Wednesday, 13 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

Danuza Leão

‘Com todo o respeito: a idéia de comemorar as bodas de pérola com uma festa caipira não podia ter sido pior.

O Brasil tem tantos regionalismos bacanas, uma culinária riquíssima, várias maneiras de ser cheias de ginga e charme que deslumbram o mundo inteiro, e o presidente e dona Marisa Letícia vão escolher logo uma caipirada dessas?

Foi um desastre desde o começo: o tema da festa, o carro de boi chegando cheio de paçoca e cachaça, o autoritarismo de obrigar os convidados e suas respectivas esposas a vestir o traje típico, e ainda pedir que levassem um pratinho de doces ou salgados. Quem eles acham que estão enganando na hora em que a assessoria de imprensa da Presidência da República anuncia que o presidente ajudou a pendurar as bandeirinhas do arraiá? Oh, mas que almas tão genuinamente brasileiras? Socorro, Duda Mendonça.

Alguns mais sensatos não pagaram o mico de usar aquele chapeuzinho de Jeca Tatu, mas é difícil dizer não ao presidente. Como estamos num Estado quase totalitário, a imprensa foi proibida de cobrir o acontecimento, o que nos leva a pensar: terá algum ministro pintado um dentinho e um bigodinho com carvão, como é de praxe? O vice-presidente, talvez?

Um país que quer tanto ser moderno poderia ter se inspirado em qualquer outro folclore que não o do atraso, o da jequice explícita. Quem não se lembra do personagem Jeca Tatu, cheio de lombrigas, personificando um Brasil de que lembramos com carinho, mas que não é exatamente a imagem a ser exportada para os grandes estadistas do mundo com quem Lula gosta tanto de conviver de igual para igual?

Não há uma mulher que se realce num vestidinho caipira; não existe imagem masculina que resista a uma camisinha xadrez remendada e uma costeleta postiça. E essa história das despesas da festa serem divididas?

Foi um vexame atrás do outro, em nome de uma economia sem sentido, tipo me engana que eu gosto. Então é preciso que alguns empresários rachem a reforma das goteiras do Palácio da Alvorada para mostrar o quanto são parcimoniosas as despesas da Presidência? E essa de levar um pratinho de doces eu não ouvia falar desde que tinha dez anos, morava no interior e era pobre. Se investigassem mesmo o affair Waldomiro, sairia bem mais barato.

A gente temia que fosse acontecer esse tipo de coisa; até agora foi refresco, mas agora eles pegaram pesado. Olhem bem a foto para não perder nenhum detalhe: a margarida no bolso de Lula, o chapéu de palha desfiado, as trancinhas e as pintinhas feitas a lápis no rosto de dona Marisa. Pior, impossível.

Sempre se soube que a saudade de Fernando Henrique e dona Ruth Cardoso ia ser grande, mas não dava para imaginar que fosse ser tão grande. O arraiá foi de uma breguice difícil de ser superada, mas não vamos perder as esperanças: até o fim do mandato eles talvez consigam.’



Marcia Camargos

‘Com todo o respeito, Danuza!’, copyright Folha de S. Paulo, 16/06/04

‘A carga de preconceito patente no artigo de Danuza Leão ontem neste jornal, ao criticar o arraial caipira promovido pelo presidente da República, estarrece quem se preocupa com a preservação da cultura e da identidade nacional. Por que a idéia de celebrar as bodas de pérola com uma festa autenticamente brasileira, comemorada de Norte a Sul no país inteiro, não é apropriada?

Qual o problema de o primeiro casal promover um tipo de confraternização realizada em cada escola, praça e rua, por pobres e ricos, nas capitais e no interior durante o mês de junho? Que outro ‘regionalismo bacana’ eles poderiam ter encenado, já que esta é a época, por excelência, das fogueiras de São João? E por que seria um mico usar trajes típicos e pendurar bandeirinhas, se são esses os ingredientes que tornam a festa mais saborosa?

Quando a colunista resolve citar Jeca Tatu para personificar um ‘Brasil que lembramos com carinho, mas que não é a imagem a ser exportada’, a emenda sai pior do que o soneto. Criado por Monteiro Lobato em 1914, o personagem, retrato da indolência e do atraso, nasceu do descontentamento do fazendeiro frente aos insucessos agrícolas no solo esgotado da sua fazenda no Vale do Paraíba. Quatro anos mais tarde, o escritor descobre que a apatia do caboclo advinha do subdesenvolvimento, da fome e da exclusão social. ‘Está provado que tens no sangue e nas tripas um jardim zoológico da pior espécie’, afirma então. ‘É essa bicharia cruel que te faz papudo, feio, molenga, inerte.’ Na década de 40, outra guinada, e Lobato passa a ver o camponês como agente da própria história. O velho Jeca Tatu virava Zé Brasil, um trabalhador rural em luta por terra, saúde e educação.

Por tudo isso, Danuza confunde ‘chique’ com moderno. Participar de um ‘arraial’ pode não ser o supra-sumo da sofisticação para quem se espelha em ‘Maiami’. Mas revela sintonia com nossa cultura popular e com gostosos folguedos tradicionais que resistem aos bombardeios ‘roliudianos’. Para a colunista, chique deve ser comemorar ‘Ralouim’ fantasiado de abóbora, alimentando a eterna submissão que tão bem define os colonizados.

Além do desserviço à nossa cultura, considerando ‘brega’ um evento vivo do folclore, ela ainda se arvora em porta-voz da nação. Expressar uma opinião particular, ainda que ultrapassada e esnobe, pode ser aceitável no caso de uma colunista. Mas dizer que ‘sempre se soube que a saudade de Fernando Henrique ia ser grande’ é generalizar sentimentos personalíssimos.

Quanto a mim, prefiro um presidente ‘caipira’, um homem que não se envergonha de suas raízes nem das tradições do seu povo, do que, com a licença do macaco Simão, uma Maria Antonieta dançando minueto no Planalto.

Caia na real, Danuza! Não estamos na Sorbonne, e isso aqui não é a corte de Luís 15. Ainda bem. Marcia Camargos é jornalista, doutora em História Social pela USP e co-autora de ‘Monteiro Lobato: Furacão na Botocúndia’ (Senac/1997).’



Vinicius Torres Freire

‘Lula, Danuza, o nacional e o popular’, copyright Folha de S. Paulo, 21/06/04

‘Se você tem filho pequeno, não escapa de festas juninas de escola, o cheiro enjoado de quentão, pais digitalizando às centenas a dança das crianças. Não é assunto sério? Salário mínimo? Nada. O tema nacional é a quadrilha de Lula da Silva e a esnobada de Danuza Leão.

No ano passado, vi um dos quase extintos paus-de-bandeira em Bananal, cidade-joinha do vale do Paraíba. O que é pau-de-bandeira? São aqueles mastros bicolores, como os de Volpi, em que se pregava a bandeira, uma tela com a imagem de um dos santos juninos: Antônio, João, Pedro. Ainda há paus-de-bandeira nas festas juninas do interior?

Festa junina em cidade grande, mesmo nordestina, virou a bebedeira com depravações leves de qualquer feriado, tipo de Carnaval. Ainda no ano passado, estive na casinhola de barro, hoje minimuseu, de mestre Vitalino, arredores de Caruaru (Vitalino, o figureiro que inventou as estatuetinhas de barro nordestinas).

Severino Vitalino contou que uma turba bêbada do axé da festa de São João de Caruaru quase demoliu a casinhola do pai dele.

Mas, em escolas de classe média-alta mais ou menos intelectualizada de São Paulo, as crianças, algumas educadas soltas em quintais de galinhas, aprendem as festas populares, do Divino, o cancioneiro popular infantil, ‘cultura indígena’, como devemos tratar bem os pobres etc. Isso nas escolas mais ‘à esquerda’. Nas de ‘centro’, menos. Nas de classe média normal tem Halloween.

O povo está em outra: axé, rap, sertanejo acanalhado etc. Mas a classe média antes esquerdista como que substitui a política frustrada pela injeção de algum nacionalismo popular nas crianças. Mais tarde, as crianças da consciência culpada esquerdista e falida trabalharão em ONGs do Jardim Ângela. As mais ‘modernas’ farão o ritual de cada geração de classe média, de, por um período, cultuar um crioulo musical: Clementina há 40 anos, ontem Racionais, hoje Tati Quebra-Barraco, que canta ‘não gosto de peru pequeno’.

Um ritual vazio cultua o povo caipira morto, a esquerda morta gosta do nacional e popular, o povo se mundializa na música. Por que cismamos com o caipirismo?’