.
Como ‘Peões’ e ‘Entreatos’ se comunicam e se completam?
O ‘Peões’ mostra onde Lula surgiu, e ‘Entreatos’ mostra aonde ele chega. São dois momentos essenciais para compreender o Lula, a cultura operária e a campanha política. Os dois filmes se complementam até na diferença, porque são absolutamente distintos. ‘Entreatos’ é cinema de observação. ‘Peões’ é baseado na conversa. A semelhança é que os dois são extremamente falados.
Em uma entrevista ao crítico Carlos Alberto Mattos, Salles diz que os filmes mostram que Lula chega ao poder no momento em que o universo que o originou deixou de existir. Você concorda?
O mundo que enchia Vila Euclides acabou. Antes, havia 140 mil metalúrgicos, hoje há 50 mil. O sindicato continua forte, mas o problema do desemprego é muito grande. Há um dado melancólico nisso. As pessoas que ouvi tinham em geral mais de 50 anos e celebravam uma coisa de 30 anos atrás. Por outro lado, o representante deles na greve virou presidente. Eles viam isso com muito carinho, muito entusiasmo. Mas as esperanças que o Lula suscitava ainda não se realizaram. Será que eles estão melancólicos hoje? Eu não sei.
Na época das filmagens, quais eram as expectativas deles em relação à Lula na presidência?
Eu perguntei isso para muito pouca gente. Porque eu queria fazer um filme político, mas mostrando as pessoas aquém e além do político. Todos pareciam conscientes das limitações do poder. Alguns disseram com sutileza que tinham saudades do PT de fundo de quintal, que não queriam que ele se tornasse um partido convencional. Esse é um problema que se agravou desde então. Para governar, o PT tem que comprar o mesmo PMDB que o FHC comprava, só que agora aumentou o preço. A política brasileira é isso.
Por que você decidiu cortar a cena em que Luiza fala que Lula bebia?
Em abril, o filme já estava pronto. Eu ainda tinha problemas com dois planos. Um deles era por purismo estético. O outro era essa cena da Luiza. Uma assistente me disse que parecia que eu havia colocado o plano apenas para ter alguma coisa contra o Lula. Mas eu não achava que Luiza estivesse falando mal dele. Pensava que era algo folclórico, que ela tinha uma interpretação extraordinária. Acabei deixando. Em junho, teve a história do ‘New York Times’. Eu estava fazendo outro filme no Nordeste e não levei o assunto muito a sério. Há três, quatro semanas, houve a primeira projeção do filme. Daí saiu nos jornais que pediram para eu tirar a cena. Isso nunca aconteceu. O Escorel disse apenas que a Luiza poderia ficar mal com a história. Não tinha pensado nisso. Depois a antropóloga Regina Novaes, que trabalha com movimento social em São Bernardo, comentou a mesma coisa. Achei que a Luiza poderia passar mal até fisicamente, que poderia atrapalhá-la diretamente. Assumi que ia tirar, mas aí já havia 30 cópias distribuídas para a imprensa com a cena.
Em um debate sobre o filme, você disse que temia que Luiza fosse vista como ‘traidora de classe’. Depois, considerou que foi uma expressão infeliz. Por quê?
O filme busca justamente os ‘traidores de classe’. Não no sentido original da expressão. Mas pessoas que se ajustem a uma idéia preconcebida de ‘classe operária’. Em uma cena que saiu porque não se encaixou no filme, um cara fala que há patrões que são melhores que certos colegas. O ódio principal não era contra o patrão, era contra o capataz. Isso não está no manual de sociologia.
Nos seus últimos três filmes, você usa apenas imagens do presente, do momento da filmagem. Por que decidiu usar imagens antigas neste?
Eu tinha que lidar com um grande fato histórico. Os filmes anteriores não têm fato histórico nenhum. Eu vi os três filmes que fizeram sobre a greve e achei inevitável que eles estivessem no ‘Peões’ como prólogo histórico, porque ninguém viu essas imagens. Quando o Lula foi eleito, as TV colocaram três segundos desses filmes, sem contexto nenhum. E eram imagens muito fortes. Tive que aceitar essas impurezas.
Por que você escolheu como dispositivo do filme falar com pessoas que aparecem nessas imagens antigas?
As greves reuniram mais de 140 mil pessoas. Depois de 24 anos, houve uma diáspora, teve gente que morreu, gente que sumiu. Eu tinha pouco tempo para achar as pessoas e só contava com o auxílio do sindicato. Queria que as pessoas ouvidas fossem ordinárias, comuns, pouco conhecidas, que não pertencessem à elite sindical. Era mais difícil achar. Então os vídeos ajudaram nisso. Segundo, porque as imagens tornam as referências menos abstratas. Em um filme de guerra, quando alguém fala sobre sua participação, aparece uma imagem que não tem nada a ver com a memória pessoal. Você tem que fingir que o subjetivo dela é igual ao dos outros. Agora, se você mostra uma foto ou um filme com a pessoa ouvida, isso é concreto. Uma foto filmada na parede é atemporal. Uma foto na mão é presente. E é isso que me interessa.
Você já tinha usado esse método de exibir imagens antigas para as pessoas em ‘Cabra Marcado para Morrer’ (1984). Isso torna ‘Peões’ mais próximo a ‘Cabra’ do que a seus filmes mais recentes?
‘Peões’ é e não é igual a ‘Cabra’. Nos dois filmes, o dispositivo é parecido, as pessoas lidam com cacos do passado. Mas a diferença é que no ‘Cabra’ eu estava pessoalmente envolvido nas filmagens. Se eu não retomasse o filme, ele não teria sido acabado por ninguém. Só eu podia fazer aquele filme. Mas qualquer pessoa podia ter feito esse filme de São Bernardo. Eu quase nunca tinha ido à cidade. Não havia uma conexão pessoal, de ter participado daquilo. Ao mesmo tempo, o ‘Peões’ tem essa coisa dos filmes recentes de confiar totalmente na palavra. Se tirar o prólogo e as inserções históricas, mais uns planos de ligação, o resto é tudo gente falando, tudo rodado no tripé e do mesmo ângulo. Isso não tinha no ‘Cabra’. ‘Peões’ é uma tentativa de síntese desses dois momentos. É igual e diferente.
No livro ‘O Documentário de Eduardo Coutinho’, da Consuelo Lins, você conta que descartou muito material na edição final: vistas de locais de São Bernardo hoje, imagens de robôs nas fábricas, cenas de operários trabalhando e da saída da fábrica. Por quê?
Eu não trabalho com plano B. Se não tenho personagem, não me interessa o filme. Mas tenho que rodar alguma coisa além dos caras. Eu filmei todos os lugares das greves vazios, o Paço Municipal, Vila Euclides… Achei que ia usar, mas não deu. No momento que eu uso esse troço num filme baseado na palavra, ele adquire um caráter simbólico insuportável. A idéia é que hoje não dá mais para encher mais esses lugares. Mas as pessoas têm que supor. Se colocar, vira símbolo. Eu filmei uma hora e meia de robôs na Volkswagen. É uma coisa impressionante. Mas eu estou induzindo o significado, de que eles roubaram os empregos. Para mim, uma imagem que é simbólica antes de ser concreta é o fim do cinema.
Você costuma evitar finais apoteóticos. Mas ‘Peões’ parece ter um final mais conclusivo que a média de seus filmes. Você concorda?
A conversa com o Geraldo ficou para o final por acaso. Não fiz nenhuma pesquisa para chegar até ele. E acho que foi brilhante por causa disso. Eu pergunto se ele sentia saudades do trabalho. Ele responde que tinha saudades dos companheiros, mas que não queria que os filhos fossem peões. Daí fica em silêncio por 30, 35 segundos. Ele mergulha num poço de sofrimento. Em geral, eu fico tão sensibilizado que falo qualquer coisa para o cara sair do buraco. Dessa vez eu não falei nada. Queria saber o que fazer para sair do abismo que nos separa. E ele sai com um golpe de gênio, perguntando: ‘Você já foi peão?’ Ele me desarmou. Eu passei a ser objeto do discurso. E ele está falando também com o espectador do filme, porque peão não vai a cinema de arte. No fundo, o Geraldo está questionando: quem pode explicar o outro? É por haver diferença que pode haver possibilidade de contato. Mas há algo que nos separa, no caso a experiência de ser peão. O momento mais importante do filme não é saber se Lula bebe ou não. É esse o momento, o momento do silêncio. É isso que define o prazer de filmar uma conversa, de ver o filme acontecer na hora da filmagem.’
Luiz Zanin Oricchio
‘Todas as faces do presidente’, copyright O Estado de S. Paulo, 28/11/04
‘Pode-se dizer que Peões e Entreatos são dois filmes notáveis, ou também que formam apenas um único – e também notável – filme. De fato, os dois documentários, que estréiam hoje, foram pensados em conjunto. Fazem parte de um mesmo projeto e revelam alguma coisa do verso e o anverso de um mesmo processo histórico – aquele que levou um líder de movimentos grevistas de 1979 a 1980 ao Palácio do Planalto em 2002.
Em São Paulo, os filmes entram em cartaz nas mesmas três salas de exibição, em horários alternados – justamente para se ver como um pacote. São filhos da mesma proposta, mas seguem caminhos divergentes, opostos mesmo, ainda que complementares. Entreatos, de João Moreira Salles, é um filme de observação, e joga seu olhar sobre os bastidores da campanha de Lula à presidência em 2002. Peões, de Eduardo Coutinho, é um filme de depoimentos. Ele ouve, no presente, os anônimos trabalhadores que participaram no passado das greves do ABC. Peões será exibido hoje à noite em concurso no Festival de Brasília. Entreatos fecha o mesmo festival, fora de concurso, dia 30.
Em conversa com o Estado, os diretores falam desse projeto comum. E contam como chegaram a duvidar de que eles pudessem ser feitos, em especial Entreatos, um retrato dos bastidores de um poder em formação. ‘No começo, achei que seria o registro sobre a impossibilidade de fazer um filme. A grande surpresa foi ter o acesso permitido e de maneira extraordinária. No primeiro dia de filmagem, eu já tinha um material que não conheço igual em filme sobre política e sobre o poder. Lula buscando apoio do grande capital. Ligando para o José Cutrale, tentando o apoio do empresariado, desejando esse apoio e me deixando filmar isso tudo, me pareceu extraordinário’, diz João Moreira Salles.
A opção de Coutinho o levou em direção oposta. Se Moreira Salles registrava sobretudo imagens e falas de gente de alguma forma já ligada ao poder, Coutinho procurou aqueles que, segundo ele, eram o seu contrário, pois ‘nada tinham a perder’. Gente do povo, gente anônima, que havia participado, de forma decisiva ou forma lateral, das longínquas greves do ABC. Peões é um documento extraordinário, que deve ser visto tanto com a razão como com a emoção. Porque nele se ouve a fala da esperança, a reconstituição de um momento que todos sentem como crucial em suas vidas, mas também um ruído de fundo melancólico, porque aquela utopia buscada não se concretizou.
‘De fato, existe um arco melancólico que passa nos dois filmes: são as condições dadas do mundo de hoje. Eu pessoalmente não acredito na ruptura, mas acho interessante sob a forma da utopia, e ela existe no filme do Eduardo, naquele Lula que enfrenta o regime militar. Aquele Lula propõe um sonho muito maior do que o Lula do meu filme. Aqueles que buscavam no meu filme algum resto dessa utopia ficarão entristecidos. O Lula é aquele que desejou ganhar a eleição e para ganhar precisou se desfazer de qualquer tipo de sonho. Não é decepção – é a percepção da realidade’, diz Salles.
Coutinho concorda: ‘Na época da campanha de 2002 eles queriam fazer um comício no Estádio de Vila Euclides, palco das grandes reuniões do tempo da greve. O comício eleitoral acabou não sendo feito e várias desculpas foram dadas, que o estádio não tinha condições, etc. O fato é que hoje, um comício político do Lula, não encheria o estádio, seria um fracasso.’
João Moreira Salles acrescenta: ‘Essa melancolia é a do desaparecimento desse mundo. Naquela época, parar São Bernardo significava parar o Brasil, hoje não significa mais nada. O processo produtivo se esfacelou se espalhou pelo Brasil e para fora também. É desalentador você achar que só exista um único discurso, uma grande narrativa no mundo e acho que o Lula seguiu essa Realpolitik. O que está no filme é a aceitação da regra do jogo.’
Tanto Peões como Entreatos estão sendo lançados num momento complicado mas também muito rico da história nacional. O governo atual segue a política econômica traçada pelo anterior, num reconhecimento da força das coisas, da inércia dos determinantes macroeconômicos e do pouco espaço de manobra concedido para as utopias e as rupturas. Há alívio de um lado e frustração de outro. E, no entanto, segundo os documentaristas, esse Lula de hoje, que decepciona a esquerda do seu próprio partido, é no fundo o mesmo Lula da época das greves. Só não vê quem não quer.
Segundo João Moreira Salles, Entreatos ajuda a enxergar essa característica do presidente: ‘O sintoma do filme é esse: dá sinais de que o Lula não é o homem da ruptura nem nunca foi o homem da ruptura. A ascensão social dele revela não um desejo de ruptura mas de incorporação.’ O cineasta cita duas cenas. Numa delas Lula conta da sua felicidade quando comprou um TL, antigo modelo da Volkswagen, e diz que ‘se sentiu um rei’ no volante do carro de segunda mão. Em outra, o atual presidente conta que ficou decepcionado quando o censo do IBGE passou em sua casa e só pediu os dados dos moradores e não quis saber que seus bens de consumo lá existiam. ‘Isso é o essencial, é o mesmo Lula, com o mesmo sonho de acesso aos bens materiais, a uma vida que é burguesa, ou pelo menos de classe média’, diz Moreira Salles.
Entreatos fincou sua barraca no olho do furacão, no centro duro de um poder em formação. Eram esperados problemas, que surpreendentemente não vieram. Coutinho trabalhou mais na periferia, com personagens menos controversos e portanto não esperava nenhum tipo de complicação. E no entanto ela veio, sob a forma de uma cena cortada, em que uma funcionária de lanchonete dizia que nos tempos do ABC o presidente bebia muito. Coutinho se explicou longamente sobre a cena e reafirma que a podou da versão final para ‘proteger a personagem e não o Lula’.
Mas Coutinho acha que não adianta, que sua decisão foi soberana, mas ninguém vai acreditar nela mesmo: ‘Tudo isso é natural, porque como você está mexendo com a política, entra nessa coisa terrível que é ética da suspeita, na qual tudo é suspeito. Então se começa a falar muito de ética, o que é terrível, porque quem mais fala de ética são os patifes. Você entra num outro mundo, e como desfazer esses equívocos?’
João acrescenta: ‘O problema de fazer um filme como o meu é as pessoas acharem que ele existe para repercutir alguma coisa do noticiário. A bebida é um caso específico, a briga de galo é outra. Mas o filme está pronto desde dezembro do ano passado. É um filme vivo. Porque Lula é presidente, está gerando notícias todo dia e à medida em que essas notícias aparecem elas vão gerando novos sentidos no filme.’’
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‘‘Peões’: no coração da classe trabalhadora’, copyright O Estado de S. Paulo, 28/11/04
‘Momentos – um deles nem foi filmado por Eduardo Coutinho. Pertence a um documento de época, naquele tempo em que Luiz Inácio Lula da Silva era só um metalúrgico que liderava as greves no ABC. Só? Lula fuma, nervosamente, tragadas rápidas, uma após a outra. Avança e diante dele está a massa humana – os metalúrgicos que fizeram as greves, por volta de 1980. Elas podem não ter resultado em ganhos substanciais para a categoria, do ponto de vista econômico, mas foram fundamentais para o desenvolvimento de uma consciência política, não só deles, mas da nação. Outro momento foi filmado por Coutinho. É a entrevista de João Chapéu. Ele lembra a mulher, as greves. Emociona-se e pára, tentando segurar a emoção e impedir que lhe venham as lágrimas.
Temos a história e a visão dos que seriam os excluídos. E outro momento, ainda. Geraldinho, no desfecho. Ele também se emociona tanto que o diretor se cala e deixa a câmera rodando para que o entrevistado se recomponha. São momentos de emoção e a emoção dá o tom de Peões, o documentário de Coutinho que forma um díptico com Entreatos, de João Moreira Salles. Do ponto de vista cinematográfico, o documentário de Coutinho é melhor, por mais reveladores que sejam trechos do trabalho de João. Para Coutinho, foi um risco talvez maior do que os que ele vem correndo no cinema que realiza. Coutinho gosta de dizer que seria incapaz de filmar pessoas que lhe provoquem aversão. Um torturador, por exemplo. Aqui, o risco é que ele tem empatia demais pelas pessoas que entrevista. Às vezes, percebe-se que Coutinho se policia para criar um distanciamento.
Era um velho sonho do maior documentarista brasileiro – um filme sobre o ABC. Coutinho de alguma forma fez o seu Viramundo, se é que se pode fazer a ponte entre Peões e o clássico de Geraldo Sarno nos anos 1960. Ambos são filmes sobre nordestinos que emigraram para São Paulo. No de Sarno, alguns alcançam o que buscavam no Sul, que, para eles, é uma terra de fartura. Outros voltam para casa com as esperanças desfeitas e há os que buscam refúgio para o seu desconsolo no misticismo. Coutinho conta agora as história dos nordestinos que foram companheiros de luta do futuro presidente no ABC.
Muitos voltaram para o Nordeste, tendo alcançado algum bem material. O que conseguiram foi a cidadania. Lula, no documentário de João Moreira Salles, define-se como resultado da consciência política da classe trabalhadora no ABC. Ela é expressa por Elisa, tão tocada pela frase do Hino Nacional que diz: ‘Verás que um filho teu não foge à luta.’ Ou por Zélia, que conta como e por que salvou a cópia de Linha de Montagem, o documentário de Renato Tapajós a cujas imagens Coutinho recorre. Aquelas imagens são a nossa memória. Perdidas, corriam o risco de entregar ao esquecimento um momento tão decisivo da história do País. Peões é uma magnífica lição de cinema e, com o perdão pelo que virou palavrão, humanismo.’
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‘Documentaristas: Se fosse eu…’, copyright O Estado de S. Paulo, 28/11/04
‘Não sei se eu cortaria ou não a cena que o Coutinho cortou de Peões. Mas, com certeza, levaria em conta o pedido de um entrevistado para tirar alguma cena. Não faço documentários para agradar aos meus personagens, mas também não quero prejudicar ninguém. O sujeito documentado, no caso o presidente Lula, teve boa vontade imensa com o documentarista. Então, por que não ser cúmplice nesta situação de montagem?
Kiko Goifman
Não acho que o corte configure uma censura política. Às vezes, cortar é uma questão de elegância ou tem motivação ética, em se tratando do presidente da República ou não
André Klotzel
Acho o corte legítimo, uma opção do diretor. Certamente, o filme é muito mais do que esta polêmica
Ricardo Dias
Eu vi a cena que foi cortada e cheguei a comentar com o Coutinho que a imprensa ia explorá-la negativamente. Mas ela não é relevante para traduzir o que foi o movimento operário do ABC. O documentário é um processo de nudez e a câmera é um divã, um confessionário. Coutinho cortou a cena para preservar a personagem e fez muito bem. O direito de imagem é inegociável
Evaldo Mocarzel
Não tenho nada contra o direito dele de cortar o filme. O documentário é uma oportunidade de termos acesso ao Lula. E, neste caso, a ausência daquele depoimento não altera o conteúdo do filme. Sinceramente, acho que estão fazendo tempestade em copo d’água. Acho que o Eduardo Coutinho é um grande documentarista e sabe o que está fazendo
Aurélio Michiles’
Lucinéia Nunes
‘Classe operária vai ao cinema’, copyright O Estado de S. Paulo, 28/11/04
‘Maria Elicélia Feitosa da Silva, a servente Zélia, trabalha no sindicato dos metalúrgicos, em São Bernardo do Campo, desde 1976, ano em que Lula assumiu a presidência da CUT (Central Única dos Trabalhadores). Durante o período das grandes paralisações, no fim daquela década, ela escondia a Tribuna Metalúrgica dentro da roupa para distribuí-la clandestinamente. Zélia também se orgulha por ter salvo uma cópia do filme Linha de Montagem, de Renato Tapajós (importante registro histórico sobre a greve), escondendo-o dentro de uma sacola de feira para despistar os policiais. ‘Meu maior sonho é ver Lula presidente do Brasil e servir café a ele em Brasília’, disse ela ao cineasta Eduardo Coutinho, em entrevista no período das eleições de 2002.
Além da história de Zélia, o que aconteceu àqueles metalúrgicos, relativamente anônimos, que participaram dos movimentos grevistas de 1979 e 80? No documentário Peões, Eduardo Coutinho mostra a trajetória de outras 20 pessoas, por meio de depoimentos, em geral, emocionados, no qual relembram suas origens, percalços e alegrias do trabalho nas fábricas, o reflexo da militância política em suas casas e uma visão pessoal do então líder operário Luiz Inácio Lula da Silva, eleito presidente do Brasil no dia 27 de outubro de 2002, último dia de gravação do longa-metragem. São declarações cheias de vida, de uma gente que lutou por seus direitos e ajudou a construir parte da história do País.
Na última terça-feira, mais de 500 pessoas, entre atuais e ex-metalúrgicos, dirigentes sindicais e personagens de Peões, entre eles a servente Zélia, lotaram as duas sessões especiais do longa no Cinemark – Extra Anchieta. ‘O filme é muito bom’, diz Zélia ainda emocionada, ao sair da sala de exibição. ‘Eu adoro o peão Lula. Foi o maior privilégio vê-lo chegar à Presidência. Teremos muitas vitórias com esse governo. Ele é um grande homem, inteligente. Ainda espero realizar meu desejo de servi-lo em Brasília.’
Sorridente, Luíza Maria de Farias, a Tia, também foi à sessão, exibindo na lapela do conjunto verde um broche com a foto de Lula. Paraibana, mãe de sete filhos, ela comandou por muitos anos a lanchonete do sindicato. ‘Toda política do PT e do sindicato passou por aquela lanchonete’, diz a Tia no filme. ‘Meu marido, o Zito, virou metalúrgico depois que me conheceu. Uma vez ele quis furar a greve e eu ataquei uma pedra nele. Naquela época nós batíamos nos homens’, ela conta.
Uma parte de seu depoimento, no qual falava que o atual presidente bebia demais, foi cortado da versão final. Segundo o diretor, para protegê-la. ‘O filme é sobre metalúrgicos que participaram das greves, a vida deles antes, durante e depois. Por isso, fiz questão de preservar o auto-retrato de cada um, não prejudicá-los, mas valorizá-los pelo que me deram’, afirma Coutinho. Luíza não quis falar sobre o assunto. ‘Já passei uma régua’, diz ela. ‘Foi sofrido dar aquele depoimento. Mas o filme é ótimo e importante para a minha vida e de meus companheiros.’
Para Djalma Bom, que no longa mostra um dos lugares de onde Lula comandava os célebres comícios de São Bernardo, a obra registra um momento relevante na história daqueles trabalhadores. ‘Fomos os artistas principais e nosso maior representante hoje é presidente da República. O filme é sincero’, ele comenta.
Entre tantos personagens com quem Coutinho conversou durante sua peregrinação pelo ABC paulista, Diadema e até no Ceará, quase todos descobertos em publicações, fotos e filmes da época, estão, por exemplo, o aposentado Antônio Ferrasoli, que dá um bonito e singelo depoimento com a ajuda da filha Maria Angélica; e Geraldo Aniceto de Souza, que ainda trabalha fazendo ‘bicos’ como soldador. ‘Não quero que meus filhos sejam peões como eu’, ele diz no filme, depois de explicar o significado da palavra peão na década de 1970. E questiona Coutinho: ‘Você já foi peão?’ Com o mesmo nó na garganta, ele comentou ao sair da sala que ‘as pessoas não têm vergonha de falar de onde vieram’ e hoje não é sindicalizado pois pesa no orçamento. Coutinho, que estava ali para acompanhar a reação dos espectadores, disse que tudo valeu a pena. ‘Vi homens de 40/50 anos grudados na tela, porque é a história deles. Foi extraordinário.’’