‘A história de um menino de rua que se transformou em pedagogo e de uma menina pobre com problemas visuais que se tornou professora universitária estão entre as cem biografias que fazem parte do livro ‘100 brasileiros’, lançado ontem na Biblioteca Nacional, no Rio. Coordenada pela Secretaria de Comunicação da Presidência da República e produzida pela Biblioteca Nacional, a obra faz parte da campanha ‘O melhor do Brasil é o brasileiro’, promovida pela Associação Brasileira de Anunciantes (ABA). Reúne histórias de brasileiros de destaque em áreas como esporte, arquitetura, música e ciência, mas algumas ausências já foram sentidas.
— É importante para a nação saber valorizar seus elementos distintivos. Um dos objetivos é incentivar a multiplicação de heróis, desde pessoas já conhecidas a pessoas desconhecidas que merecem ser enaltecidas por suas posturas exemplares. Pode servir de estímulo a um processo de fortalecimento da identidade cultural brasileira — disse o ministro Luiz Gushiken, da Secretaria de Comunicação.
‘A cobrança significa que há muitas personalidades’
As personalidades foram escolhidas por especialistas indicados pelos ministérios. A maioria dos personagens já morreu, mas há personalidades vivas nas categorias de arquitetura, cinema, esportes e heróis desconhecidos. Apenas os nomes dos atletas foram selecionados pelo Ministério dos Esportes através de uma consulta aos internautas, que deixaram de fora o jogador Ronaldinho, por exemplo.
Entre os brasileiros homenageados estão Oscar Niemeyer, Aleijadinho, Oswaldo Cruz, Glauber Rocha, Grande Otelo, Ayrton Senna, Pelé, Duque de Caxias, Juscelino Kubitschek, Chico Mendes, Jorge Amado, Tom Jobim, Elis Regina, Darcy Ribeiro, Nelson Rodrigues e personagens históricas como Zumbi dos Palmares e Tiradentes. O ministro Gushiken já espera que sejam cobradas as ausências de várias pessoas que também fazem parte da História do país, mas justifica:
— A cobrança de ausências significa que há muitas personalidades importantes.
São todas biografias resumidas de uma página acompanhadas de uma foto. Pelo menos uma delas, a do cineasta Mário Peixoto, repete um equívoco comum. O texto cita que seu filme ‘Limite’ conquistou até Eisenstein entre os admiradores, mas o diretor russo nunca elogiou esse filme. O equívoco se deve a um artigo falsamente atribuído a Eisenstein que foi divulgado.
Foram editados 5 mil exemplares destinados a bibliotecas, associados da ABA e formadores de opinião. A obra também estará disponível a partir de terça-feira pelo site www.brasil.gov.br/100brasileiros.
Protesto de servidores do ministério em greve
Ao chegar ao lançamento do livro, o ministro Gushiken encontrou faixas de protesto na entrada da Biblioteca Nacional. Os servidores do Ministério da Cultura entraram em greve ontem por reajuste salarial e contratação de funcionários. O ministro considerou o fato normal, típico de países democráticos e disse que cabe ao governo garantir o funcionamento das instituições.’
ROBERTO & LILY
‘A trajetória de uma história de amor’, copyright O Globo, 12/11/04
‘O primeiro encontro foi em 1941, no Copacabana Palace. Ela tinha 20 anos e era casada com o jornalista Horácio de Carvalho. Ele tinha 36 e era solteiro. Para ela, foi um encontro como tantos outros. Para ele, teria sido um choque, um amor à primeira vista. O reencontro foi em 1989, em uma festa na Avenida Atlântica. Ela tinha 68 anos. Ele já tinha 83. Dois anos depois, estavam casados. Ela é Lily Marinho. Ele é o jornalista Roberto Marinho. E a história de amor dos dois é o fio condutor do livro ‘Roberto & Lily’ (Editora Record). A obra é assinada pela própria Lily, mas foi feita com a colaboração de Romaric S. Büel, ex-adido cultural francês, que cuidou dos depoimentos, e de Maria de Fátima Oliva do Coutto, responsável pela tradução, já que o original foi escrito em francês.
— ‘Roberto & Lily’ é a confirmação do desejo de Lily de dar o seu testemunho sobre esta incrível história de amor — resume Büel. — Como Lily costuma dizer, o livro mostra que o amor é um sentimento que pode acontecer a qualquer momento, não importa a idade.
Um dos capítulos foi escrito no quarto que era de Roberto Marinho
Para despertar as lembranças que fundamentaram o livro, Lily usou alguns estratagemas. Um deles foi remexer em baús de fotos antigas, selecionar as mais fundamentais e a partir delas avivar a memória. Outro foi encontrar na casa do Cosme Velho, onde o casal morou até a morte do jornalista, no ano passado, e onde Lily vive até hoje, cantos que também pudessem despertar as lembranças. O preferido foi o quarto de Roberto Marinho, onde ela escreveu um capítulo inteiro. Nele, ela fala do cuidado que tem até hoje com tudo o que pertenceu ao marido:
‘De quando em quando, examino o guarda-roupa do grande quarto de vestir, onde ele escolhia o que usaria no dia seguinte. Olho as camisas alinhadas, os ternos impecavelmente passados. Peço que os coloquem para arejar e cuidem para que nem as traças nem os cupins tomem posse de seu domínio. Faço-o sem pensar, mas quem sabe se essa não é a maneira que encontrei de manter viva, inclusive nesse universo um tanto ou quanto periférico, sua presença’, escreve ela.
‘Roberto & Lily’ acompanha a trajetória de uma história de amor. Está lá o primeiro encontro: ‘Ao conhecê-lo, apenas vislumbrara sua forte personalidade… Eis tudo. Nada em seu comportamento que fizesse supor algo além da cortesia e elegância de homem do mundo. (…) Ele descrevia como se tivesse recebido um choque, uma espécie de amor à primeira vista’. O reencontro também ganha uma descrição vívida: ‘Ao entrar no salão, vi vários homens se levantarem. Dentre eles um de porte mediano, ‘olhar direto, intenso, olhos marrons, um sorriso muito especial e bigode bem-cuidado’. O mesmo olhar, exatamente o mesmo, apesar dos anos, que aquele entrevisto quase 50 anos antes e, depois, de tempos em tempos’.
— O livro é uma declaração de amor e também uma maneira de ela louvar a vida e de mostrar que o amor pode aparecer quando menos esperamos — analisou a atriz Fernanda Montenegro depois de receber de Lily sua dedicatória: ‘Para minha grande amiga, adoro ela como artista e como pessoa’. — Nem sempre nos encontramos, mas quando estamos juntas tenho a impressão de que somos amigas há anos.
Embora o eixo central seja a história de amor, a autora salpica trechos de sua própria biografia (‘Afinal, o que levou esta francesa de Colônia a embarcar num navio em Cherbourg para o Rio em 1939? O amor; simplesmente o amor. Impressionante com que felicidade e facilidade me tornei brasileira, carioca’), discorre sobre o Rio dos anos 40 (‘A Praça Mauá e a Avenida Central lembravam, ainda vagamente, uma cidade européia, com suas bonitas construções neoclássicas. (…) Ao ver pela primeira vez o Theatro Municipal, pensei na Ópera de Paris, apenas um pouco menor’) e sobre a trajetória de seu marido (‘Revendo esse passado como assistiríamos a um filme às avessas, a figura de Roberto sobressai, lenta e seguramente, nesse viveiro formado por homens tão extraordinariamente dotados, talentosos e trabalhadores. Conseguiu impor-se, com o passar do tempo, como o Hearst brasileiro.’)
No livro, também reproduções de cartões do marido e de cartas de pêsames
Além do texto, há no livro um encarte reunindo fotos sublinhadas por comentários da própria Lily (‘Mamãe dizia que eu tinha a aparência de um anjo. Papai dizia que o demônio continua sendo um anjo… caído’), além de reproduções de cartões enviados por Roberto Marinho ao longo do casamento e de cartas recebidas por ela, de artistas como Hebe Camargo e Lady Francisco, quando ele morreu.’
LÍNGUA PORTUGUESA
‘Portugal e Brasil: viva a diferença!’, copyright Jornal do Brasil, 15/11/04
‘Em Portugal, o tira-cápsulas substitui o saca-rolhas. Água sem gás é água lisa. Impressão digital é dedada. Celular é telemóvel. Os jogadores entram em campo vestindo camisolas. As aeromoças são hospedeiras ou comissárias. Nas praias, nada do neologismo topless, mas, sim, maminhas ao léu.
No Brasil, que inventou o avião e a aeromoça, a comissária veio depois. O ofício contava com hegemonia feminina, mas, quando chegaram os aeromoços, logo foram denominados comissários. Por concordância, irrompeu a comissária.
Em todas as cidades, especialmente em Lisboa, quem varre as ruas não são os garis, são os almeidas. Já em terras lusitanas, admirado você contemplou o vôo veloz de pequena ave apodiforme e troquilídea, cujo alimento é o néctar de flores e insetos minúsculos. Como denominá-la? Bem, chamar assim o passarinho equivale a dizer de esfuziante beldade de lindos seios que suas glândulas mamárias são muito bonitas. Melhor, pois, chamar o colibri ou o cuitelinho de beija-flor, como todos o conhecem.
Todos? Em Portugal, não. A língua é a mesma, nossa amada portuguesa, mas em além-mar a avezinha não beija as flores, chupa-as. E por isso é conhecida por chupa-flor.
O poeta Gregório de Matos, escrevendo na Bahia, no século 17, preferiu pica-flor, só para o gosto do trocadilho licencioso com que respondeu a certa monja que debochava de sua magreza e pequena estatura: ‘Se Pica-Flor me chamais,/ Pica-Flor aceito ser,/ Mas resta agora saber,/ Se no nome que me dais,/ Meteis a flor que guardais/ No passarinho melhor!/ Se me dais este favor,/ Sendo só de mim o Pica,/ E o mais vosso, claro fica,/ Que fico então Pica-Flor’.
Cauteloso, você levou durex consigo? Cuidado com os dois. Com a camisinha, lá conhecida por durex, e com o pronome. Nem lá nem cá você poderá errar o uso. Não vá fixar papel algum com durex em Portugal. E saiba que, se aqui o durex tem um gênero e uma finalidade, lá pode variar de gênero, mas jamais de finalidade. Quanto ao pronome ‘consigo’, saiba que os portugueses têm para ele um viés todo especial e excessivamente lógico para os brasileiros.
Também o nome das refeições evidencia algumas singularidades e já demandou maiores cuidados antigamente, de que é exemplo o jantar. O latim vulgar jantare, variação de jentare, relacionado com jejum, entrou para a língua portuguesa em 1111, mas não designava a última refeição do dia. Ao contrário, o jantar foi originalmente almoço e não tinha o sentido de refeição, mas de imposto de vassalagem, pago ao senhor em viagem, sobretudo quando em busca de subordinados que tivessem alocado sua força de trabalho a outros senhores.
No português arcaico, por tais razões, jantar era designado também comedura, comedoria, exceto quando os hóspedes compulsórios eram eclesiásticos. Daí a palavra equivalente era visitação, parada, procuração, censo, direito pontificial.
O primeiro rei português, dom Afonso Henriques, já metia a mão nos bolsos dos vassalos e fixou os valores de jantar e parada a todos os moradores das vilas, ainda que não fossem visitados, estipulando-os em dois pães, um de trigo e outro de centeio, um almude de cevada e outro de vinho. Em resumo, antes de ser almoço, o jantar foi um imposto. Bem diria o célebre economista muitos anos depois que ‘não existe almoço de graça’. Nem jantar. Nem pequeno almoço, que é como os portugueses denominam o café da manhã, o desjejum.
Que não nos tomem por arrogantes os nossos irmãos portugueses, que nos deram esta maravilhosa e deslumbrante língua portuguesa, mas nós suavizamos e embelezamos a herança.
Café da manhã é mais poético do que desjejum ou pequeno almoço. Começaremos o dia muito melhor com café da manhã.’