‘O governo Lula assiste a uma nova tentativa de Mario Garnero, presidente da Brasilinvest, de voltar a ter poder e influência em Brasília, como teve nos anos 70 e parte dos 80. O empresário, que tem um histórico complicado no Banco Central, apresentou ao governo federal uma idéia bilionária para construir ferrovias no país, a ser financiada por uma estatal chinesa. Até agora, ele não recebeu sinal verde de Brasília para seguir adiante, muito embora a desenvoltura com que tem conseguido espaço em comitivas do presidente Lula em suas viagens ao exterior sugere que seu passado de irregularidades no mercado financeiro não constrange as hostes petistas.
Garnero, seus filhos e os executivos que trabalham na Brasilinvest gostariam de ver enterrado o passado conturbado da empresa no Banco Central, que inabilitou Garnero para operar diretamente no sistema financeiro nacional. A punição ainda vigora, mas vence no fim de setembro.
Em setembro de 2002, o Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional, órgão que reúne funcionários do Ministério da Fazenda, do BC, da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e representantes de entidades privadas do setor financeiro, decidiu manter uma punição decretada em 1998. O Conselho, por unanimidade, manteve para Mario Garnero a ‘inabilitação temporária para o exercício de cargos de direção na administração e gerência de instituições financeiras e entidades integrantes do sistema de distribuição do mercado de capitais’. Como a decisão foi publicada no Diário Oficial da União em 30 de setembro de 2002, o prazo aplicado de dois anos vence em menos de dois meses.
O Conselho julgou que Garnero cometeu três irregularidades, consideradas de natureza grave: falta de provisão correspondente a Recibo de Depósito Bancário (RDB); falta de assinaturas em contratos de financiamento; e concessão de empréstimos a empresas do mesmo grupo (operação triangular).
O advogado José Antônio Cardinalli, da Brasilinvest, informou que essa punição de Mario Garnero repete uma condenação que foi anulada pela Justiça Federal do Rio de Janeiro. Ele chegou a recorrer da decisão do BC, mas sua apelação não foi aceita pelo Conselho.
Na sessão de 28 de agosto de 2002 o Conselho decidiu arquivar as punições a outras doze pessoas que acompanhavam Mario Garnero na apelação, mas a condenação deste foi mantida. Cardinalli informou que abriu três ações – uma referente a Mario Garnero e duas envolvendo o antigo Banco Brasilinvest de Investimentos – com o objetivo de anular as condenações aplicadas pelo BC. Os processos tramitam no Superior Tribunal de Justiça e na Justiça Federal e estão à espera de uma decisão final.
Em tese, explicou uma fonte do BC, findo o período de dois anos da inabilitação no final de setembro, Mario Garnero poderia voltar a dirigir instituições financeiras e entidades integrantes do sistema de distribuição do mercado de capitais. Para isso, Garnero teria que pedir autorização ao BC.
Fernando Garnero, presidente da Brasilinvest & Partners e um dos quatro filhos de Mario, diz que não há planos de voltar a ter um banco. ‘Quem sabe mais adiante, nunca se sabe. Se os juros continuarem altos como estão, acho que compensa’, diz, rindo, e em seguida esclarece que está brincando.
Fernando considera o histórico complicado da Brasilinvest ‘uma tremenda bagagem’ para tocar os negócios da empresa. Lembra que começou a prestar atenção nos negócios da empresa justamente quando a liquidação extrajudicial do Brasilinvest S.A. Banco de Investimento foi decretada, em 1985.
‘Cresci e aprendi a trabalhar durante a crise’, diz Fernando. Até quatro anos atrás, afirma, enfrentava ‘um pouco de dificuldade’ para levantar recurso em banco ou fechar negócio com novos parceiros. Mas desde então, diz, o clima para trabalhar tem melhorado.
Fernando é o principal executivo da Brasilinvest & Partners, empresa criada há cerca de 5 anos para ser o braço operacional dos negócios da família Garnero. Além de Fernando, trabalham nela e são sócios mais dois executivos Samsão Woiler e Sanderley Fiusa.
Além dessa empresa, a holding Brasilinvest Empreendimentos e Participações (BEP) ainda tem mais três braços: a CG Invest, encarregada de administrar edifícios; a SPInvest, que tem como sócio o arquiteto Edo Rocha e cuida do projeto de construir uma ferrovia na área metropolitana de São Paulo, passando por cidades vizinhas; e a Brasilinvest Telecomunicações, Informática e Administração de Créditos Ltda. Esta última, segundo Woiler, aluga equipamentos de telefonia ‘herdados’ da NEC do Brasil, empresa de equipamentos de telefonia da qual a Brasilinvest foi dona. ‘É uma empresa do grupo que não deve crescer.’ Woiler anima-se, por outro lado, com a receita futura que, segundo ele, os negócios imobiliários do grupo – em especial, um loteamento em Campinas, um shopping em Miami e hotéis em Cuba – devem gerar nos próximos anos.
Os balanços dos últimos quatro anos da holding mostram uma curva tipo montanha-russa no que se refere a resultado operacional. Em 2000 registrou lucro de R$ 21,7 milhões; no ano seguinte teve prejuízo de R$ 9,2 milhões; em 2002 divulgou um lucro de R$ 167,7 milhões e no ano passado voltou ao vermelho, com R$ 19 milhões.
‘Tivemos prejuízo porque fizemos um acerto de contas entre as empresas. Reconhecemos esqueletos e limpamos o balanço. Neste ano vamos estar no azul. Nossa meta é atingir 20% de rentabilidade do patrimônio líquido’, diz Fernando. O patrimônio líquido é de R$ 296,3 milhões. Fernando diz que tem hoje em carteira projetos, a serem deslanchados, equivalentes a US$ 7 bilhões. Desse total, explica, US$ 2 bilhões podem vir da chinesa Citic, estatal que investe fora da China.
A idéia da Brasilinvest com a Citic é que esta financie a construção de 2,585 mil km de ferrovia, ligando a Ferro Norte (no Mato Grosso) à Norte Sul (em Goiás), subindo até a Ferrovia Carajás (no Maranhão) e um braço indo até o Piauí, com escoamento para os portos de Santos (em São Paulo), Itaqui (no Maranhão), Pecém (Ceará) e Suape (Pernambuco). O Brasil poderia, segue a idéia, pagar a construção da ferrovia mandando soja e minério de ferro aos chineses. Este projeto tem a simpatia do governador do Mato Grosso e maior produtor de soja do mundo, Blairo Maggi, mas até agora não recebeu o sinal verde do governo federal.
A apresentação da idéia da ferrovia à Cetic foi feita pela Brasilinvest durante a viagem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à China, no final de maio, e causou certo constrangimento à delegação do governo, já que não constava da lista de projetos oficiais a serem discutidos com os chineses. Fonte do governo federal que acompanha as discussões com o governo chinês observa que o projeto coordenado pela Brasilinvest ‘interessa aos produtores do Centro-Oeste’, onde já existe muita produção de soja. O governo Lula, segundo a fonte, estaria mais interessado em estimular a soja em outras regiões, do sul do Maranhão para cima.
A Brasilinvest já apresentou sua idéia ao Ministério do Planejamento, que é responsável por selecionar quais projetos o governo brasileiro considera prioritários a serem desenvolvidos com a China. Os técnicos do Planejamento continuam esperando a apresentação de um projeto detalhado.
‘É difícil avaliar uma idéia. A Brasilinvest nos apresentou um conceito, mas precisamos de um projeto, com números’, diz o secretário-adjunto de Assuntos Internacionais do ministério, Alexandre Meira da Rosa. Fernando Garnero diz que em 20 dias o projeto, que está sendo elaborado, segundo ele, com a consultoria de Antoninho Marmo Trevisan, deve estar pronto e será encaminhado ao Planejamento.
Fernando Garnero também esteve, há cerca de vinte dias, com o ministro do Desenvolvimento, Luiz Fernando Furlan. ‘Queremos ver qual é a prioridade do governo. Queremos trabalhar com o governo’, diz Fernando. Seu pai tem repetido que o projeto se adequará ao trajeto indicado pelo governo.
‘Este é o projeto que toma mais tempo e com este virá depois o porto de Itaqui. Os chineses têm interesse em ter um terminal graneleiro lá’, diz Mario Garnero, que também espera fechar novos negócios com o Banco do Nordeste, com o qual organizou em julho seminário em Fortaleza para discutir oportunidades de investimentos no Nordeste do país. Durante a visita de Lula à China, procurada pela imprensa, a direção da Cetic preferiu não se manifestar sobre as informações prestadas pelo Brasilinvest, embora confirme que diretores da empresa que estiveram no Brasil em maio tiveram encontro com representantes da empresa brasileira.
Deslanchar o projeto com a Cetic daria um grande impulso a seus negócios. Na lista de projetos já realizados pela empresa, reunidos num catálogo, os mais recentes datam de 2002 – um empreendimento imobiliário em Campinas e outro com a Ripasa Celulose, para plantar eucaliptos. Entre os projetos recentes que não decolaram, está um prédio de 108 andares no bairro do Pari, em São Paulo. O projeto, lançado em 1999, foi arquivado em 2000. ‘O projeto não deu certo por causa da troca de prefeitos’, disse Woiler. O prefeito Celso Pitta passou 2000 sob ameaça de impeachment e os então candidatos à prefeitura Marta Suplicy e Paulo Maluf não se interessaram pelo projeto. (Colaboraram Mônica Izaguirre, de Brasília, e Catherine Vieira, do Rio)
Cristiano Romero
‘O sindicalista e o empresário com aparência de grã-fino’, copyright Valor Econômico, 9/08/04
‘Mario Garnero e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva conheceram-se no fim dos anos 70. Naquela época, os dois estavam em lados opostos: Garnero presidia a Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores) e Lula, o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo.
A aproximação ocorreu em 1979. Por causa das greves no ABC, o sindicato de Lula sofreu intervenção do governo Figueiredo. Por iniciativa de Garnero, o governo concordou em acabar com a intervenção, desde que a greve fosse suspensa. Para viabilizar o acordo, o empresário avisou ao governo militar que, se o fim da intervenção não ocorresse, ele deixaria a Anfavea.
‘Enquanto fui presidente da Anfavea e Lula presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, conseguimos ‘vencer’ três greves em pleno regime militar. Foi um marco importante nas relações entre trabalhadores e empresas’, lembra Garnero. ‘Desde então, mantivemos uma relação de respeito. Mas não há relação favorecida. (O projeto que apresento) é de interesse nacional. Qualquer governo teria interesse em ter os recursos da Citic’, diz Garnero, referindo-se à estatal chinesa que anunciou em maio, quando o presidente Lula viajou à China, interesse em investir no Brasil.
Nessa viagem o senso de oportunidade de Garnero estava aguçado. Ele apresentou aos chineses a idéia de, com dinheiro chinês, construir linhas de trem no Brasil e pagar a obra com soja brasileira. O governo brasileiro ficou constrangido pois da sua lista oficial não constava essa proposta. Um funcionário do BNDES que integrava a delegação chegou a observar: ‘Garnero pode ficar lá com os projetos dele. Não tem nada a ver com o governo.’ Desde então, Garnero vem tentando adaptar seu projeto às prioridades do Ministério do Planejamento, encarregado de selecionar as obras a serem tocadas em parceria com a China.
Garnero antecedeu o atual ministro da Casa Civil, José Dirceu, na presidência do Centro Acadêmico 22 de Agosto, da Faculdade de Direito da PUC de São Paulo, onde ambos estudaram.
Os dois encontraram-se muitos anos depois por causa de um amigo comum – Luiz Gaspar, empresário brasileiro, radicado em Cuba. Gaspar conhece Dirceu desde a infância. Militante da Aliança Libertadora Nacional, Gaspar fugiu para Cuba no fim dos anos 60. Quando foi trocado, junto com outros presos políticos, pelo embaixador americano seqüestrado, Dirceu exilou-se em Cuba, onde recebeu a ajuda de Gaspar.
Anos depois, Dirceu retornou clandestino ao Brasil e Gaspar permaneceu em Cuba, onde, mais tarde, tornou-se empresário ao ganhar uma concessão do governo de Fidel Castro para construir hotéis na ilha.
Em 2001, o deputado federal Walter Feldman (PSDB-SP), amigo de Garnero, indicou Gaspar à Brasilinvest. Isso permitiu ao grupo do empresário paulista participar de investimentos no setor hoteleiro em Cuba. Esse relacionamento viabilizou a aproximação entre Garnero e Dirceu em 2002, durante a campanha presidencial.
‘Nós pudemos abrir os olhos da comunidade financeira internacional, que o governo Lula seria um governo moderado’, diz Garnero sobre seus contatos nos Estados Unidos no ano de 2002, em que Lula foi eleito presidente.
A relação de Garnero com o ex-presidente George Bush tem mais de 20 anos. Desde 1981, o empresário paulista participa de um dos mais influentes convescotes da política americana – o World Forum, criado pelo ex-presidente Gerald Ford e realizado anualmente em Beaver Creek, um resort turístico do Colorado.
Participam do Fórum apenas 70 pessoas, a maioria, personalidades do mundo político e econômico americano. Garnero é o único brasileiro com assento permanente no encontro.
Foi lá que Garnero conheceu personalidades como Bush pai e Dick Cheney, o atual vice-presidente dos Estados Unidos. O empresário paulista cultiva os americanos, no entanto, desde os anos 60. Ainda como presidente do Centro Acadêmico 22 de Agosto, ele mandou carta ao presidente John Kennedy, convidando-o para dar uma palestra na Faculdade de Direito da PUC.
JFK, claro, declinou do convite, mas pôs seu irmão Robert Kennedy, então ministro da Justiça dos EUA, em contato com Garnero. A carta rendeu frutos: em 1965, já como senador, Bob Kennedy visitou o Brasil, a convite de Garnero. Naquele ano, o empresário fundou o Fórum das Américas, um centro de debate dedicado à aproximação entre Brasil e EUA.
Em 1976, a inauguração do edifício onde fica a sede do Brasilinvest em São Paulo foi prestigiada pelo presidente Gerald Ford. ‘Como se vê, a relação dele com os EUA começou com os democratas e continuou com os republicanos’, comenta um auxiliar de Garnero. No site do Brasilinvest, na Internet, Garnero é apresentado como empresário, político, patrono das artes, filantropo e diplomata.
Uma das descrições mais certeiras sobre a figura de Garnero é a do jornalista Elio Gaspari no livro A Ditadura Encurralada, lançado neste ano. Garnero, aos 37 anos e ocupando a presidência da Anfavea, ‘tinha vocação de palaciano, o gosto por eventos e a aparência de grã-finos que sempre parecem ter saído do barbeiro’. (Colaboraram André Vieira e Cynthia Malta, de São Paulo)’