Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Cora Rónai

‘Quase ninguém reparou, mas que nenhum jornalista se iluda – há sempre um leitor atento às incongruências do jornal. Desta vez, o leitor foi Marcus Holanda, que escreveu perguntando por que, enquanto O Globo inteiro falava na tsunami, a minha crônica falava no tsunami; e, sobretudo, por que, no meu blog, a mesma crônica aparentemente se contrariava, tratando a onda no feminino. A questão do blog é simples: lá, tsunami estava no feminino porque é assim que falo e, conseqüentemente, é assim que escrevo.

A questão do jornal é mais complexa – e bem curiosa. Acho que, com exceção de meia dúzia de sismólogos, a tsunami pegou mesmo todo mundo de surpresa, sob todos os aspectos. Nos primeiros dias, o jornal a tratou no feminino porque, imagino, não ocorreu a ninguém que pudesse ser de outra maneira. Apesar de exótica e pouco usada, a palavra designa uma espécie de onda e, até segunda ordem, onda, em português, é substantivo feminino.

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A tsunami permaneceu no feminino até quarta-feira, dia em que esta crônica é fechada. Pela manhã, nosso ombudsman Luiz Garcia mandou um alerta à redação, informando que, de acordo com o Houaiss, tsunami é masculino. Por esquisita que seja, esta é a única forma oficialmente ‘correta’, já que o Aurélio não registra o termo. José Figueiredo, o atento colega que sofre com as minhas idiossincrasias, pega as bolas na trave e garante que esta crônica siga os padrões da redação do Globo, prontamente corrigiu os artigos ‘errados’ – e o caderno foi rodado.

À tarde, durante a reunião de editores, a questão foi discutida e o Houaiss acabou sendo voto vencido. Prevaleceu a idéia, a meu ver inteiramente correta, de que deveríamos usar tsunami como a onda que é, independentemente do que diga o dicionário. O uso corrente da língua tem um quê de tsunami, uma força indomável que desafia regras e convenções gramaticais; além disso, por sagrados que sejam, os dicionários não são infalíveis.

Resultado: no dia seguinte, como nos dias anteriores, o noticiário continuou dominado pela tsunami. Se o Segundo Caderno não rodasse no começo da tarde e se, por acaso, eu não tivesse escrito sobre o assunto, ninguém jamais teria sabido da dúvida atroz que, durante algumas horas, se abateu sobre o jornal.

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Tenho uma relação muito particular com dicionários. Cresci junto com alguns deles numa época em que não eram criados em computador, mas em singelas fichas de cartolina, mantidas em ficheiros, gavetas e toda a espécie de caixas disponíveis. Lá em casa dividíamos o espaço – já não muito grande – com os três dicionários em que meu pai trabalhava quase que simultaneamente: o de francês, o de provérbios latinos e o de citações. E, volta e meia, estávamos com tio Aurélio, melhor amigo de papai e meu padrinho, que trabalhava num dicionário da língua portuguesa tão grande, mas tão grande, que precisava de um apartamento inteiro só para ele.

As fichas eram pautadas e vinham, em geral, da Papelaria União, um dos lugares mágicos da minha infância: adorava ir àquela papelaria comercial, tão pragmática e sem graça pelos padrões das suas elegantes primas de luxo. Para mim, porém, não havia nada sem graça na Papelaria União. Eu gostava de tudo naquela loja, do cheiro às infinitas possibilidades de diversão oferecidas pela mercadoria: pastas, latas de lixo para escritórios, fita durex, cartões e cartolinas, rolos de papel pardo, lápis, tesouras, resmas de papel almaço, barbantes, cadernos, goma arábica…

Papai colaborava com o dicionário do tio Aurélio, que, por sua vez, colaborava com os dicionários do papai. Ambos cultuavam a palavra exata, apreciavam o desafio de uma boa definição e passavam horas imersos nas tais fichas. Na primeira linha, um pouco mais forte do que as outras, anotavam a palavra em si; nas outras escreviam sua definição e, eventualmente, faziam anotações, referências a abonações e o que mais houvesse.

Às vezes, de tantas modificações, as fichas ficavam imprestáveis, e tinham que ser passadas a limpo. Antes que fossem postas fora, porém, podíamos usar o verso para desenhar. Eu ficava contente, por um lado, porque a cartolina era muito melhor de riscar do que o papel comum que habitualmente ganhávamos; mas, por outro, ficava danada com as palavras do verso. Uma das grandes injustiças do mundo, aos meus olhos de criança, era que só os adultos pudessem usar fichas novinhas para brincar.

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Manter as fichas em ordem alfabética era importantíssimo, já que elas tinham um talento todo especial para se esconderem entre as outras. Vez por outra alguém se distraía e pronto, era o caos: onde encontrar a palavra perdida?! Muitas vezes vi meu pai desesperado, procurando por uma palavra. O que pode soar como metáfora radical para a maioria das pessoas, para mim era um fato normal do cotidiano e tinha um sentido real, palpável. Uma palavra era, literalmente, uma ficha de 12 x 18, pautada, da Papelaria União.’



LÍNGUA VIVA
Deonísio da Silva

‘Onda republicana’, copyright Jornal do Brasil, 17/1/05

‘Os ministros Tarso Genro e Márcio Thomaz Bastos estão invocando com freqüência a palavra ‘republicano’, ao que parece com o objetivo de restaurar precisos significados de algumas ações governamentais.

Surgiram, porém, alguns exageros de uso, vale dizer abusos, pois a palavra tem substituído ‘democrático’, outro adjetivo para qualificar a ‘coisa pública’, cujo fim é definir o Estado. ‘Republicano’ veio do latim ‘res’, coisa, e ‘publica’, de todos, pública, contrária a ‘particular’. A palavra ‘republicano’ é anterior aos tempos democráticos, pois existe na língua portuguesa desde o século 15. ‘Democrático’ chegou no século 17, do grego ‘demokratikós’, poder do povo, com influência do francês ‘démocratique’.

‘Republicano’ está fazendo na política as vezes de ‘definir’ na linguagem do futebol. O treinador não escala o time; define. Não marca o horário do treino; define. Não fixa o jogador em determinada área do campo; define que ele deve jogar ali.

De repente, tudo é republicano na linguagem do poder. E todas as ações do técnico estão agrupadas no verbo ‘definir’, novo curinga da língua portuguesa.

É curioso que ‘republicano’ tenha chegado junto com ‘tsunami’. ‘Agora é enterrar os mortos e cuidar dos vivos’, respondeu o Marquês de Pombal a Dom José I, no dia 1º de novembro de 1755. O rei português, desconsolado diante do terremoto de Lisboa, perguntara ao mais esclarecido de nossos déspotas do período colonial: ‘E agora?’.

Diferentemente de outros soberanos europeus, que reinavam, mas não governavam, os reis portugueses, como demonstrou Raymundo Faoro em Os donos do poder, reinavam e governavam. O rei era chefe político, chefe militar, chefe religioso. Em resumo, o principal responsável por sucessos ou derrotas era sempre o rei.

Respeito era bom e o rei gostava. Onde a autoridade triunfa e é exercida com sabedoria, as coisas vão bem. Onde para tudo é preciso consultar demais, as coisas emperram. Vocês já imaginaram a cidade de Lisboa ser reconstruída nos moldes de um orçamento participativo?

E o que Língua Viva tem a ver com isso? Muito! A língua portuguesa, ferramenta indispensável no exercício do poder e da cidadania, foi uma conquista do Marquês de Pombal. Se ele não a impusesse com a luz de seu discernimento, provavelmente não teríamos hoje uma língua comum para informar ao distinto público que dia tal, em tais horários, nesses e naqueles recintos, de tais ou quais localidades, haverá vacinação.

O Brasil, uma das maiores nações do mundo, de complexa extensão territorial e diferenças descomunais, é inteiramente coberto pela língua portuguesa. Todos nos entendemos nela.

A conquista pombalina não seria completa, entretanto, se o povo não tivesse a liberdade de amoldar a língua oficial às reais necessidades aqui vividas. O resultado é um idioma repleto de recursos de expressão, entretanto martirizado pelas altas taxas de analfabetismo e pela obsessão do brasileiro por mais ouvir e falar do que ler e escrever.

A atuação do Marquês de Pombal no terremoto de Lisboa, combinada com um maremoto devastador, lembra-nos o acerto da velha sabedoria chinesa, que designa crise e oportunidade com o mesmo ideograma.

Nossos jornalistas de plantão adotaram imediatamente a palavra ‘tsunami’, estranha à língua portuguesa, para substituir a palavra ‘terremoto’, registrada desde o século 14, e ‘maremoto’, presente na língua já no alvorecer do século 17, mais coerentes e mais bonitas.

Ações republicanas ressurgiram em boa hora e são indispensáveis para reparar os estragos de terremotos e maremotos socioeconômicos que devastaram o Brasil. Não nos faltam déspotas como o Marquês de Pombal! Precisamos de mais republicanos.’



JORNAL DA IMPRENÇA
Moacir Japiassu

‘Intimidades’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 13/1/05

‘Deu neste jornal sem preconceitos que é o realmente indispensável Meio&Mensagem Online:

IstoÉ Gente mostra suas capas antes nos banheiros

Ação da revista é realizada em parceria com a New Ad, de mídia indoor

A IstoÉ Gente leva aos banheiros de São Paulo e Rio de Janeiro as capas de sua revista em primeira mão. Trata-se de uma ação realizada em parceria com a New Ad, empresa especializada em mídia indoor, que divulga a publicação da Editora Três em boards instalados em banheiros de estabelecimentos das cidades.

Semanalmente, 50 bares e restaurantes receberão, antes de ser distribuída nas bancas, a capa da revista. No total, 100 miniboards mostrarão as principais manchetes da edição com chamadas que buscam instigar a curiosidade do público.

Janistraquis sempre desconfiou dessa mídia por demais exótica, porém confessa que a notícia o transportou a outros e melhores tempos:

‘Considerado, antigamente, mas bote antigamente nisso, os melhores amigos de quem ia ao banheiro, além do papel higiênico, é claro, eram a revista Naturismo e os desenhos de Carlos Zéfiro; depois, vieram EleEla e Playboy; agora, para nosso estupor, Istoé Gente!!!’

É mesmo de lascar e está provado e comprovado aqui: esse tal de mercado ignora completamente o motivo pelo qual as mulheres reclamam tanto de que os homens não gostam mais daquilo…

Solidão

O considerado Bolívar Lamounier, cientista político que mais entende de Brasil, enviou aos amigos uma côdea de seu desalento diante das mazelas desta nação de cumoas (não é tribo indígena, repetimos). Em mensagem intitulada Congresso altaneiro, o Mestre escreveu:

Atenção, atenção, todos vocês, desrespeitosos e incréus que ousam por em dúvida a independência, a altaneria, a agilidade, a desenvoltura, enfim a formidável funcionalidade do Congresso Nacional, por favor leiam a entrevista da senadora petista Ideli Salvatti na Folha de hoje (11/1). Diz ela:

‘O ritmo do Executivo é um, o do Legislativo é outro. Aqui a gente tem que repercutir online [as decisões do governo] sem saber por que está sendo feito. Muitas vezes você [sic] não tem a informação, então é obrigado a intuir. Muitas vezes a gente não tem resposta. A comunicação tinha que ser mais online.’

Condoído, Janistraquis escreveu a Luís Gushiken pedindo-lhe que adelgace o vexame da abandonada criatura e mande instalar um computador no gabinete dela.

Às batatas

O considerado Guilherme Meirelles, atento leitor de Machado de Assis, leu na coluna de política do Diário do Comércio, de São Paulo:

Ricardo Montoro vai ser o único a micar no PSDB depois de tudo que aconteceu na eleição de presidente da Câmara Municipal. Passadas as primeiras horas de indignação, Serra está se acertando com Roberto Tripoli. Ao perdedor, portanto, as batatas.

Guilherme foi então apunhalado por crudelíssima dúvida:

Será que o colunista tentou citar Machado em sua famosa frase do romance ‘Quincas Borba’ ou de fato soltou uma monumental abobrinha ao escrever ‘ao perdedor, as batatas’? Afinal, se o perdedor ficou com as batatas, o que sobrou para o vencedor?

Janistraquis examinou a questão à luz dos modernos confrontos ideológicos, ó Guilherme, e chegou à seguinte conclusão: se agora o perdedor é quem fica com as batatas, caberá ao vencedor o sonho de consumo da feira parlamentar:

‘Imaginem o Trípoli a gritar pros comensais antes de cada sessão, como um Chacrinha redivivo: Vocês querem bacalhau?!?!?!?!?!?!?’

Esculhambação

Saiu com necessário destaque neste indispensável site que é o Consultor Jurídico:

Cadeia 5 estrelas

Dono do Maksoud Plaza cumpre prisão em seu próprio hotel

O empresário Henry Maksoud, dono do hotel Maksoud Plaza (um dos mais caros de São Paulo) e de um amplo rol de imóveis e empresas, terminou na segunda-feira (13/12) um período de 30 dias de prisão por falta de pagamento de pensão alimentícia à sua ex-mulher, Ilde Birosel Maksoud, que tem 75 anos. Henry e Ilde se separaram em 1993 após 30 anos de casamento. O detalhe é que o empresário ficou preso na suíte presidencial do Maksoud Plaza, com autorização inclusive para deixar o hotel e assistir a um concerto de música clássica (…)

Janistraquis leu e comentou:

‘Considerado, isso só acontece neste país de rendez-vous d’hôtel; se fosse pobre e não pudesse mesmo pagar a pensão, Maksoud estaria na cadeia. No Brasil, a lei não é igual pra todos, né mesmo?’

Clique aqui para ler o texto completo: safadeza.

Aí tem…

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse nesta segunda-feira em seu programa quinzenal de rádio, ‘Café com o Presidente’ (…) que o programa Bolsa Família passará de 6,57 milhões de famílias atendidas para 8,7 milhões em 2005:

– Se Deus quiser, em 2006 nós atingiremos a totalidade das famílias que, segundo o IBGE, estão abaixo da linha de pobreza.

O considerado Camilo Viana, diretor de nossa sucursal em Belo Horizonte, leu este despacho (no sentido jornalístico) da Agência Brasil e comentou, com impaciência de udenista mineiro dos velhos tempos:

O que o povo precisa é de trabalho, é de ganhar o pão com o suor do rosto. Isto é a mais dissimulada/descarada compra antecipada de votos. Ou não?!?!?!?!

Janistraquis considera perigoso concordar inteiramente com sua tese, ó Camilo, pois é meio-mineiro, formado no bom PSD de Benedito Valadares e, por tal razão, não assume compromissos em público; porém, arregalou um olho e vociferou; ‘Aí tem… aí tem…’.

Chuva doida

Chamadinha do UOL para Últimas Notícias:

Chuva provoca trânsito e pontos de alagamento em São Paulo

O considerado leitor Rafael Almeida Dias flagrou a derrapada e arrisca ligeiro comentário:

É dirigindo e aprendendo… nunca imaginei que chuva provocasse a movimentação de veículos na cidade. Sempre achei que fosse o contrário. Pelo menos os dicionários dizem que é assim.

Janistraquis acha que Rafa esqueceu um importante detalhe: trânsito, principalmente em São Paulo, endoida qualquer um e o redator do UOL pode mesmo ter enlouquecido depois de horas e horas de engarrafamento nas marginais da vida.

Rumo perdido

Talvez por viver em Brasília há muitos anos, o diretor de nossa sucursal, Roldão Simas Filho, adora ler a revista Mundo Estranho, embora não costume concordar com tudo o que ali se escreve. No número de janeiro, por exemplo, está registrado à página 37, em matéria sobre mananciais:

Rio Guandu – ‘… o Paraíba do Sul ficou com menos água para prover as cidades do sul do estado.’

Roldão, para quem aquelas paragens não pertencem a nenhum estranho mundo, ajuiza:

As cidades situadas à juzante do Rio de Janeiro não ficam ao SUL do estado. Ficam no que se chama ‘norte-fluminense’.

Mas, na realidade, o rio Paraíba do Sul corre de oeste para leste. O denominado ‘sul fluminense’ é, na verdade, o oeste (no caso do município do Rio, Santa Cruz, Campo Grande e outros subúrbios ficam na zona oeste da cidade).

O que se chama ‘norte-fluminense’, como Campos, é, na verdade, o leste do estado.

Janistraquis acha que, depois desta lição, a revista reencontrará o seu norte, a exemplo do senador Suplicy.

Nota dez

O texto mais preocupante da semana nasceu da jovem porém culta lavra de Gustavo Ioschpe, em artigo na Folha de S. Paulo:

Ignorância, o verdadeiro custo Brasil

O gigantismo e a urgência de nossos problemas imediatos são tão avassaladores que não nos ocorre perguntar: e se todos esses aparentes empecilhos ao nosso desenvolvimento -juros, burocracia, falta de infra-estrutura etc.– subitamente desaparecessem, como estaríamos? A resposta, infelizmente, seria: mal. Mal educados, para ser mais exato.

Segundo a OIT, nossos trabalhadores produzem o equivalente a um quarto de seus colegas americanos ou escandinavos. Não por acaso (…)

Errei, sim!

‘Chícara do mundo – O lobby coreano que luta para fazer de Seul a Copa do Mundo de 2002 distribuiu a todas as redações um release escrito num estranhíssimo dialeto apelidado de coreaguês por meu secretário. Eis pequena amostragem:

‘Coreano tem participado em os Jogos de Futebol da Chícara Mundial quatro vezes: Suissa do 1954, México do 1986, Itália do 1990, e Estados Unidos do 1994. Primeiro, ademas, Corea iniciou jogos de futebol profesional antes de dez anos. Graças a estes feitos, Corea quer invitar os Jogos de Futebol da Chícara Mundial do 2.002 a Seúl; um concurso dos jôgos em um país subdesenvolvido asiático contribuira ao desenvolvimento de futebol.’

Assanhadíssimo, Janistraquis provocou: ‘Considerado, quero ver é o Antônio Houaiss enquadrar esta linguagem no tal acordo ortográfico’. Seria deveras pândego. Não é por nada, mas pelo menos poderiam ter escrito esta chícara com X.’ (julho de 1995)’