Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Cordel Encantadoe o reinado do capital

Em artigos que tenho publicado neste Observatório da Imprensa, tenho tecido e entretecido a seguinte premissa: o capitalismo é tanto mais laico quanto mais religioso for, valendo também o ponto de vista inverso: o capitalismo é tanto mais religioso quanto mais se faz como laico, ao atuar concretamente no mundo a fim de produzir ao mesmo tempo valor e desvalor, valor para uma cada vez mais reduzidíssima plutocracia, ela mesma o valor dos valores; e desvalor para que tudo o mais, a esmagadora maioria dos humanos, a flora, a fauna, a própria vida, enfim, como palavra comum, vivos que somos, transfira seu próprio valor coletivo para os hipervalorizados ricos do planeta.

É nesse contexto que os meios de comunicação de massa, sob o domínio do capital, desempenham um papel protagônico, pois são o epicentro sísmico mundial da produção, por um lado, de uma informe massa de anônimos, a galera; e, por outro, de uma minoria de humanos ungidos pela aura religiosa da fama, da reificação e da mistificação, como se fosse a encarnação de Deus na Terra.

Endeusamento, reificação e mistificação

À anônima massa informe de humanos, a comunicação de massa instiga-lhe o desejo de deixar de ser anônima, tendo em vista três estratégias correlacionadas:

1. A constituição de uma massa informe que busca, de maneira desesperada e individualmente – num salve-se quem puder –, fazer-se como o perfil encarnado antes de tudo das cantoras e cantores promovidos a famosos pela indústria cultural, os quais passam a ser o ideal de ego banal e narcísico da massa anônima, que os mimetiza e os promove sem cessar;

2. Ao buscar fazer-se como as cantoras e cantores famosos, por exemplo, uma Ivete Sangalo, a massa informe, por redundância, se transforma em massa informe literalmente. Com isso, a cultura de massa produz o perfil de população desejável para o capitalismo espetacular: banal, egoísta, infantil, erótico, prostituído, despolitizado, massificado e, por isso mesmo, sempre pronto a dançar no ritmo imposto, embora como entretenimento, pelo capital e sua concentração oligopólica;

3. Ocupando, assim, o eterno lugar da plateia, a massa informe endeusa o palco e se torna incapaz de olhar o mundo a partir de seu ponto de vista laico, como coletividade que pode mudar o mundo se e apenas se destruir toda e qualquer forma de palco, de endeusamento, de reificação e mistificação.

Luxo e parasitismo

É assim que a massa informe deseja a sua própria submissão e sujeição sem fim, desejando aqueles que se enriquecem e se tornam famosos à custa de sua banalidade e estupidização narcóticas, razão pela qual a população anônima e massificada só pode ser laica se estiver narcotizada, isto é, se orientar o seu desejo, logo suas ações e omissões, para o endeusamento do palco.

A isso podemos chamar, um pouco em diálogo com Boaventura de Souza Santos, de universo laico tanto mais passivo quanto mais ativo for, pois sua intensidade passional – as fanfarras e bebedeiras ao som do acervo musical da cultura de massa –, volta-se contra a própria população, transformando-a em massa informe ou energia de combustão corporal – para não dizer de tração animal – que movimentará, no rés-do-chão e/ou na plateia, a máquina de produção de valor a serviço da plutocracia planetária.

Esse triplo dispositivo correlacionado da cultura de massa canaliza a população para a experiência passiva e autodestruidora de sua vivência laica, razão pela qual constitui um triplo dispositivo que tem como objetivo fornecer o lugar laico para a população do mundo, o que significa dizer que a população só pode ser laica, produzir a vida, se seu campo laico, suas ações, produzir sua própria sujeição.

A cultura de massa, portanto, serve ao propósito de produzir uma esfera laica passiva para a população do planeta, a qual, não obstante “libera-se geral” endeusando o altar do luxo e do parasitismo da plutocracia que domina e manieta as tecnologias de comunicação de forma absolutamente despótica.

Tempo e verdade

Por outro lado, se consideramos o primeiro parágrafo deste artigo, o leitor tenderá a achar que mudei totalmente de assunto, porque comecei dizendo que o capitalismo é tanto mais laico quanto mais religioso for, para, em seguida, começar a tratar da cultura de massa sem vinculá-la explicitamente à premissa explicitada no começo.

Ledo engano: a premissa serve também para os explorados pelo capitalismo: eles também devem ser tanto mais laicos quanto mais religiosos forem, só que de uma forma passiva, razão pela qual eles, os explorados, sob a égide da cultura de massa, são laicos, porque “se divertem sem culpa”, sem medo de castigos divinos, embora sob a condição de endeusarem os famosos e os ricos, desejando ser como eles, famosos e ricos. Portanto, desejando ser aqueles que os oprimem, motivo pelo qual desejam a sua própria opressão sem fim. É só nesse contexto que a população pode ser laica, passivamente, como plateia informe.

Equacionado o desejo da população de ser e fazer-se de forma laica, que é simplesmente o desejo de viver, via cultura de massa, o capitalismo se impõe como sistema em que apenas os capitalistas podem ser ativamente laicos, sem deixar igualmente de ser ativamente religiosos.

Para explicar esse paradoxo, é indispensável que defina o que entendo como horizonte ou esfera laica. Para tanto, assumo como minha a definição do filósofo francês, Jacques Rancière, o qual, num ensaio intitulado “Os enunciados do fim e do nada”, define a dimensão laica como aquilo cujo tempo não tem relação com a verdade. Para o laico, portanto, o tempo não está comprometido com nenhuma verdade transcendental.

Dividir e bombardear

Se se considera, como exemplo, o tempo de nosso presente histórico, ser laico antes de tudo é não comprometer-se com a verdade do capital ou com a verdade que diz que nada é possível ou viável se não produzir lucro; se não concentrar renda e poder. A verdade atual que impede que vivamos o nosso tempo como um aberto tempo laico, em que tudo é possível – inclusive e antes de tudo um mundo sem opressores e oprimidos – é também aquela que divide o mundo entre famosos e anônimos.

É assim, nessa dupla divisão, que a potência laica de nossa atual fase história está bloqueada, razão pela qual só é possível instaurar um campo laico verdadeiramente transformador e revolucionário se conseguirmos coletivamente desconstituir essa verdade: a do lucro, a da divisão social entre famosos e anônimos, entre astros e massas informes, entre ricos e pobres.

Valho-me dessa definição de esfera laica do filósofo Jacques Rancière para constatar o óbvio; para o poder ou poderes ligados ao capital, o poder dos famosos e dos ricos, o tempo não tem relação com a verdade, motivo pelo qual os poderes contemporâneos são laicos, pois não se fecham com verdade alguma que não seja a verdade do lucro e da posse plutocrata da mais-valia produzida pelas anônimas massas do planeta, os plebeus.

É por isso que é possível dizer que os poderes ligados ao capital, ou o poder-capital, é tributário de um ponto de vista laico ativo, ao contrário da população, que exerce uma dimensão laica passiva. Para a plutocracia planetária, tudo é possível e o nosso mundo, com suas guerras surrealistas, seu sistema dominante de inexpressivas liberdades de expressão, a crise ecológica, o abandono absoluto de pais e filhos, a miséria generalizada, enfim, tudo é prova cabal de que o tempo não tem relação com a verdade para o capital, pois este consegue, via satélite, mapear, ordenar, desordenar, massificar, banalizar, dividir e bombardear a população do planeta, pondo-a cinicamente a seu serviço, independente de qualquer forma de ética, moral, verdade, transcendência, piedade, solidariedade, cooperação.

O casamento do tempo

O capital é, portanto, laico, porque não vive o tempo como constituído por verdades. Para o capital, o tempo é uma abertura sem fim e pode ser preenchido por qualquer tipo de acontecimento, os mais absurdos e inverossímeis, como, por exemplo, a invasão de um país, a Líbia, por três países colonizadores, EUA, Inglaterra e França, para roubar petróleo e dominar geoestrategicamente o norte da África; invasão, diga-se de passagem, aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU, entidade criada, após a Segunda Guerra Mundial, para, dentre outras coisas, garantir a soberania dos países do mundo; verdade ou garantia internacional que não é respeitada pelo capital, que está além do bem e do mal, além de qualquer legislação, prescrição, consenso, jurisprudência, pela simples razão de que é despoticamente laico, motivo pelo qual o tempo é preenchido por acontecimentos que lhe interessam, sem precisar dar satisfação a nada e ninguém, bastando que tenha a posse e o controle de um sistema de mídia como um não menos laico – e ativo – suporte simbólico capaz de fazer qualquer coisa com o tempo da notícia, editando-a, escondendo-a, inventando-a do jeito que o capital quer, na abertura laica do tempo laico, em que tudo é possível, exceto o questionamento ou o bloqueio do próprio capital.

Eis porque o capitalismo é também religioso, tanto quanto é laico, porque preenche o tempo com a sua verdade, a verdade do capital, transformando-a em religião planetária, fundamentalista, despótica, ditatorial, pela evidente razão de que só o capital pode ser laico; só ele pode preencher o tempo com acontecimentos em que o capital gera mais capital; só esses acontecimentos, enfim, são credíveis, os que produzem lucros para poucos, razão pela qual são acontecimentos-deuses, que tanto produzem os totens a serem adorados pela passiva população massificada, as mercadorias e os astros que as exibem; como os tabus, que são sem cessar acusados de terrorista, de fundamentalista, de ignorante, de fracassados quanto mais não partem do tempo da verdade do lucro.

O capitalismo é, assim, um sistema laico que caça sem cessar a todos que são verdadeiramente laicos porque não preenchem o tempo com a verdade do capital.

Não é circunstancial, desse modo, que praticamente a metade da população do planeta tenha assistido – ou sido incessantemente instigada a assistir –, na última sexta-feira, dia 29 de abril, ao casamento de um príncipe e uma plebeia no centro original do capitalismo anglo-saxônico, Inglaterra, porque no balaio de gato em que tudo é possível, no despótico tempo laico do capital, é indispensável que este seja aureolado por uma coroa de duas faces, a saber: uma face a-histórica, constituída por um tempo da corte, de reis, príncipes e rainhas, com suas temporalidades de poderes transcendentais, mágicas e supostamente sobre-humanas; e uma segunda face constituída pelo rosto de uma plebeia, rosto histórico a indiciar o casamento do tempo transcendental, divino, com a historicidade plebeica, desde que tudo esteja a serviço da reificação, do reinado a-histórico do capital, via satélite.

Súdita do capitalismo

Não é igualmente por acaso que a indústria cultural inglesa – principalmente a literária e a cinematográfica – produza massificadas obras, como a saga Harry Potter, da escritora inglesa Joanne Rowling, série de aventuras fantásticas dotada de um tempo fora do tempo, fabuloso, mágico, ocultista, misterioso, em que tudo é possível, embora desta vez não sob o ponto de vista laico, mas sob o ponto de vista religioso dos deuses e da magia.

É o próprio ocultismo étnico-religioso do berço do capitalismo contemporâneo que essas obras literárias e cinematográficas não cansam de enredar e representar, como que a dizer que o tempo do capital é o da origem mítica, dotado de ocultistas verdades transcendentais, inexplicáveis e a serviço do preenchimento do tempo laico pela verdade misteriosa do tempo mágico.

E é o tempo mágico do capital que a Rede Globo de Televisão – mas não apenas – transmitiu com reverência, ao televisionar o casamento de um príncipe e de uma plebeia ingleses, transmissão narrada num tom religioso porque no fundo e no raso a reverência é devida ao capital, posto que estamos na era de seu lastimável, histórico e genocida reinado, razão pela qual somos, ou devemos ser, seus súditos. E foi assim que a Rede Globo narrou o casamento dos angélicos príncipes, como súdita do capitalismo anglo-saxão, a serviço que está de seu imperialismo.

Despótico, ditatorial, parasitário

Essa situação evidentemente esclarece muito o motivo pelo qual a mesma Rede Globo esteja transmitindo uma novela como a das seis da tarde atual,Cordel Encantado (de Thelma Guedes e Duca Rachid), pois ela só consegue, ao que parece, aproximar-se da cultura popular nordestina propondo que esta se inscreva como súdita por excelência de um mágico reino de além-mar, Seráfia, reino cujo rei, como já sabemos, irá se casar com uma plebeia negra brasileira, como que a dizer, e dizendo que o melhor berço para a potência laica negra deve ser o da magia cortesã pré-moderna, através de uma rainha negra que receberá o sêmen do reinado de um tempo sem história: o tempo eterno de soberanos e súditos, miscigenado e transformado, em perspectiva ocultista, em tempo mulato da opressão eterna.

Por uma transcendental lei das sincronias, talvez não seja casual que a novela Cordel Encantado tenha o mesmo motivo de contos de fada que a transmissão do casamento de um príncipe e plebeia do reinado inglês, ocorrido nessa última sexta-feira, pós-sexta da paixão de Cristo.

Com a crise fabricada do capitalismo atual e a consequente tríplice aliança do imperialismo americano, inglês e francês invadindo a Líbia, prenuncia-se a abertura sem fim do presente tempo histórico ao acontecimento laico-religioso da rapina do capital em busca desenfreada dos recursos não renováveis da Terra; prenúncio não apenas sintomático, como bélica estratégia para compensar os déficits e dívidas astronômicas dos governos americano, inglês e francês, mas também uma tentativa de transformar de vez o mundo do capital em questão de fé, dividindo-o não mais entre burgueses e operários, mas entre plutocratas e súditos.

A novela Cordel Encantado é parte desse prenúncio, num contexto em que a realidade brasileira não é favorável, por não estar sendo administrada pelo governo encantado da Rede Globo, o do PSDB, razão pela qual a ficção global o realiza novelisticamente, despoticamente, já que todo rei ou reinado, seja ficcional, real ou constituído por um poder simbólico, como o inglês, é despótico, ditatorial, parasitário.

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Poeta, escritor, ensaísta e professor da Universidade Federal do Espírito Santo