‘Dizem que vivemos na Sociedade da Informação, na Economia do Conhecimento e outros termos em maiúscula que tentam definir esta Era em que a capacidade de criar ou renovar sistemas e produtos tem peso relativo muito maior, como ilustra a tecnologia do dia-a-dia. Mas também vivemos numa conjuntura em que os intelectuais, paradoxalmente, nunca foram tão pouco influentes, tão pouco relevantes. Intelectuais não são aqueles super-eruditos acadêmicos que escrevem para poucos; são professores, cientistas, jornalistas, escritores e artistas que trabalham com idéias e as deveriam lançar para debate público. Eles continuam a existir, mas de forma cada vez mais comodista e limitada, eclipsados por uma mídia – a começar pelos que nela trabalham – em que impera o fútil e o superficial, em que tudo é reduzido a sentimentos.
Essas também são as opiniões de dois livros que leio agora: Where Have All the Intellectuals Gone?, de Frank Furedi (Continuum), e Representações do Intelectual, de Edward Said (Companhia das Letras, tradução Milton Hatoum). Furedi, sociólogo na Inglaterra e um dos 72 colunistas escolhidos pelo site Arts & Letters Daily (www.aldaily.com), tem passagens ótimas sobre o filistinismo contemporâneo, a aversão ao debate sério, a pregação contra a ‘alta cultura’ e a formação liberal. Critica o elitismo que supõe que a democratização da cultura implica sua banalização, tanto quanto o populismo que nivela tudo por baixo em nome da ‘inclusão social’. Said, o conhecido autor de Orientalismo, morto em 2003, defende nessas conferências de 1994 a condição naturalmente exilada e amadora dos intelectuais, a necessidade de que eles se ponham à margem das convenções e dos modismos. E também ataca os intelectuais que se acomodam em cargos e especialidades, fugindo ao dever de transcender fronteiras nacionais e temáticas.
Não que eu concorde com tudo. Said, por exemplo, cita Noam Chomsky e Gore Vidal como dois intelectuais americanos ‘dissidentes’. Mas são muito populares também e argumentam sempre do ponto de vista de uma ideologia anticapitalista. É certo que essa economia oligopolizada, de grandes corporações mundiais, cria distorções sociais e políticas, porque age para manipular o poder e anular a concorrência. Mas é em nome da sociedade aberta – onde a competição privada e a liberdade de expressão são defendidas a todo custo por sua capacidade de ofertar diversidade – que se deve lutar. Furedi também exagera ao dizer, como Russell Jacoby em Os Últimos Intelectuais (1987), que o sumiço dos livres-pensadores da cena pública foi causado pela imposição de uma agenda social por educadores e artistas. O domínio do discurso antiintelectual é resultado de uma combinação de todos esses fatores.
De qualquer modo, fiquei pensando no que ambos diriam do Panorama Intelectual Brasileiro (PIB). Com exceções, os intelectuais pátrios sofrem dos mesmos males que apontei outro dia nos comentaristas esportivos, por mais antiintelectuais que estes sejam – ou por isso mesmo -, como o nacionalismo (brasileiros são uma raça superior ou inferior porque ‘mistura de todas as raças’), o emocionalismo (herói num dia, vilão no seguinte; vide Lula) e o reducionismo (americanos e europeus são reprimidos, fazem sexo com culpa, skindô, skindô). Com isso, não realizam sua tarefa básica de se destacar dos lugares-comuns, dos mitos conformistas de seu ambiente. E expressam isso, antes de mais nada, em sua ignorância do que é o capitalismo moderno.
Os professores de ciências humanas, os cronistas de jornal e os artistas ‘engajados’, por exemplo, mal conseguem disfarçar sua pouca familiaridade com a economia e as ciências. Acreditam, como os defensores do Fórum Social, aquele que tem Hugo Chávez como herói ideológico, que a riqueza dos países desenvolvidos vem da espoliação dos mais pobres e que o problema é a falta de um Estado ‘socialmente orientado’, conduzido, por supuesto, pelo espírito da compaixão. (Enquanto isso, a maioria dos economistas repete a ladainha tecnocrática, que não vê relações entre produtividade e mentalidade.) E quando fazem listas de livros recentes para ler, como vejo na revista virtual Trópico (www.uol.com.br/tropico), não incluem nem um título sequer de ciência – nem mesmo os de grandes prosadores e divulgadores como Richard Dawkins, Antonio Damásio e James Gleick, para ficar só em três. Como se vê, muitas vezes os intelectuais são seus piores inimigos.
UMA LÁGRIMA
Para Ernst Mayr, grande intelectual público, autor de livros como População, Espécies e Evolução, que tornou compatível essa teoria com a genética de Mendel (e foi não o ‘Darwin do século 20’, mas um dos) e abriu espaço para os trabalhos de Stephen Jay Gould, Richard Dawkins, Jared Diamond e Robert Trivers, que por sinal o homenageia no site Edge (www.edge.org).
DE LA MUSIQUE
O CD Coral, de David Sánchez, que esteve no Tim Festival em novembro, foi escolhido um dos dez melhores do ano em jazz pela revista New Yorker. A peça-título é de Villa-Lobos, o segundo movimento da Bachianas n.º 4, que ele e seu sexteto, acompanhados da Orquestra Filarmônica de Praga, executam em estilo ‘cool’. Tom Jobim, claro, não falta, com Eu Sei Que Vou te Amar e Matita Perê; nesta, sentimos falta da instrumentação naturalista do original, das flautas que assobiam como passarinhos. Há também Ginastera, o compositor argentino, e obras do próprio Sánchez. Um talento a acompanhar.
Outro talento a acompanhar é Leandro Carvalho, o violonista, cujo novo CD, London Poem, com o Britton Quintet, também destaca Tom Jobim: Deus e o Diabo na Terra do Sol, Amparo, Chovendo na Roseira. O título também vem de uma composição de Villa-Lobos, Big Ben, e há ainda duas canções de Caetano Veloso. Os arranjos funcionam muito bem, e Leandro, o mais novo herdeiro de Garoto, tem um toque muito pessoal e contido ao mesmo tempo.
CADERNOS DO CINEMA
Alguém ainda precisa escrever o ensaio definitivo sobre a distorção das idéias de Freud na cultura americana. O filme Ray, por exemplo, é uma dessas psicobiografias de Hollywood que ‘explicam’ os ‘desvios’ de comportamento – drogas e adultérios, no caso – pelos traumas da infância. Acompanhamos, na interpretação mediúnica de Jamie Foxx (do tipo que o Oscar adora premiar), a carreira e os amores de Ray Charles com flash-backs para sua infância pobre, em que viu o irmão morrer e, mais tarde, ficou cego. Conhecemos seus defeitos, mas terminamos vendo uma espécie de mártir do politicamente correto. O que salva, literalmente, é a música, bem delineada como uma fusão de soul e blues que foi inovadora também por causa das tecnologias de gravação em estúdio. O filme, enfim, não faz você descer ao inferno pessoal de Ray Charles, embora permita breves subidas ao céu de sua música.
ZAPPING
A minissérie Mad Maria não engrenou. Há problemas de ritmo e atuações. Os fatos se arrastam, as falas se repetem e, assim, o tom de telenovela fica muito abaixo do potencial da história, mesmo que cenas de degola e doença tentem dar a idéia do ambiente infernal em que a ferrovia passou de sonho a tragédia, como não raro aconteceu no embate do homem com a Amazônia. O melhor é ler o livro do historiador Francisco Foot Hardman, Trem-Fantasma, que constrói, especialmente nos capítulos 5 e 6, noção mais rica do que foi essa empreitada delirante.
POR QUE NÃO ME UFANO
A esquizofrenia do governo Lula (você leu aqui primeiro) segue inclemente. De um lado, a tentativa de cooptar o IBGE e o apoio oficial a escolas do MST de conteúdo pós-leninista. Do outro, a recondução da Embrapa ao papel da pesquisa tecnológica e a implantação de centros de estudo de células-tronco. Mas todo mundo sabe por quem os sinos dobram…’
JORNALISMO & LEITURA
‘Voltaire acampou em Minas’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 11/02/2005
‘- Eu renasci, eu renasci!
– O quê?
– Eu renasci, eu renasci!
Os dois riam no camping, e isso só pode ter acontecido agora, neste Carnaval.
– Cara, você é louco mesmo…
Ao que se sabe eles não haviam encontrado os cogumelos para o chá. A alegria ainda é um sentimento espontâneo. O primeiro dos malucos, o que havia renascido, acabara de dar umas folheadas no ‘Dicionário Filosófico’, de Voltaire.
Antes assim, Voltaire é um sujeito bem-humorado. Creio eu que, houvesse lido Schopenhauer, o agora renascido teria optado por atirar-se à cacimba ou, masoquista fosse, contra a cerca de arame farpado.
O que aconteceu, então?
Dizem que o ressurrecto simplesmente deu de cara com o elo perdido da própria vontade. Eis uma frase que ajuda a compreender aonde isso tudo vai chegar: ‘Tudo o que sei é da minha coragem de leão e do meu invencível trabalho’. Boa, né. É do Honoré de Balzac.
O renascido é jornalista. Está farto de ser o que é. Granjeou espaço, trabalho, reconhecimento. Mas é o mesmo de alguns anos atrás. Parou no tempo. Pior: deixou-se levar pelas filigranas do dia-a-dia. Deitou-se na inércia, achou que tudo estava bem.
Falo dele, como poderia falar de mim, de você ou de algum camarada seu. Poucos mantêm o espírito indomável e desbravador dos primeiros tempos, aqueles que nos fariam, um dia, irromper pela vida, plenos de necessidade.
Note este verbo: necessidade. Aqui é império, urgência, não depreciação. Aqui é a vontade, o ‘invencível trabalho’ de Balzac, a ‘coragem de leão’ que estraçalha o cotidiano morno.
Na infância, ouvi umas duas ou três vezes: ‘O médico tem que ser dedicado, tem que se atualizar, estudar a vida inteira’. Há quase trinta anos não tínhamos ainda esse frenesi informativo, exacerbado pelos avanços da ciência da computação. Hoje é piada dizer que esse ou aquele ‘tem que se atualizar’. Primeiro, porque todos precisam, isso é uma obviedade; segundo, porque ninguém consegue na velocidade que gostaria e nunca conseguirá apreender o todo.
Frase solta: estamos ao largo da resolução, somos cegos e surdos de humanismo.
O jornalismo é uma atividade ‘empírica’, por isso mesmo passível de alguns equívocos. Um deles é o pensamento de que os dados colhidos no exercício diário são suficientes para conservar o barco no leito. Sim, pode-se até ‘exercer’, com alguma dignidade. Digo alguma porque as falhas de formação são encobertas pela especialização ou pelo ‘monitoramento’ dos editores.
Veja quantas aspas no parágrafo anterior. Elas confirmam a relatividade das ações. O empirismo engana (merece aspas), o exercício (ou a praticidade) engana (merece aspas), o monitoramento não passa de um tapa-buraco, da ‘fôrma (sic) da experiência’ (mais aspas).
O renascimento em questão é a volta ao impulso diário da descoberta, ao estranhamento antropológico, ou, mais próximo de nós mesmos, à alegria da conquista intelectual. Prazerosa, a sensação de que a rotina já morreu. É como alguém que, em confronto com o sepulcro, passará a enxergar a beleza de todos os átomos, em todos os instantes.
Muitos de nós sofremos de uma mítica indisposição para a leitura e para a curiosidade, mas não devemos nos vexar: acomodação tem cura. A disciplina é a trilha na jornada do reencontro. Há tanto para conhecer e nenhum tempo a perder. Acordar cedo, agora, não será tão ruim assim (mentira, mentira).’
LINGUAGEM & JORNALISMO
‘Ponhamos o dedo na linguagem do jornal’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 11/02/2005
‘Deve existir uma linguagem jornalística? Fui profissional durante cincoenta anos pensando que sim, embora nunca tenha sido definida com clareza, mesmo com a adoção de manuais de redação. Em geral, havia uma certa unanimidade em torno da regra fundamental de que o jornalismo deve usar a linguagem que seus leitores, ouvintes ou telespectadores usam no dia-a-dia, mas com outra regra geral: os vocábulos e assuntos chulos, escatológicos ou inadequados para conversas familiares ou entre gerações diferentes deveriam ser evitados. Eu tinha a regra simples de me perguntar: diria aquela palavra ou trataria daquele assunto com minha mãe ou minhas filhas?
É claro que, durante esses 50 anos, os julgamentos foram mudando. Palavras começaram a ser aceitas social e/ou familiarmente. Bunda é exemplo dessa mudança; homossexualismo ou prevenção contra gravidez, AIDS e DST tornaram-se assuntos quase permanentes.
Mas O GLOBO, em sua edição de 6/2, na Revista de Domingo, me fez refletir se todos os jornais caminham no mesmo ritmo.
O colunista de Medicina, na seção ‘Qual é o seu problema?’ apresenta e responde a seguinte pergunta do leitor Edgard, do Rio: ‘Tenho 23 anos é só chego ao orgasmo quando minha parceira introduz o dedo no meu ânus. Isso é normal?’
Eu também pergunto: Isso já é normal, tratar desse tema (agradável, segundo o leitor, e com um mínimo de importância para justificar a opinião clínica e a própria publicação) numa revista dirigida preferencialmente ao público feminino? Falei com dois chefes de redação de jornais e ambos me disseram que não publicariam nem a carta nem a opinião do médico. Por que? Porque o tema – digamos, as múltiplas possibilidades de prazer sexual – segundo eles, só é discutido em círculos muito íntimos ou entre médico e paciente. E, na mídia, deve se manter restrito a livros ou revistas especializadas. Os dois entrevistados me pediram o benefício do off porque não gostariam de aparecer criticando colegas publicamente.
Conversei também com repórteres e ex-alunos – entre oito, apenas dois acharam que ‘ninguém se choca mais ao ler essas coisas em jornal.’ Ambas exceções, no entanto, não têm mãe viva nem filhos com menos de 12 anos.
O GLOBO é e sempre foi um jornal de opinião editorial conservadora não apenas na política, mas também na visão do comportamento e dos costumes sociais. Mas o humorista dominical Agamenon Pereira usa a linguagem e a temática mais desabridas da imprensa brasileira, superando nesse ponto até a do José Simão, da Folha. A coluna do Ancelmo tem sempre uma ‘saliência’ a comentar, Joaquim Ferreira revela, entre notícias supervariadas, as aventuras mais picarescas e fúteis da gente carioca, e Miguel Paiva capricha na gozação das ansiedades e frustrações sexuais do Gatão de Meia Idade. Por isso, é possível se entender que o editor de Medicina esteja dando apenas um passo adiante no linguajar e na pauta do jornal, ao selecionar o problema do Edgard como o mais interessante para as leitoras.
As aulas estão voltando e pretendo discutir esse tema na primeira aula de ‘Redação Jornalística para Mídia Impressa’. As opiniões de vocês me ajudarão a concordar ou não com O GLOBO em que chegou a hora de se informar, sem constrangimento, a leitores e futuros jornalistas, a normal ampliação das funções do dedo.’