Wednesday, 13 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

Daniela Birman, Nani Rubin e Rachel Berthol

‘A segunda edição da Feira Literária Internacional de Paraty (Flip) termina hoje, após cinco dias de debates, palestras e intensa programação cultural, com ótimo saldo. Se na primeira Flip, ano passado, o evento podia ser considerado um tiro no escuro, este ano se confirmou como um grande sucesso. Houve maior interação com os moradores, que se sentiram anfitriões orgulhosos de escritores, editores e estrelas, como Caetano Veloso e Chico Buarque.

Mais organizado do que o primeiro, o evento cresceu. O número de escritores dobrou e a festa ganhou mais um dia. A criação de duas tendas à beira do Rio Perequeaçu criou um clima europeu. Numa delas se assistia às palestras ao vivo, e na outra, por telão.

Futebol, feijoada e cerveja: o almoço dos escritores ontem, na Flip foi uma festa brasileira, capitaneada por Chico Buarque, que não se abalou com a chuva torrencial nas duas partidas que disputou. No primeiro jogo, seu time de escritores ganhou de virada, por três a dois, da equipe formada por paratienses. No segundo, Chico deixou o campo encharcado, após uma goleada de 5 a 3 que sua equipe — a dos escritores de camisa azul — impôs ao time dos escritores de camisa branca. Chico marcou um dos gols da segunda partida, mas poucos viram.

— Vocês saíram por causa da chuva, né? Perderam o melhor. A modéstia me impede de dizer quem foi o melhor em campo — brincou Chico.

O pontapé inicial foi dado pela editora inglesa Liz Calder. Um dos destaques da platéia foi Paul Auster. Chico disse ser sócio-fundador do evento:

— O Brasil e a mídia focalizam o evento, com a presença de autores estrangeiros, o que é muito bom para difundir a literatura brasileira.

Na beira do campo, o editor Luiz Schwarcz, fazia as vezes de técnico. Na platéia, estavam escritores, como o português Miguel Sousa Tavares, Luis Fernando Verissimo, Ziraldo, a espanhola Rosa Montero, o angolano Agualusa.

O sucesso trouxe problemas ao evento, como os cambistas, que cobraram R$ 30, o dobro do preço do ingresso para a Tenda dos Autores, como no caso da mesa mais procurada, que reuniu à noite Paul Auster e Chico Buarque.

A Tenda dos Autores estava lotada com cerca de 600 pessoas. A palestra ‘O romance dentro do romance’ começou com Paul Auster lendo um trecho de ‘Budapeste’, de Chico, em inglês. Em seguida, Chico leu em português um trecho de ‘A noite do oráculo’, o mais recente livro de Auster lançado no Brasil. Em seguida, cada um deles leu trechos de seus próprios livros. Liz Calder e Milton Hartoum fizeram perguntas aos autores.

— Todo mundo que tem 60 anos e gosta de futebol se apaixonou pela seleção da Hungria de 54 — disse Chico, explicando como nasceu seu interesse por aquele país.’



Daniela Birman e Rachel Bertol

‘Flip comemora sucesso e já pensa no futuro’, copyright O Globo, 12/7/04

‘A Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) se encerrou ontem num clima de fervilhamento de novas idéias. Liz Calder, a inglesa que criou o evento, e Flavio Pinheiro, o responsável pela programação, comemoravam ontem o sucesso dos cinco dias de palestras e debates que levaram 12 mil pessoas à cidade e já falavam dos projetos para 2005. O sucesso deste ano — que teve como um dos pontos altos a descontração de Chico Buarque — consolidou-se como modelo de evento literário que, segundo os organizadores, promete se multiplicar pelo país.

— A Flip não pode crescer mais, ou estraga. No ano passado, o evento foi muito pequeno, mas era a primeira vez e não sabíamos quantas pessoas viriam. Agora, chegamos ao tamanho certo — disse Liz Calder, para quem a Flip vai inspirar outros festivais, em vez de crescer. — Nada impede que os escritores que vêm à Paraty possam ir depois a um outro festival numa cidade como Outro Preto, por exemplo. Na Inglaterra, há 20 anos não existiam festivais literários e hoje acontecem mais de cem por ano.

Os organizadores já têm para 2005 autores em vista, como o Nobel J.M. Coetzee, Peter Carey e John Irving.

Chico Buarque diz que escritor deve ‘sair da toca’

Diferentemente do ano passado, quando os debates na pequena Casa de Cultura da cidade deram à Flip uma aura de clubinho elitista, este ano a Tenda dos Autores, montada na beira do rio Perequeaçu com 550 lugares, democratizou o acesso do público à literatura.

— Estava receoso de que, com 500 pessoas na platéia, os debates perdessem o clima de intimidade com os autores. Mas isso não aconteceu. A solução arquitetônica do espaço permitiu a descontração até dos mais tímidos, como o Chico, que os brasileiros não viam assim tão descontraído há muito tempo, e o Verissimo, que participou de duas mesas e contou até piadas — disse Flavio Pinheiro.

A presença de Chico causou tanta comoção que, no fim de sua palestra com o americano Paul Auster foi quase impossível controlar a multidão que se aglomerou atrás de um autógrafo do autor de ‘Budapeste’.

— O que aconteceu no fim da palestra do Chico não cabe na Flip. Talvez se ele tivesse falado na quarta-feira não houvesse esse problema. Mas a Flip poderá continuar a receber estrelas sem se descaracterizar. Vamos pensar em soluções — disse Mauro Munhoz, responsável pela arquitetura dos espaços.

Para 2005, uma idéia é criar um diálogo entre o cinema e a literatura, para debater com autores que têm obras adaptadas ou que escrevem roteiros de filmes. Este ano, foram exibidos ao ar livre filmes como ‘Diários de motocicleta’ e ‘Carandiru’.

— O diálogo da literatura com as outras artes deve ter presença maior nas próximas edições. Também poderemos dar espaço ao romance policial, que ainda não foi muito explorado na Flip, e destacar a poesia — disse Pinheiro.

As duas palestras mais aplaudidas dos cinco dias do evento foram as do escritor, músico e professor José Miguel Wisnik, que arrancou lágrimas ao falar ontem sobre ‘O recado do morro’, de Guimarães Rosa, e a que reuniu no sábado o escritor Ferréz, autor de ‘O manual prático do ódio’, sobre a periferia de São Paulo, e o sociólogo José de Souza Martins. Ambas as palestras curiosamente fizeram a conexão com a não-ficção. Wisnik fez a apresentação de instigante estudo literário e Ferréz e Martins debateram de maneira original o problema da exclusão social (que eles chamam, na verdade, de ‘inclusão perversa’).

— Guimarães Rosa é uma espécie de grande segredo da literatura brasileira — disse Wisnik que, ao falar dos meandros do texto, com seus nomes indígenas, rios que subitamente desaparecem debaixo da terra e múltiplos recados, ressaltou que o escritor mineiro ainda precisa ser mais conhecido.

Apesar da aglomeração no fim de sua palestra, Chico Buarque pôde caminhar pelas ruas de Paraty, assim como os outros escritores e até políticos como o ministro Ciro Gomes, o senador Eduardo Suplicy e o governador de Minas Aécio Neves.

— A literatura não se exibe. Mas eu acho bom que o escritor também saia da toca e que se exiba um pouquinho. Essa coisa de não se exibir também pode criar uma certa casca. O escritor fica sendo um bicho esquisito — disse na sua palestra Chico, olhando em volta para os demais escritores. — Desculpe, sorrry . Mas eu acho às vezes o escritor um bicho esquisito. Também, eles vivem sozinhos.’



Marcos Caetano

‘Epifania em Paraty’, copyright Jornal do Brasil, 12/7/04

‘O ofício do cronista esportivo é deveras interessante. O nome da ocupação já prenuncia um desafiador rosário de ambigüidades: se por um lado nossa matéria-prima é o esporte, por outro a forma pela qual nos expressamos é a crônica. E, como diria o velho poeta, entre a literatura e o futebol, balançam nossos corações. O meu, pelo menos, balança inquietantemente. Escrevo esta coluna do litoral fluminense, onde estou acompanhando a segunda edição da FLIP – Festa Literária de Paraty. Para quem se dedica ao futebol, o evento representa cinco dias longe de qualquer notícia sobre o assunto – exceto pela alegre pelada organizada por Chico Buarque, disputada por escritores e vencida, como corresponde, pelo Polytheama, equipe do aclamado autor de Budapeste. Para quem ama a literatura, no entanto, a Festa, como o nome sugere, é uma autêntica final de Copa do Mundo.

Em que outro lugar um amante das letras poderia estar ao lado de – com o perdão da expressão futebolística – craques como Paul Auster, Margareth Atwood, Lygia Fagundes Telles, Martin Amis, Luis Fernando Veríssimo, Jeffrey Eugenides, Moacyr Scliar, Jonathan Coe, Colm Tóibín e Chico Buarque, entre tantos outros? Só que o usufruto dessa fantástica oportunidade significa também dizer que não faço a menor idéia de como anda o Campeonato Brasileiro. Basta dizer que fiquei sabendo da vitória do Vasco sobre o Flamengo através do próprio Chico, que estava, claro, ansioso por notícias sobre o nosso Fluminense. Felizmente, alguém nos avisou depois que ganhamos do São Caetano, com um gol no finalzinho. O Chico é pé-quente, mas o saldo de tudo isso é que a participação na FLIP me impede de escrever sobre futebol, o que, convenhamos, resulta embaraçoso para o responsável por uma coluna que não sairá no caderno cultural, mas no de esportes.

Quem, além de Nelson Rodrigues, pode me livrar de tamanha enrascada? Que outro apaixonado pelo futebol foi também tão formidável escritor? O gênio da Aldeia Campista me possibilita fazer a ponte entre a literatura e o esporte, capaz de salvar a coluna. Dizem que Nelson não entendia patavina de futebol, o que é uma injustiça, já que ele foi o arauto da qualidade daquela que viria a ser a grande seleção das copas de 58 e 62 e ainda por cima outorgou o título de rei a Pelé. É verdade que o grande dramaturgo enxergava mal de longe, o que o obrigava a recorrer à visão de Armando Nogueira: ‘E então, Armando, o que foi que nós achamos do jogo?’, ele costumava perguntar, antes da mesa-redonda Facit. Não obstante, Nelson enxergava o esporte com o coração, o que vale mais do que a fria análise tática. O esporte é uma atividade humana e, como tal, é compreendido melhor por aqueles que, como os escritores, conhecem os mais profundos segredos da alma. Com opiniões fortes e hipérboles delirantes, ninguém soube expressar tão bem a essência de um embate esportivo do que o autor de Perdoa-me por me traíres.

É claro que os melhores textos de Nelson nasceram do amor pelo Fluminense, como um sobre o título estadual de 63, onde observou o movimento das bandeiras tricolores e concluiu que ‘se um turista estrangeiro passasse pelo Maracanã naquela tarde anotaria em seu caderninho de viagem: ‘começou a nova Revolução Francesa’!’ Ele também pregava a burrice do videoteipe quando este invalidava os gols do seu time, e alçou à condição de gênios jogadores medíocres como Parraro. Mas, apesar de tricolor doente, o generoso Nelson foi capaz de produzir os melhores textos sobre o Flamengo. Lembro-me de um que consolidou a mística da camisa rubro-negra. Ele garantia que, no futuro, bastaria ao clube da Gávea hastear sua camisa no travessão para que os adversários tremessem diante do gol vazio, convertido então numa ‘bastilha inexpugnável’.

Além da sagração de Pelé como rei, Nelson demoliu o ‘complexo de vira-lata’ do brasileiro, clamou por ‘glória eterna’ aos campeões mundiais, negou-se a admitir a decadência futebolística de Garrincha ou a fazer concessões a uma pretensa superioridade de qualquer povo em relação ao nosso quando o assunto era futebol. Futebol ou qualquer outra coisa, aliás. Jamais viajou para o exterior, sentia uma terrível nostalgia do país já quando atravessava o túnel Rebouças e foi tão patriota que acabou rotulado de reacionário. A história lhe fez justiça e hoje, para seu desespero póstumo, ele, que odiava as unanimidades, se tornou uma delas. Espero, sinceramente, que uma das mesas da terceira FLIP homenageie a crônica esportiva e o mestre Nelson Rodrigues. Para concluir a coluna, quero dizer que se tive uma definitiva epifania numa semana de epifanias, foi esta: nem a mais épica partida de futebol é capaz de me deslumbrar como um grande texto, como um grande livro. Dentro de mim, cronista esportivo, o cronista pode mais do que o esportivo.’



LEAD
Arthur Dapieve

‘O vento traz de volta’, copyright O Globo, 9/7/04

‘A primeira frase de um texto é importante pra cacete. Se ela não capturar o leitor pela beleza, o mistério ou até a virulência, ele não seguirá para a segunda frase. Nem lerá a terceira. Os jornalistas vivemos sob este credo, que um de nós batizou de lead e outro aportuguesou para lide: respondas de chofre a seis perguntinhas — Quem? O quê? Quando? Onde? Como? Por quê? — e terás dado uma notícia. Aqui, contudo, não há novidade.

Primeiras frases são importantes pra cacete. Não só nos jornais e nas revistas, mas também nos livros. Pegue um de seus favoritos na estante, leia a primeira frase e ateste isso, enquanto eu pego um dos meus aqui. ‘Giovanni’, de James Baldwin: ‘Aqui estou, em pé diante da janela deste casarão no sul da França enquanto chega a noite, essa noite que me arrasta ao pior de todos os amanheceres de minha vida.’ Estamos de acordo?

Com um copo na mão e uma garrafa encostada ao cotovelo, quem narra é David, um americano dilacerado. Noivo de Hella, ele se apaixona pelo personagem que dá título ao romance, um garçom italiano. Na tal noite que o arrasta ao pior de todos os amanheceres de sua vida, Giovanni está preso, por ter assassinado seu patrão, Guillaume. Mais não conto para não estragar o prazer de quem se aventurar além da primeira frase e deste resumo.

O nova-iorquino Baldwin (1924-1987) era um craque. Ele se auto-exilou na França, em busca de ares menos pesados para a sua dupla condição: negro e homossexual. Filho de um pastor do Harlem, parecia ter herdado sua prosa das Escrituras. ‘Giovanni’ foi seu segundo romance, escrito aos 32 anos. Durante a década de 60, Baldwin lutou pelos direitos civis nos EUA, tendo se tornado amigo de Martin Luther King e Malcolm X. Ainda um de seus últimos livros, ‘The evidence of things not seen’ (1985), foi um misto de ensaio e reportagem sobre o assassinato de 28 crianças negras e pobres em Atlanta.

Baldwin sabia que, além de uma bela primeira frase, o leitor merecia um belo final, não necessariamente um happy end , claro, e sim algo que justificasse a sua fidelidade. A edição da Rocco da qual extraio as citações, traduzida por Affonso Blacheyre em 1986, época em que o falecido Caíque Ferreira encarnava Giovanni nos palcos de São Paulo e Rio, nem chega às 200 páginas, mas tem, mesmo assim, um parágrafo final recompensador.

Ei-lo: ‘Finalmente saio para a manhã, fechando a porta da casa. Atravesso a rua e ponho as chaves na caixa de correio da velha senhora. E olho para a estrada, onde estão algumas pessoas, homens e mulheres, esperando o ônibus matutino. Essa gente mostra-se muito nítida sob o céu que desperta e o horizonte mais além começa a chamejar. A manhã pesa em meus ombros com o peso temível da esperança e apanho o envelope azul que Jacques enviou, rasgando-o vagarosamente em muitos pedaços, vendo-os dançar no vento, observando que o vento os leva para longe. Mas quando me viro e sigo andando para os que esperam, o vento atira alguns pedaços de volta, em minha direção.’

Esta imagem maravilhosa e algo fatalista, o vento trazendo de volta pedaços de papel (cartas, memórias, histórias, pessoas) dos quais se quer livrar, voltou-me à cabeça na noite da quinta-feira retrasada, enquanto ouvia a paulistana Fabiana Cozza cantar sambas no boteco Bip-Bip. Como diz um amigo, ela não canta sambas: conta sambas, muito bem. Transforma-os em pequenas narrativas, elegantes, teatrais, adequadas ao espacinho da Almirante Gonçalves, Posto Cinco, Copacabana, perto de onde morei a maior parte da vida.

Existe o clichê: a gente pode sair dos lugares, mas os lugares não saem de dentro da gente. É verdade. Copacabana não sai de mim, por mais que eu a exorcize. Ali, ouvindo Fabiana interpretando lindamente ‘O samba é meu dom’, de Wilson das Neves (presente ao showzinho) e Paulo César Pinheiro, fiquei zanzando inquieto pela calçada em busca de um ângulo que conjugasse vista para a mesa da cantora e alguma brisa. Não achei. No entanto, achei algumas coisas sobre o bairro no qual ainda encontro amigos pelas esquinas.

Com o samba ao fundo, um grupo jogava cartas nas mesas de cimento quase na esquina com a Nossa Senhora, um mendigo dormia na porta de uma loja vizinha ao Bip-Bip, outros catavam as latas de cerveja vazias dos espectadores e muitas meninas passavam a caminho do trabalho nos bares e hotéis da Atlântica, tantas meninas que imaginei se, à noite, a água da praia fica doce para lhes dar o hábitat adequado. Tudo muito familiar.

Voltei a olhar para o botequim e vi ao violão Paulo Aragão, do quarteto Maogani, vi o Baiano, o Walter Alfaiate e o próprio Alfredinho, dono do Bib-Bip, todos torcedores do Botafogo, outra dessas coisas que, tal como Copacabana, o vento insiste em me trazer de volta, como é?, com o peso temível da esperança. Então, dei um gole na cerveja, lembrei-me da epígrafe do livro de Baldwin, tirada do poeta Walt Whitman (‘Sou eu o homem, eu sofri, estive lá’), e a vida fez sentido até o dia seguinte.

***

Não curto Charlie Brown Jr., mas minha filha adora. Acho fraco de música e de letra, mas simpático e honesto em ‘Proibida pra mim’ ou ‘Eu não uso sapato’. Diante da agressão de Chorão a Marcelo Camelo, porém, passo a achar fraco de espírito também. Típico de um país que acha que cabeça só serve para dar cabeçada. Ter atitude, no Brasil, é romper o ciclo da truculência e atar o ciclo da paz.’