Suponhamos que um animal, numa remota recente época, chamada de pré-histórica, fosse tomado de terror diante de uma natureza adversa, habitat de outros animais maiores, mais ferozes, os quais frequentemente o caçavam dentro e fora das escuras e frias cavernas, onde o animal humano – é esse o termo que o define, como espécie – se escondia, não sem pavor, do inesperado, do monumental, do assustador mundo de terremotos, intempéries e famintas feras.
Suponhamos que esse animal humano, ou pelo menos alguns grupos de sua espécie, tivesse um fundo e raso desejo de sair dessa condição de vulnerabilidade absoluta, tal que, aos poucos, fosse submetendo, de forma antropocêntrica, a natureza, primeiramente com o domínio do fogo, da pedra lascada, de rudes artefatos e armas, assim como, ao mesmo tempo, através da domesticação de algumas outras espécies de animais e do cultivo de grãos.
Suponhamos (epifânica alegria!) que o animal humano conseguisse finalmente produzir excedentes, reservas de alimentos vegetais e animais, esconjurando para o quinto dos infernos o fantasma da fome, seu principal inimigo.
Suponhamos que esse animal ainda não tivesse saído de sua infância humana e que, por isso mesmo, a si mesmo se expressasse ocupando o outro extremo do pólo, de uma espécie entre as demais, empenhasse em ser aquela que submetia e dominasse todas as outras, sempre em busca de excedente.
A encarnação da posse de excedentes
Suponhamos que, transformando-se em dominador, alguns grupos de bichos humanos não apenas criassem um Deus com sua imagem e semelhança, mas, pasmem!, dominassem outros grupos humanos, considerados inferiores,usando-os, através de renhidas guerras, para concentrar para si toda sorte de excedente, um entrelaçado no outro, o excedente territorial, o excedente de grãos, base de sua dieta, o de propriedade de outros animais, não humanos, domesticados; através do controle-posse do excedente letal, também chamado de militar, do excedente econômico, político, social, cultural, tecnológico, científico, criativo, sexual.
Suponhamos que esses grupos humanos, doravante autodenominados de vencedores, usassem a força coletiva do trabalho social, a única que produz excedentes, a fim de erguer grandes civilizações, egípcia, grega, romana, mesopotâmica, turca, chinesa, tal que uma civilização se impusesse sobre a outra, através de uma guerra sem fim pelo excedente alheio.
Suponhamos que o resultado mais evidente desses confrontos por excedentes fosse a moldagem de um perfil humano o mais apto possível a representar esse modelo civilizatório absurdo, fundado no roubo de excedentes, razão pela qual divinizou-se (sendo transformado em padrão dominante) um perfil humano que fosse o macho da espécie, que fosse adulto, que fosse, enfim, a imagem e semelhança dos controladores/possuidores dos excedentes, a própria encarnação física da intolerável posse privada de excedentes, tendo em vista o grupo humano que detivesse o poder em cada época histórica.
Genocídio foi a regra
Suponhamos que esse perfil humano padronizado e divinizado, além de ter se tornado a imagem e semelhança dos deuses, detivesse igualmente os divinos atributos da onipresença e da onipotência, motivo pelo qual, em cada época histórica, espalhava-se e impunha-se como modelo a ser imitado, referendado, tal que as instituições todas, de cada época histórica, servissem, como num jogo de cartas marcadas, para ratificar, legitimar e impor a farsante verdade, da farsante lógica dos ladrões de vitalidades.
Suponhamos que em todas as épocas históricas desse modelo parasitário, aqueles outros grupos humanos impossibilitados de usufruir dos excedentes, sempre coletivamente produzidos, fossem chamados de terroristas, de ingratos, de traidores, de bárbaros, de ignorantes, de inferiores, quando tentassem instaurar algum tipo de situação que tivesse como objetivo, consciente ou não, a repartição igualitária das riquezas coletivamente produzidas; ou, a partir de outro ponto de vista, quando se recusassem – como no caso dos índios da América Latina –a trabalhar para a produção de riquezas, para os ladrões de excedentes.
(Claro que em ambas as hipóteses, na da repartição dos excedentes e, naquela outra, da recusa de produzi-los, para os ladrões de excedentes, o genocídio sempre foi a regra geral. Mire-se no exemplo dos índios do chamado Novo Mundo, assim como no da Guerra de Canudos, na Bahia.)
Gozo, esbanjamento e desperdício
Suponhamos que isto a que chamamos de modernidade ocidental burguesa, de capitalismo, fosse mais que a conseqüência previsível do determinismo histórico (desse modelo trans-histórico baseado no roubo de excedentes), de vez que, bem mais que ser a mera repetição das outras civilizações, a modernidade capitalista liberal, aproveitando-se do acúmulo quase que inesgotável de excedentes culturais, estéticos, criativos, científicos, tecnológicos, utilizasse-os de uma forma sistematicamente surpreendente, posto que rouba antes de tudo o excedente de luta, de imaginação, de criatividade, de resistência; o excedente vital, enfim, daqueles que não têm a posse de excedentes, para manter o seu parasitismo.
As outras civilizações todas se baseavam na diferença divina, transcendental, como justificativa para o saque dos excedentes. Faraós, imperadores, reis, os sangues azuis e seus séquitos, enfim, não se misturavam com os roubados, a não ser clandestinamente, sob a forma de estupro, como no caso do senhor com sua escrava e/ou do colonizador português com as mulheres índias das Américas. Ou sob o signo da prostituição.
Diferentemente, a modernidade burguesa ocidental globalizada rouba o excedente criativo, das populações sem excedentes econômicos, não apenas para viver melhor – porque o excedente criativo daqueles que não possuem a posse do excedente econômico é sempre o mais vital –, mas também para dissimular hipocritamente que vivemos numa época de distribuição de excedentes; uma época de democracia, de justiça.
Exemplo cabal disso constitui a democracia liberal burguesa, que nada mais é que o roubo do excedente por justiça, pela tomada coletiva das decisões, a fim de justificar a plena liberdade de trânsito, de gozo, de esbanjamento e desperdícios de e para poucos, para os ladrões de sempre.
Um mundo unidimensional
Outro exemplo curioso e perspicaz, para não dizer estratégico, constitui a indústria cultural das e para as sociedades de massa, dentro das quais se inclui também o burguês, isto é, o ladrão de excedente da modernidade liberal, motivo pelo qual não existem mais diferenças, hoje, entre a cultura erudita e a cultura popular.
No lugar de ambas, através das tecnologias de informação, criou-se esse produto cultural híbrido, a indústria cultural, que sanguessuga a cultura popular, envolvendo-nos a todos num mesmo sistema civilizatório, criando assim a ilusão de ótica de que somos todos iguais, uma vez que temos, de modo geral, os mesmos gostos musicais, cinematográficos, novelísticos, sexuais, intelectuais.
Suponhamos que os ladrões de excedente dos Estados Unidos da América ocupassem o epicentro irradiador desse modelo, a modernidade burguesa, de roubo de excedentes, sendo, por isso mesmo, o lugar que molda, produz e distribui, através das diversas mídias, a farsante liberal democracia da indústria cultural, da cultura de massa, seja por meio de sua indústria cinematográfica, cujos filmes são insistentemente apresentados no mundo todo; seja através de seus cantores pops, cujas músicas igualmente se espalham por todos os mundos, tendo, claro, como suportes tecnológicos, o rádio AM/FM, as TVs abertas e fechadas e, mais atualmente, a internet, os celulares, tudo cada vez mais concentrado num único suporte, que incorpora e agrega as faculdades singulares dos demais, a fim de, de forma onipresente, apresentar o mesmo unidimensional mundo que tem o perfil da classe média americana como o novo deus da concentração democrático-burguesa-consumista dos ladrões de excedentes da cultura de massa contemporânea, os quais devem ter o mesmo perfil no mundo todo, como co-participantes desse roubo /genocídio /infanticídio, etnocídio, biodiversidadecídio planetários.
‘Favores’ norte-americanos
Suponhamos que os principais canais privados de televisão, espalhados pelo mundo, como divulgadores onipresentes e onipotentes do perfil democrático-liberal-midiático burguês, sob a batuta norte-americana, fossem igualmente financiados clandestinamente – às vezes abertamente – pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos (país que pode emitir ao infinito a moeda de referência do planeta, o dólar), com o objetivo de garantir que esses canais privados de televisão sirvam, de forma subserviente, aos interesses do imperialismo americano, ora se tornando partidos políticos (o PIG, Partido da Imprensa Golpista), os quais, mais que em nome das burguesias nacionais, agem em nome da plutocracia do império; ora (e tudo ao mesmo tempo agora) nos intoxicando com os graciosos enlatados musicais, cinematográficos, publicitários, noticiosos, gestuais, cerimoniais, rituais produzidos pela indústria cultural norte-americana, com o consciente e inconsciente propósito de nos inculcar o american way of life, como o modelo por excelência, farsante, da concentração de excedentes econômicos, culturais e pop-midiáticos da atualidade.
Suponhamos que as TVs privadas abertas brasileiras façam parte desse empreendimento das guerras midiáticas travadas pelos maiores ladrões de excedentes da atualidade, a plutocracia americana.
Suponhamos que esses canais de televisão recebam ou tenham recebido ou venham a receber (e tudo ao mesmo tempo agora), digamos, ‘favores’ do Departamento de Estado dos Estados Unidos, através de suas diversas agências como a Usaid (Agência norte-americana para o desenvolvimento internacional), a Ned (National Endowment for Democracy), agência vinculada à CIA, financiada pelo Congresso americano e supervisionada pelo Departamento de Estado), a embaixada americana no Brasil e assim por diante.
Os roubados de sempre
Suponhamos que, agindo em nome do imperialismo americano (e historicamente sendo, seus donos, beneficiados por isso) esses canais abertos de televisão chamem de liberdade de expressão aquilo que interessa, sob qualquer ponto de vista, ao imperialismo americano, motivo pelo qual, por exemplo, as notícias que nos chegam sobre Cuba, Irã, Venezuela, Bolívia, Equador são sempre aquelas que repetem a versão imposta pelo Dimim (leia-se, Ditadura da Mídia Mundial) que tem como epicentro o imperialismo pop-midiático americano.
Suponhamos que tudo isso configure crime de lesa-pátria, para não dizer de lesa-humanidade e suponhamos mais, que cinicamente isso tudo nos seja arrogantemente apresentado como liberdade de expressão.
Suponhamos, por fim, que em nome da liberdade de expressão, dos direitos dos povos de viverem, sem serem roubados, humilhados, inviabilizados, torturados, barbarizados, idiotizados, assassinados; suponhamos, enfim e em começo, que uma resposta/proposta – dentre outras, para o absurdo, vergonhoso e intolerável mundo em que vivemos, constitui aquela em que de forma alguma aceitemos o ponto de vista dos ladrões de excedentes, daqui e de qualquer lugar, de tal sorte que ousemos aquilo que pareça improvável, absurdo, mas que é perfeitamente democrático, factível, possível, justo, a saber: exigir, em nome da liberdade de expressão, uma Comissão Parlamentar de Inquérito, uma CPI, para investigar, nos últimos 45 anos, os movimentos financeiros dos canais abertos das tevês privadas brasileiras.
Temos razões suficientes e evidentes para a necessidade de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para as TVs abertas do Brasil.
Basta ver os filmes que passam em todos os canais. Visivelmente constituem uma propaganda da farsante democracia americana. Basta considerar as omissões, os pontos de vista – que nunca nos são apresentados – dos setores brasileiros e internacionais que são as vítimas (como o MST, a Via campesina, Chiapas, do México, os camponeses e índios colombianos, peruanos, os povos africanos) desse americano sistema bélico-midiático de seqüestro das riquezas dos povos. Basta deter-se na obviedade de que os americanos, sua elite, seus líderes são sempre muito bem focados e editados e suas versões dos fatos contemporâneos são sempre apresentadas como evidentemente inquestionáveis, como uma premissa, uma verdade transcendental.
Se essas e uma infinidade de outras evidências cotidianas não constituem motivos para uma investigação parlamentar, certamente é porque ainda não saímos da infância de nossos pesadelos pré-históricos, por não termos, livres que deveríamos ser, a coragem justa, necessária e democrática de nos escandalizarmos com essa diária corrupção naturalizada por nossas TVs privadas abertas.
A esse propósito, parece-nos incrível como nenhum político brasileiro – nem os da esquerda mais radical – tenha tido a coragem de ao menos tentar colher uma assinatura para uma urgente, desde sempre, CPI como essa.
Assim sendo, em nome da justiça verdadeira, que é aquela em que os excedentes, sendo coletivamente produzidos, sejam coletivamente usufruídos (além, é claro, de coletivamente decididos, pois temos o direito de decidir sobre o nosso próprio modelo civilizatório, que a única forma de resolvermos a crise ecológica, alimentar, energética, civilizacional, na qual estamos afundados até o pescoço), suponhamos quantos escândalos viriam à tona com a realização audaciosa de uma CPI para as TVs abertas brasileiras.
Aí sim, suponhamos, certamente exigiríamos uma multiplicidade de outros canais de televisão para os mais diversos setores da população brasileira, principalmente para aqueles que nunca tiveram excedente televisivo, os roubados de sempre.
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Professor da Universidade Federal do Espírito Santo, poeta, ensaísta e escritor