Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Daniel Buarque

‘Ele tem apelo popular, um público fiel, vende bem e já se constitui em uma fatia importante dos catálogos das editoras nacionais, tanto grandes quanto pequenas. Mas as razões para o sucesso do gênero biográfico no país são, em parte, discordantes, segundo a opinião de diretores editoriais, críticos literários e biógrafos ouvidos pelo Mais!.

Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, diz que o gênero vem crescendo nos últimos anos em todo o mundo. ‘O diferencial é que ele sempre foi sucesso no mundo e está crescendo no Brasil especialmente desde os anos 1990’, diz.

‘Sempre vale a pena investir em biografias’, diz Schwarcz, cuja editora publicou os ‘blockbusters’ Ruy Castro e Fernando Morais. ‘O problema é que custa caro investir, mas o resultado sempre tende a ser muito bom .’

Para Luciana Villas-Boas, da Record, não é qualquer biografia que desperta o interesse do público, a qualidade não é sinônimo de sucesso editorial e o gênero não é muito fácil de trabalhar. ‘Já fizemos obras de qualidade, elogiadas pela crítica, mas que fracassaram junto do público.’ Apesar de não parecer satisfeita, ela cita grandes vendagens da editora -’São Francisco de Assis’, de Jacques le Goff, vendeu mais de 20 mil exemplares- e tem programados para 2005 os lançamentos de quase uma biografia por mês.

Carlos Augusto Lacerda, da Nova Fronteira -que vendeu mais de 50 mil exemplares de ‘Churchill’, de Roy Jenkins -, diz também não ver um crescimento específico do mercado de biografias. ‘A biografia é um estilo quente, mas a tendência de crescimento não é nova’, diz.

Paulo Roberto Pires, da Ediouro, diz que o mercado é seguro, mas afirma que já se venderam mais biografias no país.

Já a crítica literária Nádia Gotlib, diz que há uma expansão do mercado devido a um ‘recrudescimento do interesse mais pelo contexto do que pela vida íntima do personagem’.

Para Angel Bojadsen, da Estação Liberdade -uma editora pequena se comparada às gigantes anteriores- , há, sim, um crescimento desse mercado. Após o que considera um sucesso das três principais obras lançadas pela editora, que venderam 2.500 exemplares em média -como a bem cuidada ‘Carlos Magno’, de Jean Favier -, Bojadsen se diz seguro para editar outras: ‘Essa vendagem já cobre os gastos e permite trabalhar com alguma folga.’

Para Villas-Boas, um diferencial da biografia está no fato de o gênero ser um fértil terreno na produção literária brasileira. ‘A imprensa forma bons autores de biografias no Brasil’, diz, citando os jornalistas Fernando Morais e Ruy Castro.

Biógrafo profícuo, Castro define o gênero como um híbrido entre a literatura e o jornalismo. ‘O método de apuração é jornalístico, mas o estilo permite um esmalte de literatura que torna o texto mais interessante’, diz. Segundo ele, o lado da pesquisa define a qualidade do livro. ‘Quanto mais bem apurada, melhor.’

O escritor Zuenir Ventura, autor de ‘Chico Mendes’ e ‘1968 – O Ano Que Não Terminou’, acredita que o mais importante é focar no protagonista, em torno do qual tudo deve girar. ‘É um gênero difícil porque é preciso encarnar o personagem ‘, diz. Ele discorda de Castro, alegando impossível ser objetivo. ‘A biografia é tanto do biografado quanto do escritor, e o retrato é resultado da visão do biógrafo.’

Os críticos e escritores ouvidos pelo Mais! dividem o gênero em duas ou até três categorias.

O novo estilo é mais autoral e mescla a biografia com a autobiografia do escritor, diz a crítica paraense Lilia Silvestre Chaves, que está lançando ‘Mário Faustino – Uma Biografia’ (400 págs., R$ 40,00, ed. da Secretaria de Cultura do Pará, tel. 0/ xx/91/219-1218), sobre o poeta piauiense radicado em Belém (PA) e autor de ‘O Homem e Sua Hora’ (Cia. das Letras), morto em 1962 num acidente aéreo nos Andes.

Para ela, ‘agora entra uma pessoa a mais no texto, o biógrafo. Eu não deixo de participar da biografia, porque ela se mistura com a minha própria vida’.

Segundo Chaves, ‘há momentos em que o biógrafo precisa preencher lacunas na realidade pesquisada, e o faz com a ficção. É ficção, mas poderia ter acontecido. É uma interpretação baseada em documentos, criando pontes metafóricas’, diz.

Para Gotlib, o importante numa biografia é não se prender apenas a fatos, mas usá-los a serviço da construção do personagem. ‘A biografia deve ser o menos ficcional possível, mas se questionar até onde a liberdade da construção do personagem é ficção’, diz.

Silviano Santiago, da Universidade Federal Fluminense, vê uma revolução no gênero nos últimos 30 anos. A biografia está deixando de lado as fórmulas para se fortalecer como um gênero autoral. ‘Não é uma biografia necessariamente organizada a partir de documentos e em busca do que chamam de objetividade, mas que rompe com rótulos e o modelo do romance burguês do século 19 -diferentemente da chamada biografia ‘canônica’.’

Para ele, o primeiro ponto é a subjetividade. ‘O relato da vida do outro não é compartimentado como sendo do outro, mas fica híbrido entre o biógrafo e o biografado. O importante é ter a coragem de ficcionalizar o outro.’

Eneida Maria de Souza, da Universidade Federal de Minas Gerais, crê que as biografias devem se preocupar menos com furos e buscar um texto mais livre, refinado e autoral.

Tentando tornar o gênero literário mais democrático, Chaves reforça um ponto unânime entre os críticos e arremata: ‘São dois estilos [o jornalístico e o da crítica] diferentes, mas que coexistem havendo espaço no mercado editorial para ambos, cada um com sua importância.’’

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‘Para Morais, ‘liberdade é ilimitada’’, copyright Folha de S. Paulo, 5/12/04

‘Um dos principais biógrafos brasileiros, o jornalista Fernando Morais é autor de alguns dos relatos de vida mais vendidos no Brasil: ‘Chatô -O Rei do Brasil’, sobre o jornalista Assis Chateaubriand vendeu mais de 225 mil exemplares. ‘Olga’, sobre a militante comunista, mulher de Luís Carlos Prestes, Olga Benário, enviada pelo governo de Getúlio Vargas para a Alemanha nazista -onde morreu num campo de concentração em 1942 e cuja trajetória foi transformada em filme por Jayme Monjardim-, vendeu mais de 140 mil cópias e voltou a freqüentar as listas dos mais vendidos.

Atualmente Morais (1946) se encontra envolvido em três projetos, como disse em entrevista ao Mais! por e-mail e telefone. Ele pesquisa há mais de oito anos a vida do senador baiano Antonio Carlos Magalhães (PFL), já redige um livro sobre a vida do Marechal Casimiro Montenegro Filho e finaliza um outro, sobre o publicitário Washington Olivetto.

O que faz uma boa biografia? Um bom personagem, uma pesquisa exaustiva e depois escrever, reescrever, ‘trescrever’ cada palavra, até ficar bonito, atrativo, sedutor.

Até onde vai a liberdade do biógrafo em relação aos fatos apurados? Minha liberdade como biógrafo é ilimitada. Coloco nos meus livros o que apurei e que acredito ser verdadeiro, e costumo colocar mais de uma opinião quando se trata de uma fato importante, e existem opiniões diferentes. Quando ‘desenterro um defunto’, faço todo o esforço para que ele volte a andar o mais parecido possível ao que ele era quando estava vivo. Independentemente do juízo que eu faça do que foi a vida dele. O leitor é que tem que tirar uma conclusão e formar um juízo a respeito do personagem a partir do maior volume de informações possível.

Como o sr. escolhe os biografados? Não existe uma receita. Se tivesse que escolher um só ingrediente, eu diria que me encantam principalmente os personagens cuja história revele fatos novos da História.

Como está seu projeto de biografia sobre Antonio Carlos Magalhães? Faz oito anos que comecei a trabalhar no projeto da biografia do senador. Ainda não comecei a entrevistar amigos, inimigos, políticos, gente que conviveu com ele. O grande diferencial a favor, ao escrever sobre alguém vivo, é o privilégio de ter o acesso ao personagem em primeira mão. ‘Olga’ e ‘Chatô’ teriam sido livros muito melhores se eu tivesse tido a possibilidade de conviver, uma semana que fosse, com cada um deles. O diferencial contra é que este livro parece não ter fim. A cada semestre o personagem me dá um capítulo novo.

Como fica a relação entre o escritor e o personagem biografado após muito tempo de convivência? É possível conseguir ser imparcial, não se envolver. Antonio Carlos Magalhães é um personagem polêmico e talvez por isso mesmo tenha me atraído, assim como Chateaubriand. O interesse que tenho por ele é pelo personagem, pelo que ele vem, ao longo dos últimos 50 anos, não só testemunhando mas protagonizando na política brasileira.

O que o sr. achou da adaptação de ‘Olga’ para o cinema? Gostei muito. Aliás, eu e o povo brasileiro, já que o filme está chegando aos 4 milhões de espectadores.

Que biografias o sr. considera mais importantes na literatura mundial? É difícil responder, mas vêm à memória pelo menos duas que me marcaram muito pela qualidade: ‘Che Guevara – Uma Biografia’ [Objetiva], de Jon Lee Anderson, e ‘O Rei do Mundo’ [Cia. das Letras], de David Remnick. Recentemente li uma excelente biografia do marechal Castello Branco, escrita pelo cearense Lira Neto [‘Castello – A Marcha para a Ditadura’, ed. Contexto].

Há algum outro projeto a que o sr. se dedique atualmente? Estou trabalhando na biografia do Marechal Casimiro Montenegro Filho [1904-2000], um personagem fascinante. Um homem que teria feito cem anos neste ano se estivesse vivo e que, 50 anos atrás, acreditou que o Brasil poderia se tornar uma potência aeronáutica. Devo terminar este projeto no ano que vem. Também estou dando um ponto final no livro sobre o publicitário Washington Olivetto e a W/Brasil, ‘Made in Brasil’, que deve sair no início do próximo ano pela ed. Planeta.’



Walnice Nogueira Galvão

‘Heróis de nosso tempo’, copyright Folha de S. Paulo, 5/12/04

‘O novo biografismo surgiu nos anos 70, quando os autores passaram a vasculhar desvãos e personagens mais enigmáticos. Aos poucos, vão resultando livros estimulantes, baseados em pesquisas que iluminam celebridades da terra, tais como militantes e políticos, cantores e músicos, artistas, ídolos do futebol etc. Tem uma origem específica, apesar de transbordar posteriormente desse estreito vale: o resgate da saga da esquerda, duramente reprimida pela ditadura militar de 1964.

Avultam à época o memorialismo e o romance-reportagem, como que ladeando o biografismo, com ambos demarcando fronteiras às vezes flutuantes. O memorialismo, há tempos praticado no país, daria todavia um salto de qualidade com a monumental obra em seis volumes de Pedro Nava [relançados pela ed. Ateliê]. Surgindo num momento em que a literatura andava em baixa, fincaria um padrão de qualidade que as obras ficcionais coevas não atingiam. A prosa modernista e uma grandiosa cultura geral, quadro no qual Proust é freqüentemente invocado, são perceptíveis em sua pena. No âmbito das letras, é a maior realização dos anos 70.

A obra de Nava assinala uma das duas linhas do memorialismo, à época: de um lado o memorialismo dos velhos, de alto nível estético; e de outro lado o memorialismo dos jovens, que na primeira mocidade já têm experiências terríveis para contar, de tortura, cárcere e exílio. O primeiro desses livros a surgir, e que permaneceu como uma espécie de carro-chefe, é ‘O Que É Isso, Companheiro?’ (1979, Cia. das Letras), de Fernando Gabeira.

Contemporâneo do memorialismo é o romance-reportagem, no qual acontecimentos atuais de impacto jornalístico ligados a crimes e criminosos são submetidos à ficcionalização. O romance-reportagem desenvolve um discurso muito próximo do jornalismo: sensacionalismo, ângulo de terceira pessoa, linguagem desataviada sem evitar o lugar-comum etc. O gênero continua atual. Drauzio Varella, autor de ‘Estação Carandiru’ (1999, Cia. da Letras), ficou famoso, ganhou talk-show na televisão e se tornaria uma autoridade midiática em assuntos de saúde.

Traços do memorialismo e do romance-reportagem permeariam o biografismo. Do memorialismo, a experiência pessoal: os autores escrevem sobre vidas que lhes são próximas e com as quais se identificam, de uma maneira ou de outra. Do romance-reportagem: ao fazer uma biografia, delimitam uma área e tratam de investigá-la minuciosamente, operando sua cartografia social e humana.

A origem desses livros, aliás, está numa grande reportagem, ‘A Ilha’ (1976, Cia. das Letras), do jornalista Fernando Morais, até hoje cultor do biografismo e notável por seu pioneirismo. A ‘ilha’ é Cuba, assunto tabu à época, mas que despertava curiosidade e simpatia entre nós.

Em 1981, viria à luz ‘Morte no Paraíso’ [Rocco], do jornalista Alberto Dines, sobre a vida e o suicídio de Stephan Zweig. Depois publicaria ‘O Baú de Abravanel’ (1990), inesperada biografia de Sílvio Santos. Ainda escreveria ‘Vínculos do Fogo’ (1992) [ambos pela Cia. das Letras], sobre Antonio José, o Judeu.

De certo modo, ao privilegiar protagonistas judeus, Dines vai tratando de sua aclimatação entre nós. Uma peça a mais nesse xadrez seria ‘Iara’ (1991, Rosa dos Tempos), da jornalista Judith Lieblich Patarra, focalizando a bela e fervorosa guerrilheira Iara Iavelberg, que se tornaria a companheira de Lamarca e perderia a vida antes dos 30 anos.

Logo depois do Zweig de Dines, temos o modelar ‘Olga’ (1985), de Fernando Morais, que narra a tragédia de Olga Benário, a judia alemã emissária do Komintern que foi mulher de Luís Carlos Prestes. Numa peripécia sempre sussurrada, mas pouco elucidada, foi entregue, depois de presa pela polícia política do ditador Vargas, e grávida, aos nazistas, em 1936. Daria à luz uma filha na prisão e pereceria na câmara de gás, em 1942. ‘Olga’ atingiu tiragens de cerca de 140 mil exemplares.

Dois traços definem os inícios do novo biografismo: em primeiro lugar, versaria a vida ou de brasileiros ou de pessoas de interesse vital para a história do Brasil; em segundo, defenderia causas libertárias. Teria muito a ver com a necessidade de urdir a crônica dos tempos próximos, enquanto o recuo azado à historiografia demorasse a se instalar. O fato de vários deles tornarem-se best-sellers foi uma benesse a mais.

Dois outros exemplos procedem da pena do jornalista Zuenir Ventura. Um é ‘1968 – O Ano Que Não Terminou’ (1998, Nova Fronteira), dedicado a nosso Maio de 68, de que o autor foi participante, tendo acabado preso. O outro é ‘Chico Mendes -Crime e Castigo’ (2004, Cia. das Letras), reportagens realizadas nos anos 80 e completadas 15 anos após o assassinato do líder.

A crônica da resistência à ditadura militar de 1964 ainda obceca os brasileiros. E certamente muito anos se passarão antes que seu processo possa ser encerrado. A abertura, há poucos anos, dos arquivos do Dops já viabilizou novas pesquisas, enquanto outros arquivos permanecem trancados. Ao jornalista investigativo Percival de Souza devemos um olhar original, que perquiriu o lado de lá, ao focalizar, entre seus muitos livros, o cabo Anselmo e o delegado Fleury.

Trabalhos, depoimentos, testemunhos, ensaios críticos, teses, tratados, biografias, ainda virão a público. Marighella e Lamarca, bem como Luís Carlos Prestes, já foram biografados, a exemplo de vários outros militantes e guerrilheiros. Mas ainda falta muita gente.

Aquilatando sua importância, o jornalista Elio Gaspari, que passou 30 anos coletando documentos e fazendo entrevistas, está pondo o ponto final numa monumental história do período, em cinco volumes. Já saíram ‘A Ditadura Envergonhada’ (2002), ‘A Ditadura Escancarada’ (2002), ‘A Ditadura Derrotada’ (2003) e ‘A Ditadura Encurralada’ (2004), enquanto aguardamos o quinto e último.

Jornalismo e futebol

Depois de ‘Olga’, Fernando Morais se dedicaria a radiografar a complexa personalidade daquele que foi um reputado empresário da imprensa, em ‘Chatô – O Rei do Brasil’ (1994), apelido de Assis Chateaubriand, sempre às voltas com negociações escusas e um dos mais poderosos homens de seu tempo, a quem todos, até presidentes da República, temiam. Ainda outro, ‘Corações Sujos’ (2000), investiga um intrigante episódio de nossa história, só agora esclarecido, em que imigrantes japoneses organizaram uma sociedade secreta, a famigerada Shindo-Remei, que justiçava os ‘traidores’, ou seja, os que acatavam a derrota e não acreditavam na vitória do Japão na Segunda Guerra.

Dentre os vários do jornalista Ruy Castro, ressalta a biografia do jogador de futebol Garrincha, intitulada ‘Estrela Solitária’ (1995): um gênio do esporte, cuja conduta ingênua, isenta de uso do mundo, deu origem a toda uma saga de anedotas. A suas pernas de subnutrido, tortas e defeituosas graças à fome que passou na infância, atribuíam-se os milagres que operava em campo.

Contrastando, ‘Chega de Saudade’ (1990) volta-se para o perfil coletivo do grupo de compositores e cantores que criou a bossa nova, centrado na figura de João Gilberto; teria continuação em ‘A Onda Que Se Ergueu no Mar’ (2001). Nesse mesmo ano sairia ‘Ela É Carioca -Biografia de um Bairro’: uma enciclopédia em verbetes sobre Ipanema, suas garotas, suas músicas, seu folclore, suas celebridades e excentricidades, suas personalidades típicas, seus bares, seus artistas, sua fauna bizarra, sua vida boêmia.

Outro é ‘O Anjo Pornográfico’ (1992), focalizando o dramaturgo Nelson Rodrigues, pessoalmente desbocado e sempre citado pelas fórmulas de impacto que divulgava em suas matérias jornalísticas, pelas posições direitistas e pela vida cheia de peripécias.

Ao jornalista Humberto Werneck devemos um trabalho na área mais propriamente das letras, ‘O Desatino da Rapaziada’ (1992, Cia. das Letras), biografia grupal, uma reconstituição do ambiente entre literário e jornalístico de Minas Gerais nas décadas que se seguiram ao modernismo, com ênfase na trajetória pessoal dos protagonistas, alguns dos quais, a exemplo de Carlos Drummond de Andrade e Guimarães Rosa, se contam entre os mais importantes de nossos escritores, nenhum deles ainda biografado. Para obter material, o autor entrevistou a maioria deles.

Inaugurando uma ramificação do gênero de muito futuro, o projeto editorial Camisa 13 [da Ediouro] propõe biografias dos 13 principais clubes de futebol.

Ruy Castro, o campeão do biografismo, responsabilizou-se pelo Flamengo; o crítico de cinema Sérgio Augusto, pelo Botafogo; Sérgio Motta, pelo Fluminense. Esses três foram publicados em 2004, mas o projeto vai a todo vapor, já tendo anunciado todos os autores e clubes. Cada um deles foi entregue a um torcedor, e todos escrevem com a paixão que é seu apanágio.

Essas narrativas não se transformam propriamente em ficção, mantendo antes uma voz objetiva, mais próxima do jornalismo. Entretanto tais livros são bem menos sisudos que as biografias oficiais, em geral panegíricas, ou as teses. Descartam uma certa solenidade, típica do gênero; em contrapartida, por vezes acolhem versões fantasiosas, pouco comprováveis. Mas o fato de seus autores serem jornalistas, mestres de uma escrita fluente e vivaz sem dificuldades de leitura, incorporando técnicas ficcionais como o monólogo interior e o retrocesso, ou ainda a reconstituição puramente imaginária de diálogos, torna indistintas as fronteiras entre os dois domínios.

Ao que tudo indica, a evolução do jornalismo está expulsando profissionais, especialmente aqueles mais ligados ao campo cultural ou intelectual, que então empregam seus talentos no biografismo. A isso associa-se a expansão do mercado editorial nos anos 90, quando se multiplicou o número de editoras pequenas e médias.

O êxito de mercado e as altas tiragens que alcançam obrigam à cogitação de que seu condão possa se beneficiar de ainda outro ingrediente ficcional. De fato, parece ter migrado para o biografismo aquilo que tornava atraente o romance do século 19, ao privilegiar um herói e os anos de sua formação, e que acabou por desaparecer no século seguinte, quando as vanguardas tenderam a eliminar o enredo.

Dessa maneira, a ficção oitocentista abria as comportas à vivência vicariante, preenchendo funções psicológicas e sociais de relevância, cujas virtualidades poderiam ter-se refugiado hoje, no que concerne à leitura, nas modalidades biográficas. Enquanto isso, nos lançamentos das editoras diminui o número de romances e aumenta o de biografias.

Neste rápido levantamento do novo biografismo divisam-se certas constantes, como, por exemplo, as já mencionadas de que seus autores são jornalistas profissionais e a de que se tratou inicialmente de um resgate da saga da esquerda, recalcada pela ditadura. O sucesso do gênero já deu origem a uma linha de subprodutos, menos interessantes, privilegiando empresários, políticos, esportistas ou temas pitorescos, amiúde feitos apressadamente e sem a verve que caracteriza o novo biografismo. Mas ao longo do percurso muita coisa foi mudando, e outras constantes há, sobretudo no que concerne à escolha dos objetos.

Em primeiro lugar, e disparado, confirma-se a posição fora do comum que a música popular ocupa na vida dos brasileiros: a maior freqüência é de figuras ligadas a essa área. Já ganharam livros Carmen Miranda, Pixinguinha, Noel Rosa, Ary Barroso, Lamartine Babo, Baden Powell, Mário Lago, Luiz Gonzaga, Cazuza, Cauby Peixoto, João Gilberto, Adoniran Barbosa, Aracy de Almeida, João do Vale, Orlando Silva, Elis Regina, o Clube da Esquina e a bossa nova; dentre os eruditos, Villa-Lobos. Os mais populares e pitorescos, até mais de um, como é o caso de Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes.

Adaptações

Em segundo lugar, vêm os políticos, como Ulysses Guimarães ou Carlos Lacerda e, dentre eles, os presidentes da República. E o imperador d. Pedro 2º. Já ganharam biografias Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Tancredo Neves, Fernando Henrique Cardoso e Luís Inácio Lula da Silva. Estes dois últimos foram até agraciados com um mesmo livro, que coteja as vidas de ambos.

Em terceiro lugar, estão os próprios jornalistas (Chateaubriand, Davi Nasser, Samuel Wainer, Paulo Francis, Nelson Rodrigues, Roberto Marinho, por enquanto só os mais poderosos ou polêmicos) e personalidades do teatro ou do cinema (Glauber Rocha, Dercy Gonçalves, Cacilda Becker, Cleide Yaconis, Lelia Abramo, Procópio Ferreira, Humberto Mauro, Anselmo Duarte, Mazzaropi, Ruth de Souza, o crítico Paulo Emílio Salles Gomes).

Constituem exceção as biografias dedicadas a alguém fora desses três grupos, como as de Portinari e de Tarsila do Amaral. Infelizmente, as biografias literárias estão nesse caso. Afora nomes que monopolizam os trabalhos, como Machado de Assis e Euclides da Cunha, poucas há, e não seduzem as teses universitárias, embora ultimamente surjam indícios de reversão dessa tendência.

Cecília Meireles e Mário Faustino foram há pouco contemplados, e, Clarice Lispector, com várias; mas também constituem exceção, e alguns dos mais importantes escritores do século passado ainda aguardam o privilégio.

É de notar que o novo biografismo, ao contrário das obras propriamente literárias, constitui uma fonte para o cinema e a televisão que ainda está longe de se esgotar, em adaptações para filmes de ficção destinados ao cinema, documentários e docudramas para TV bem como séries televisivas, alimentando outros circuitos da indústria cultural.

Nisso, suplantam a literatura propriamente dita. Por isso mesmo, seus autores não são basicamente escritores de literatura do tipo tradicional, mas antes jornalistas desdobrados em roteiristas de cinema e televisão, bem como autores de telenovela, o que certamente pesa sobre a maneira de escrever. Walnice Nogueira Galvão é professora titular de literatura na USP e autora de, entre outros livros, ‘No Calor da Hora’ e ‘Guimarães Rosa’ (Publifolha).’



MEMÓRIA / CELSO FURTADO
José Celso Martinez Corrêa

‘Celso Furtado e a estrutura do levanta Brasil do Oficina’, copyright Folha de S. Paulo, 1/12/04

‘A morte de Celso Furtado me deixou muito abalado.

Eu estava duro e ao mesmo tempo preocupado de não deixar a trincheira do computador escrevendo ‘A Luta’, mas quis muito pegar um avião e ir ao enterro, no Rio de Janeiro. Era amigo dele e da mulher, Rosa.

Eu acho que o site deve trazer uma foto dele urgente, revelando que, enquanto ministro da Cultura – depois de a secretaria do Estado de São Paulo se recusar a colocar dinheiro nas obras do Teatro Oficina e de o Maluf ter oferecido continuar nos dando dinheiro – ele entrou em cena e mandou o Fábio Magalhães, um pintor de São Paulo, muito bom e muito amigo, se oferecer para o ministério para concluir as obras do Oficina. Veio da parte dele inteiramente!

Uma vez em Lisboa, tomei um ácido ‘Orange Califórnia’ e fui me encontrar com ele, que estava lá também exilado, acho que na Fundação Gulbenkian.

Olhos nos olhos. Ele tinha belíssimos olhos verdes. Era um homem lindo. Eu estava na contra luz, e o sol era um lugar ao ar livre. Iluminava todo o rosto quadrado, imenso, cinematográfico dele.

Uma cara forte, bronzeada, de jagunço, com a face esculpida em pedra, rosada e bege; uma entidade que trazia em si A TERRA, O HOMEM E A LUTA, com uma coisa de réptil, de cobra, de bicho forte coriáceo.

Eu estava lisérgico, mas os alucinógenos sempre me deixam muito lúcido e apaixonado. Tive o privilégio de estar e falar com ele, ele na terceira dimensão, a do terceiro olho do teatro, como diz Nietzsche, numa viagem que evidentemente o contagiou pela energia laranja que nos envolvia, ampliada pelo sol.

Viajamos muito na cultura brasileira e na sua relação doce e direta com a economia.

O ácido, sem que ele percebesse, porque não sabia que eu estava naquele estado, nos uniu.

E, como eu conhecia muito a obra dele, e ele gostava muito de arte, fomos longe.

Foi um desses encontros que o [George Ivanovitch] Gurdjieff fala, no cosmos da vida, decisivos, sagrados, como um que tive com o João Gilberto em Nova York, tomando cogumelo de peiote do México.

Celso Furtado estruturou meu pensamento anticolonial, me passou uma visão de ferro das possibilidades de vencermos o subdesenvolvimento por meio de uma engenharia para a economia que partisse de uma visão cultural para o ser ‘trans-humano’, ligada ao mercado interno, ao estilo e à criatividade de nossos quadros, quer dizer, a melhor herança que nossos pais nos deixaram: Lina [Bo Bardi], Darcy Ribeiro, Oswald [de Andrade], em termos desse assunto que hoje obsedia o mundo.

Mas, no caso dele, muito específico porque sabia que os esquemas covers internacionais vindos de Breton Woods não eram metafísicos, divinos, absolutos e que a América Latina podia e pode, por seu território, cultura, formação, sua arte, criar outra economia. Por isso era tão querido internacionalmente.

Ele tinha muito de João Cabral [de Melo Neto], o mesmo rigor de pedra para construir outra pedra que certamente não era a de Pedro. Rocha Viva! As pedras de Euclides e de Nelson.

Pois não é que este poeta da economia nos ofereceu por meio do Ministério da Cultura a coluna dorsal, quer dizer, a estrutura do Teatro Oficina, as estruturas todas de ferro?!

Até então estávamos na fase do buracão, vindos da fase da desconstrução. Seu ato como ministro da Cultura deu o sentido de erguer a obra, o sinal positivo construtivista. Levantar as novas estruturas, erguer a coluna dorsal, como ele quis fazer com o Brasil.

Impedido primeiro pelo golpe de 64, depois pela política do liberalismo trazido pelo golpe.

E agora pela submissão à cultura que vitoriou o Bush: o fetiche do sistema econômico imutável. O vodu.

Ele já tinha provado que era possível. Ele e a Conceição [Tavares] que estava sinceramente comovida no enterro. Como gosto dela!

Depois ele achava que era estranho o próprio Estado de São Paulo não investir no Teatro Oficina, e tentou fazer com que isso acontecesse, mas a secretária de Cultura era a atriz Bete Mendes, que dizia que, por ser atriz, não podia representar os interesses dos artistas, seria como advogar em causa própria, ela tinha de servir o Estado?!

Mas não importa. Ele deu a estrutura para o nosso segundo nascimento, como creio que sua obra nos lega o mesmo para a estrutura que poderá levantar o Brasil, fora da posição de dominado.

Sua obra ainda -como a de Oswald, Lina, Darcy, Hélio Oiticica, Glauber [Rocha]- tem muita energia a dar para conquistarmos o Brasil que ele e nós sonhamos.

Celso é um Euclides [da Cunha] da ‘economia-arte’, e um inspirador desta luta para montar ‘Os Sertões’, mais difícil do que, às vezes acho, a Guerra de Canudos.

Temos um vídeo de uma visita dele ao teatro, num tempo que não tínhamos cimento no chão, somente terra enlameada.

Ele era sempre muito elegante. Veio muito bem vestido e acompanhado de mulheres do ministério, como uma querida atriz mineira, Priscila, que tinha os saltos muito altos. Rosa, sua mulher (eram recém-casados), também estava de saltos.

É lindo o vídeo. Marcelo [Drummond] filmou: todos atolando-se com os sapatos chiquérrimos na lama, subindo as estruturas, mas sem perder o humor.

Priscila, assessora dele, a atriz, ficou louca e começou a atuar. Foi uma tarde histórica.

Vou assinar, por causa do meu xará, Celso ExCelso José Celso Martinez Côrrea. Viva Celso Furtado!

PS: Ele dizia uma coisa muito linda. Que o candomblé era uma obra de arte, mais lindo que a cosmologia e as obras todas de Proust que, para ele, era o máximo onde um escritor podia ter chegado. Me mandou também para Paris no ano do século de Stanislavski, num encontro mundial no Beaubourg, em 1990. Só tenho amor por essa vida que em mim continua.

Merda!

José Celso Martinez Corrêa é diretor de teatro’