‘O presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebeu com ‘enorme pesar e tristeza’ a morte de Celso Furtado, que considerava uma referência, e decretou luto oficial de três dias no país, em homenagem ao economista. Em nota oficial, Lula disse que ‘guarda os ideais’ do amigo Celso Furtado, que, dias antes, criticara a demissão de Carlos Lessa do comando do BNDES. O presidente disse a assessores próximos que tinha ‘muito respeito’ por Celso Furtado e que queria lhe prestar uma grande homenagem. Segundo assessores, o presidente manifestou desejo de ir ao Rio para o velório ou o enterro do economista.
‘É com enorme pesar que venho a público manifestar minha tristeza com o falecimento de Celso Furtado. Mais que um economista, Furtado era um brasileiro que nos enchia de orgulho por seu compromisso com o Brasil, com a América Latina e com todos os países em desenvolvimento’, disse Lula na nota. O presidente finaliza o texto afirmando: ‘Perco um amigo, mas guardo seus ideais.’
A amigos, Lula lembrou que fez questão de visitar Furtado logo depois de vencer a eleição presidencial de 2002, encontrando o economista em seu apartamento no Rio de Janeiro. Em 28 de julho do ano passado, Furtado se reencontrou com Lula durante a cerimônia de recriação da Sudene.
Em seus inúmeros discursos, Lula citou o nome de Furtado em pelo menos oito pronunciamentos. Nessas ocasiões, o presidente costumava se referir a ele como ‘mestre’, ‘caro companheiro’, ‘referência para todos nós’ ou ‘guardião da esperança na vontade nacional’.
— O presidente era muito ligado a Celso Furtado e tinha muito respeito e admiração por ele — afirmou um interlocutor de Lula.
Na nota oficial, Lula ressaltou que Celso Furtado ‘foi o grande responsável pela construção da Sudene’. Em seguida, o presidente acrescentou: ‘Lembro-me com emoção de sua presença na cerimônia de recriação da Sudene. Mesmo debilitado fisicamente, comemorou sua fé no Nordeste e no Brasil’.
Ao se referir à questão das desigualdades existentes no país, o presidente Lula disse que ‘é impossível debater o desenvolvimento sem passar pelos textos e idéias’ de Celso Furtado. ‘Intelectual rigoroso, era ao mesmo tempo homem de ação e de Estado. Sua obra e suas idéias, desde os anos 50, representam um marco do pensamento econômico e social’, acrescentou o presidente.
Lula disse ainda que Furtado era ‘um dos homens mais importantes do século XX’, tendo reconhecimento internacional e tendo seus livros traduzidos para várias línguas.
O presidente estava na Granja do Torto, descansando ao lado da família e de assessores mais próximos, quando soube da morte de Celso Furtado. Na cerimônia de recriação da Sudene, Lula dissera:
— Furtado anteviu a relevância desse instrumento ao criar a Sudene, quando tinha apenas 38 anos de idade. Agora, aos 83 anos de idade, ele continua a nos pautar como uma referência de futuro.
A última citação de Lula a Celso Furtado foi feita na XI Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), em 14 de junho deste ano:
— Esta conferência também homenageia um economista cuja vida e obra encarnam o próprio espírito da luta pelo desenvolvimento, o economista Celso Furtado.’
Jaime Biaggio
‘Furtado, um guru de economistas e políticos’, copyright O Globo, 21/11/04
‘Em junho passado, ao ser homenageado pela ONU, na abertura da 11Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento, Celso Furtado, então próximo do aniversário de 84 anos, ocorrido em 26 de julho, expôs, numa mensagem gravada, sua visão sobre o que constitui o desenvolvimento econômico e quais as formas a serem adotadas por um país para persegui-lo.
— O desenvolvimento não é fruto de uma evolução automática, mas de pressões políticas da população. Essas pressões definem o perfil de uma sociedade. Não o valor de bens e serviços por ela consumidos e acumulados.
A visão econômica de Furtado, paraibano de Pombal, se pautava num Estado forte e no investimento nas condições de vida do povo. Livros e estudos gerados a partir dela nortearam o pensamento de gerações de técnicos, economistas e políticos brasileiros.
Entre eles, Juscelino Kubitschek, cujo Plano de Metas se baseava num estudo comandado por Furtado em 1953, e em cujo governo ele criou e presidiu a Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), em 1959; João Goulart, de quem foi ministro do Planejamento de 1962 a 1963; e os economistas ligados ao PT, como Maria da Conceição Tavares e Aloizio Mercadante. Todos se pautaram por ele, para quem industrialização atrelada a geração de empregos, investimento na educação e combate aos problemas sociais eram prioridade.
Na Cepal, influenciando a visão de economistas do continente
Se Furtado foi guru da esquerda e do trabalhismo brasileiros da segunda metade do século XX, sua influência não se limitou ao Brasil. Como um dos primeiros integrantes da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), escola de pensamento econômico patrocinada pela ONU e sediada em Santiago do Chile, em 1949, Furtado primeiro formulou ali teorias que denunciavam a desigualdade entre economias dominantes e periféricas no sistema capitalista, e como as primeiras se alimentavam da situação das segundas. Em 1950, já diretor da divisão de desenvolvimento do órgão, publicou seu primeiro ensaio, ‘Características gerais da economia brasileira’, na ‘Revista brasileira de economia’, da FGV.
Dois anos depois, outro artigo, ‘Formação de capital e desenvolvimento econômico’, traduzido num jornal da Associação Internacional de Economia, lhe dá notoriedade internacional pela primeira vez. Ao longo dos anos 50, a notoriedade aumentaria, com seguidas viagens a países da América Latina e a universidades americanas e européias. Foi na Universidade de Cambridge, na Inglaterra, entre 1957 e 1958, que ele escreveu seu livro mais famoso, ‘A formação econômica do Brasil’.
Exílio levou o professor para a Sorbonne e os quadros da ONU
Nos anos 60, em exílio forçado, devido à cassação de seus direitos políticos após o golpe de 1964, Furtado se mudou para a França (onde mantinha casa até hoje), a convite da Faculdade de Direito e Ciências Econômicas da Sorbonne. Em Paris, assumiu a cadeira de professor de desenvolvimento econômico. Foi o primeiro estrangeiro nomeado para uma universidade francesa e permaneceu por 20 anos em seus quadros.
Na década de 70, começou seu vínculo com a ONU, quando missões oficiais da organização o levaram a África, Ásia e América Latina. Os anos 80 viram seu retorno à vida brasileira, a partir da Lei da Anistia. Nesse período, participou da Comissão do Plano de Ação do recém-eleito Tancredo Neves (foi ministro da Cultura de José Sarney, quando criou as primeiras leis de incentivo) e da Comissão de Estudos Constitucionais que esboçou a Constituição de 1988.
Furtado rejeitava políticas de estabilização econômica sustentadas por rígido controle dos gastos públicos e austeridade monetária, hoje em voga. Recentemente, apoiou o ex-presidente do BNDES, Carlos Lessa, nas críticas ao governo Lula.
— Forçar um país que ainda não atendeu às necessidades mínimas de grande parte da população a paralisar setores modernos de sua economia, a congelar investimentos em saúde e educação, para cumprir metas de ajustamento da balança de pagamentos impostas por beneficiários de altas taxas de juros é algo que escapa a qualquer racionalidade — disse, em artigo enviado à UFRJ, em maio.’
Marcelo Kischinhevsky e Samantha Lima
‘O legado de um Brasil mais justo’, copyright Jornal do Brasil, 21/11/04
‘O Brasil perdeu ontem o maior pensador e agente de seu desenvolvimento econômico e social no século 20. Celso Furtado, 84 anos, morreu pela manhã, vítima de um infarto, em casa, em Copacabana, Zona Sul do Rio de Janeiro, deixando como legado uma vasta obra acadêmica e uma trajetória de lutas em favor da população menos assistida. Autor de Formação econômica do Brasil (1959), divisor de águas no debate sobre a construção nacional, criou a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), foi ministro do Planejamento no governo João Goulart e da Cultura no governo José Sarney e, no ano passado, teve seu nome indicado ao Prêmio Nobel de Economia.
Furtado foi um cidadão do mundo, mas sempre com o coração e as idéias voltados para o Brasil. Combateu como pracinha na Itália, na Segunda Guerra Mundial, e participou como voluntário no processo de reconstrução da Bósnia no fim dos anos 40, paralelamente aos estudos sobre Direito e Economia. Doutorou-se na Universidade de Paris, mas com uma tese sobre os meandros do Brasil-Colônia. Trabalhou na Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) e lecionou em universidades como Yale (EUA), Sorbonne (França), Cambridge (Reino Unido) e Columbia (EUA), voltando ao Brasil de tempos em tempos.
Passado o período do exílio, após a cassação pela ditadura militar, militou no MDB e participou ativamente da campanha pela redemocratização do país nos anos 80, consolidando-se como referência maior do pensamento econômico da esquerda brasileira. Também se envolveu com a campanha de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República, em 2002, mas nos últimos tempos mostrava-se decepcionado com os rumos do governo petista. Já com a saúde debilitada, não compareceu a um seminário em sua homenagem na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em maio passado, mas enviou carta, lida por seu filho André, em que criticava a política de arrocho fiscal ‘imposta por beneficiários de altas taxas de juros’.
Num gesto simbólico, figurou esta semana entre os signatários do abaixo-assinado pela permanência do neonacionalista Carlos Lessa na presidência do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Lessa lamentou a morte do amigo, a quem chamou de mestre.
– Celso Furtado foi um grande brasileiro, um brasileiro com B maiúsculo. Tinha um projeto muito singelo: fazer do Brasil uma nação desenvolvida com justiça social. Era uma figura ilustre, com imensa fibra, típica de um homem do Nordeste.
Lessa disse que a amizade se iniciou quando Furtado o chamou para trabalhar na Sudene, há 42 anos.
– Mas passei a ser um discípulo dele quando li, no terceiro ano da faculdade, Formação Econômica do Brasil. Tenho todos os seus livros, muitos deles encadernados e com dedicatória.
Lessa comentou, ainda, que esteve com Furtado pela última vez durante a campanha para sua indicação ao Nobel, no ano passado. E que recebeu dele um e-mail em solidariedade por sua saída da presidência do BNDES, após críticas à condução da política econômica.
O pensamento de Furtado angariou o respeito não só de economistas de esquerda, mas também de outras correntes.
O economista Antônio Delfim Netto, ministro da Fazenda durante o regime militar, afirmou que a morte de Furtado ‘empobrece o pensamento brasileiro’.
– Celso Furtado era um grande pensador do desenvolvimento do país. Ele tinha uma preocupação de combate das desigualdades. Sem ele, o Brasil perde um pouco de sua vontade de crescer. Assim como eu, ele era contra essa teoria que está em vigor há 15 anos, pela qual basta produzir estabilidade monetária para que haja crescimento, como se fosse simples assim.
Delfim disse que as divergências entre ambos ‘se limitavam ao papel do Estado no desenvolvimento’. E lembra que utilizou o pensamento teórico de Furtado na elaboração de sua tese para aprovação como professor catedrático na USP, em 1963.
– Desenvolvi o comportamento da exportação necessário para que seu modelo de desenvolvimento funcionasse, sem criar déficit na conta corrente do país.
Paulo Rabello de Castro, sócio da RC Consultores, vai na mesma direção.
– Celso Furtado distinguia com clareza as razões de Estado das razões de mercado. A geração da estagnação consentida é incapaz de perceber essa diferença – afirma o economista, para quem sua morte foi ‘o último protesto contra a geração mais medíocre de todos os tempos’. – Ele tinha uma inquietação serena, mas deve ter nos deixado num estado de profunda frustração. De seus livros, emerge um Brasil sonhado, com uma saga a ser cumprida. Mas hoje a aventura e a luta por um mundo melhor são renegadas.
Economista da UFRJ, Reinaldo Gonçalves comentou que a obra de Furtado é um marco para o pensamento econômico mundial, inserindo o papel do Estado no processo de desenvolvimento, num arcabouço científico.
– Seus livros são referência seja na Alemanha, na França ou na Suíça. Ele foi o que mais ensinou aos países em desenvolvimento.
Furtado será sepultado hoje às 11h, no Cemitério São João Batista, em Botafogo, no Rio.’
Cristovam Buarque
‘Uma obra e um exemplo’ copyright Jornal do Brasil, 21/11/04
‘Um dos homens que mais contribuíram para fazer do Brasil um país mais rico, hoje faz do Brasil um país mais pobre: morreu Celso Furtado, um dos pais de nosso desenvolvimento. Sua falta empobrece a vida intelectual brasileira. Raríssimos brasileiros deram ao país e ao mundo uma contribuição tão importante.
Formado em um país rural, exportador agrícola, apenas 30 anos depois da abolição da escravatura, no Nordeste brasileiro, Celso Furtado teve uma posição especial para observar o mundo em mutação social e usou seu privilegiado intelecto para entender e para orientar esta mudança. Mais do que qualquer outro, ele percebeu a dinâmica do que acontecia ao redor, entendeu a potencialidade e os riscos desta dinâmica e formulou caminhos para novos rumos que permitissem um desenvolvimento em benefício do povo brasileiro.
Furtado está por trás das melhores interpretações sobre a formação econômica do Brasil, desde nossa origem, no seu clássico Formação econômica do Brasil e nos seus mais recentes trabalhos. Está por trás também dos documentos que deram as bases para o processo da industrialização do Brasil e para o desenvolvimento do Nordeste. E foi um dos que fizeram a arquitetura política e legal que permitiram transformar idéias e ações. Um homem que soube transformar os parágrafos de seus livros em artigos de diários oficiais.
Foi um pensador-ativo, contribuiu com idéias e ações. Seu nome ficará como um dos grandes intelectuais do seu tempo, por meio dos livros, e como um militante, presente nas grandes decisões do Brasil.
Ao lado disso, dele ficará também o exemplo de coerência. Lutou para fazer valer suas idéias, jamais abriu mão delas nem de seus valores. Serviu ao Brasil como pracinha durante a Segunda Guerra, na Itália, foi professor no mundo, autor e político, mas sobretudo dele fica para as próximas gerações o exemplo de como deve se comportar um intelectual, um brasileiro, um cidadão, um homem.
A inteligência brasileira ficou mais pobre, mas a história do Brasil ficou mais rica a partir de hoje. Ao morrer, Celso Furtado deixa menor nossa intelectualidade e maior a nossa história, pela lembrança do que ele fez e pelo exemplo que nos lega.’
Andrea Vialli
‘Cosmopolita, criticava concentração de renda’, copyright O Estado de S. Paulo, 21/11/04
‘Crítico feroz dos juros altos e do crescimento econômico que concentra renda, o pensador Celso Monteiro Furtado, morto aos 84 anos, não chegou a ver o modelo de desenvolvimento que queria para o Brasil, pautado pelas reformas estruturais, geração de emprego e – expressão em moda atualmente – o desenvolvimento sustentado. Paraibano de Pombal e filho de família abastada, ele viu de perto a concentração agrária nos rincões do Nordeste brasileiro, o que era um dos principais fatores do nosso subdesenvolvimento. Tanto que era um defensor do movimento dos sem-terra, ‘um movimento altamente positivo, pois organiza a população rural, que sempre foi frágil e teve pouco conhecimento das coisas’. O advogado, economista, intelectual, membro da Academia Brasileira de Letras e indicado ao Nobel de Economia foi sobretudo um cosmopolita. Após concluir o curso de Direito, em 1944, embarcou para a Toscana, na Itália, como integrante da Força Expedicionária Brasileira, durante a Segunda Guerra. A experiência rendeu seu primeiro livro: Contos da Vida Expedicionária – de Nápoles a Paris. Foi na cidade-luz que se tornou doutor em economia pela Universidade de Paris-Sorbonne, em 1948. No ano seguinte, instalou-se em Santiago, no Chile, para integrar a Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), órgão das Nações Unidas que se tornou a primeira escola de pensamento econômico surgida no Terceiro Mundo. Na década de 50, produziu um estudo sobre a economia brasileira, com ênfase nas técnicas de planejamento, que subsidiaria o Plano de Metas do governo Juscelino Kubitschek. Ainda nesse período, Furtado lançou seu livro mais conhecido, A Formação Econômica do Brasil. Convocado por Juscelino para ser um formulador de políticas de desenvolvimento para o Nordeste, acabou criando a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), da qual foi também superintendente. No breve regime parlamentar de 1962, foi nomeado ministro do Planejamento por um período curto, antes de voltar ao comando da Sudene. Sua carreira política foi interrompida com o Ato Institucional n.º 1, em 1964, que cassou seus direitos políticos por dez anos e o forçou ao exílio em Paris, onde sua veia acadêmica floresceu como nunca. Lecionou na Sorbonne e na Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Com a anistia, na década de 1980, voltou ao Brasil e à vida política, após ter corrido o mundo subdesenvolvido como membro do Comitê para o Desenvolvimento e Planejamento das Nações Unidas. Seus conhecimentos multidisciplinares o levaram para a pasta de Cultura, no governo José Sarney, quando formulou a primeira lei de incentivos fiscais para atividades culturais. Entre 1993 e 1995, foi um dos 12 membros da Comissão Mundial para a Cultura e o Desenvolvimento, da Organização das Nações Unidas para Educação Ciência e Cultura (Unesco). Entre 1996 e 1998, integrou a Comissão Internacional de Bioética da Unesco. Por sua produção literária, em 1997, Furtado foi eleito para ocupar cadeira 11 da Academia Brasileira de Letras, que pertencia ao ex-senador Darcy Ribeiro. Em 2003, tornou-se o primeiro economista brasileiro a ser indicado ao Prêmio Nobel de Economia. Tido como um guru do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, não avalizava a política monetária conservadora da equipe econômica. ‘Eu não faria essa política’, afirmava.’