Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Delmo Moreira

‘O Bruxo andava palpitando sobre qualquer coisa. E não era bem isso que ele, o Satânico Dr. Go, a notória e temida eminência parda do regime militar, considerava um poder de verdade. ‘Acabo de sair de uma discussão na qual se decidiu o aumento dos táxis em Curitiba’, contou o general Golbery do Couto e Silva, chefe da Casa Civil e estrategista político do general-presidente Ernesto Geisel. ‘Não ando de táxi há três anos e não vou a Curitiba há dez. Estamos mandando tanto que não mandamos mais nada.’ O episódio banal era só mais um exemplo de que a ditadura perdera sentido para Golbery, a odiada Hiena Caolha dos panfletos (ilustração abaixo) espalhados pelos oficiais linha-dura que militavam contra a menor chance de volta à democracia no Brasil. ‘Concentramos o poder de tal forma que produzimos um buraco negro, capaz de absorver qualquer energia.’

A reclamação de Golbery foi testemunhada pelo jornalista Elio Gaspari. Sempre esteve entre seus casos prediletos, um dos inúmeros com que Gaspari brindou colegas ao longo dos 18 anos que levou para escrever as quase 2 mil páginas da mais notável e completa obra já publicada sobre os governos fundados pelo golpe militar de 1964. O episódio aparece agora no quarto livro da série. Os dois primeiros volumes, A Ditadura Envergonhada e A Ditadura Escancarada, reunidos sob o título As Ilusões Armadas, foram lançados em 2002. O terceiro, A Ditadura Derrotada, inaugurou a trilogia chamada de O Sacerdote e o Feiticeiro e saiu no ano passado. Juntos, já venderam 250 mil exemplares, uma marca de best-seller nacional em não-ficção. Nesta semana, a Companhia das Letras lança o quarto volume: A Ditadura Encurralada. Haverá um quinto livro, ainda não escrito e sem data de conclusão prevista.

Para quem anunciava, logo na introdução da obra, ter a intenção de apenas contar por que Geisel, o Sacerdote, e Golbery, o Feiticeiro, desmancharam a ditadura que haviam ajudado a criar, Gaspari fez uma viagem e tanto. Este último volume documenta o olho do furacão: os dois anos e dez meses de conspirações, lutas políticas, artimanhas, assassinatos e coragens que marcaram o momento em que Geisel resolveu enquadrar os porões da tortura. No meio disso tudo, o povo. Nos livros anteriores, pouco havia de povo, porque povo praticamente não havia no jogo bruto dos primeiros ditadores. Desta vez, a força das ruas brilha.

A Ditadura Encurralada, para quem não é fanático por História, será provavelmente o volume de mais fácil leitura (pode ser lido separadamente) entre todos os da série. A ação agora narrada terminou dando ao novo livro um pique de romance sobre a máfia – de ‘história de gângster’, como prefere Gaspari. Além disso, ele tem a vantagem de narrar um tempo mais próximo do leitor de hoje. E que tempo: foi quando aconteceu a tentativa de golpe contra a ‘abertura política’, o assassinato de Vladimir Herzog, o parto da luta pela anistia, o fechamento do Congresso com o ‘pacote de abril’, as cassações dos ‘autênticos’ do MDB, o retorno estrondoso das passeatas a exigir ‘liberdades democráticas’.

A vitória da oposição nas eleições de 1974 tinha encalacrado a ditadura. E Geisel, logo ele, velho conspirador de dez bagunças militares que sacudiram a História brasileira, estava determinado a impor o poder republicano do presidente contra a anarquia dos quartéis, registra Elio Gaspari. Com documentação requintada, cheio de novidades, ele identifica e esmiúça o grande feito: a partir de 12 de outubro de 1977, quando o presidente demitiu o ministro do Exército, Sílvio Frota, o país passou a viver seu mais extenso período republicano sem desordem militar relevante. Geisel havia quebrado a regra segundo a qual o presidente não passava de um delegado da Revolução.

‘Se é possível arriscar, (Geisel) sabia a direção, mas não conhecia o caminho’, escreve Gaspari. O presidente ora acuava a ‘tigrada’, ora ‘dava-lhe pasto’, fazendo vista grossa sobre o terror dos cárceres ou cassando políticos da oposição. ‘Estava a um só tempo descomprimindo o processo e cristalizando na sua vontade o arbítrio da ditadura.’ Na reunião com o Alto-Comando das Forças Armadas, em janeiro de 1975, Geisel admitia o restabelecimento da normalidade democrática, mas tratava-a como um lugar, um espaço físico perigoso, carente de precauções: ‘Eu posso ir ao Estado de Direito e, no dia seguinte, ter uma bagunça na rua, não é verdade?’, disse aos oficiais do Alto-Comando. E esta foi a última vez que os reuniu em seu governo. ‘Não vou fazer, todo mês, uma pastoral para o Exército’, resmungou.

Gaspari mostra que a máquina repressiva, montada para arrebentar com as organizações da esquerda armada, entendeu de imediato: estava perdendo a cumplicidade. Seus direitistas lunáticos apostavam, porém, num sólido legado de rebeliões vitoriosas. Como não havia mais guerrilheiros disponíveis – todos estavam presos ou mortos -, avançaram sobre o que restava do Partido Comunista Brasileiro (PCB), mais manso e também já desarticulado naquela época. Gaspari apura que, apenas no mês de setembro de 1975, foram presas 142 pessoas. Bastava ser simpatizante. Sete ‘desapareceram’ e os casos de tortura triplicaram na comparação com o ano anterior. Em São Paulo, reluzia a figura do comandante do II Exército, Ednardo D’Ávila Mello, a um só tempo protetor e refém da barbárie, como tantos outros oficiais. O porão tinha vida própria. Chega a ser cômica a revelação dos planos do Serviço Nacional de Informações (SNI) para invadir Portugal – bravatas jamais dissuadidas oficialmente pelo governo.

Quando Golbery ficou doente, coronéis passavam pelos corredores do hospital sugerindo aos médicos que o deixassem morrer. O Feiticeiro, por seu lado, buscava um acerto com a oposição. O ponto alto dessas articulações, ricamente documentadas, foi um encontro secreto do general com Ulysses Guimarães e Thales Ramalho, secretário-geral do MDB. O grupo de pajés se reuniu no apartamento da filha de Golbery, sob cortinas cerradas.

Sem o mesmo recato, o porão do regime respondia com brutalidade. Desafiou a ‘distensão política’ com o cadáver do jornalista Vladimir Herzog, assassinado num prédio cujo dono era conhecido: o Exército nacional. Este é um dos momentos magníficos do livro. Gaspari dá significado a cada um dos atos de reação que se multiplicaram numa das mais belas manifestações de vontade da sociedade brasileira. A missa pela morte de Vlado, acompanhada na catedral pelo silêncio de 8 mil pessoas, marcou uma virada, segundo o jornalista: ‘Na praça da Sé, naquela tarde de 31 de outubro de 1975, a oposição brasileira passou a encarar a orde e a decência. A ditadura, com sua ‘tigrada’ e seu aparato policial, revelara-se um anacronismo que procurava na anarquia um pretexto para a própria reafirmação’.

Rompem, então, os estudantes. Quase ninguém sabia – os órgãos de repressão puxando a fila do desconhecimento – quem eram aqueles jovens. Gaspari os descreve: trotskistas, críticos do PCB, da luta armada e dos ícones culturais da esquerda ortodoxa, desprezavam a política de frentes e sonhavam com a insurreição. Eram um novo tipo de militante. Especializavam-se em fustigar o medo alheio. geração de 77, assim chamada pelas passeatas e greves agitadas naquele ano, sempre foi relegada a um papel modesto, quando comparada à estrondosa turma de 68. Gaspari inverte as posições. Para ele, a diferença básica é que a geração de 77 venceu, enquanto a de 68 acabou derrotada, pagando, assim, o preço mais alto.

Vladimir Herzog, na armação do enforcamento, numa cela do DOI-Codi. Fotografias inéditas apareceriam depois nos panfletos dos torturadores

Desde o assassinato do ex-deputado Rubens Paiva no quartel da PE do Rio de Janeiro, em 1971, era a primeira vez que morria no porão da ditadura um quadro da elite, com vida legal, cuja atividade política tinha pouco relevo até mesmo no seu cotidiano. À diferença do corpo de Paiva, que desapareceu, o de Herzog incrustara-se no DOI e no regime. Horas depois da confirmação de sua morte, começou um daqueles processos em que reações individuais e desarticuladas desembocam em comportamentos que, sem coordenação ou planejamento, constroem os grandes fatos históricos. Em todos os casos, teve-se de decidir por onde passava a linha a partir da qual o medo reprime a revolta. O medo era tanto que foi desafiado. (…)

Na manhã da segunda-feira, duas gerações estavam mobilizadas pela morte de Herzog. Na primeira vinham os trezentos automóveis que seguiram o cortejo fúnebre até o cemitério israelita. Na segunda, os estudantes da USP. Uma testava o próprio medo. A outra testava o medo alheio.

O movimento dos empresários, também renascido naqueles anos, é retratado de forma diversa. A gritaria contra a ‘estatização’, reconhece Gaspari, foi uma das mais brilhantes estratégias da história do empresariado nacional. ‘Permitia lutar pela liberdade sem lutar pela democracia, reclamar do governo sem se confundir com a oposição.’ A cabeça estatizante do presidente não era segredo para ninguém, mas Gaspari ressalta que os capitalistas nacionais haviam se encolhido diante da oportunidade de investimentos na telefonia e induziram o governo a assumir a petroquímica, ‘com o propósito de salvar um patrimônio mal gerido’. O livro conta ainda a incrível prensa levada pelo empresário Jorge Gerdau Johannpeter, quando os arapongas descobriram sua colaboração com a campanha de Paulo Brossard, candidato do MDB gaúcho ao Senado. Gerdau foi obrigado a explicar-se ao SNI, fazendo um auto-de-fé que terminava com um apelo ‘à confiança que sempre mereceu da Presidência’. Lendo o documento, Geisel rabiscou na margem: ‘Se a Presidência sou eu, não é verdade que tenha merecido a alegada confiança. Pelo contrário, nunca teve’.

No minucioso registro da mobilização da sociedade civil, Gaspari ressalta o combate do cardeal dom Evaristo Arns, do jurista Raymundo Faoro e de muitos mais. Surpresas ficam por conta do belo – e quase desconhecido – papel representado por gente como o general Luís Gonzaga de Andrada Serpa e do ex-governador paulista Paulo Egydio Martins. Em meio à tempestade, ambos se distanciaram frontal e corajosamente da criminalidade do DOI-Codi de São Paulo. O general Ernesto Geisel, que no livro anterior era mostrado compactuando com a política de assassinatos políticos, cresce – e muito – em A Ditadura Encurralada. Coisa idêntica acontece com seus fiéis e imaginativos escudeiros, Golbery e Heitor Ferreira, secretário particular do presidente.

Foi sozinho, porém, que Geisel enfrentou um episódio capital para o sucesso de sua empreitada. Ele ocorreu justo quando tudo parecia desfavorável a um presidente que, nos últimos meses, recuava a cada provocação da linha-dura, empenhada em criar confusão para ganhar sobrevida. Frota exigiu a cabeça de outro deputado, o paranaense Leite Chaves. Geisel pagou para ver e, com isso, salvou a Presidência num lance mais movido a testosterona do que a razão. Sem ter combinado antes com ninguém, humilhou Frota no grito, não lhe deixando saída para preservar aparências. O inimigo estava subjugado (tentaria ainda nova reação quando o general Ednardo foi decapitado do comando do II Exército).

O duelo definitivo com a ‘tigrada’ acontece na demissão de Sílvio Frota, executada com frio planejamento de Geisel. O ministro do Exército, no jargão da caserna, procurara ‘emparedar’ o presidente. Repetia, conforme Gaspari, o que a anarquia militar, madrinha da tortura, tinha feito com Castello Branco e na sucessão de Costa e Silva. Com isso, no entanto, patrocinou o oposto. ‘Treze anos depois da noite de abril de 1964, aquela em que o general Arthur da Costa e Silva anunciara que iria ‘assumir essa coisa toda’, Ernesto Geisel restabelecera a autoridade constitucional do presidente da República sobre as Forças Armadas.’ Esta é a última frase do livro de Elio Gaspari, jornalista que desvendou um pedaço importante da História brasileira sem ser acadêmico. No ano que vem, isso muda um pouco. Gaspari será scholar (um pouco mais que pesquisador) em Harvard. Foi apresentado à universidade pelos historiadores americanos Thomas Skidmore e Kenneth Maxwell. Ficará lá por seis meses, quando dará um seminário sobre relações Brasil-Estados Unidos de 1964 a 1978.

A INVASÃO A PORTUGAL

Geisel e Golbery, parceiros de muitas desordens militares, enfrentam a ‘tigrada’ para pôr fim à bagunça dos quartéis e apressar a abertura

Na noite de 17 de junho de l975 cinco senhores reuniram-se no Rio de Janeiro. Quatro eram oficiais da Agência do SNI. O quinto era o general Antônio Spínola, o legendário líder da Revolução Portuguesa de abril de 1974. (…) Como seu monóculo, passara de romântico a anacrônico, e renunciara em setembro, cinco meses depois de empossado. (…) Informava que pusera em andamento um plano de invasão de Portugal. O ataque seria desfechado em até seis meses, a partir da Espanha. Contava com uma tropa de 5 mil combatentes recrutados na Rodésia, na África do Sul e no Zaire. Esperava receber armamento americano e não precisava de dinheiro. Pedia ao SNI que lhe conseguisse liberdade de movimento para viajar pelo mundo e uma ‘área de treinamento’ onde pudesse alojar seiscentos homens, por três meses. (…) Spínola e os coronéis do SNI comprometeram-se a manter suas tratativas em segredo.’



Marcos Augusto Gonçalves

‘O teste do medo’, copyright Folha de S. Paulo, 26/06/04

‘Por volta das 22h do dia 25 de outubro de 1975, uma mensagem foi endereçada à Agência Central do Serviço Nacional de Informações (SNI). Notificava o suicídio do jornalista Vladimir Herzog. Ele se apresentara na manhã daquele mesmo dia ao Destacamento de Operações de Informações do Segundo Exército (DOI), em São Paulo, depois de ter sido abordado na noite anterior, na TV Cultura, por agentes dos serviços de segurança. Na página 176 de ‘A Ditadura Encurralada’, Elio Gaspari contabiliza: tratava-se do 38º suicida do regime e o 18º a matar-se por enforcamento.

Herzog assumira a direção de jornalismo da Cultura em 1º de setembro e fora identificado pelos órgãos de informações como colaborador do Partido Comunista Brasileiro. Convocaram-no para ‘prestar esclarecimentos’.

Seu assassinato é um dos episódios cruciais do período retratado em ‘A Ditadura Encurralada’. Os desdobramentos do episódio conduziram Gaspari a um tema que em outros tempos chegara a menosprezar, mas ao qual reservou lugar de destaque no livro: as movimentações da geração estudantil que se seguiu à de 1968.

Gaspari chamou-a de Geração 77 (ano das passeatas) e notou seu aparecimento nas reações ao suicídio forjado no DOI: ‘Duas gerações estavam mobilizadas pela morte de Herzog. Na primeira vinham os 300 automóveis que seguiram o cortejo fúnebre até o cemitério israelita. Na segunda, os estudantes da USP. Uma testava o próprio medo. A outra testava o medo alheio’.

Os que testavam o medo alheio -os ex-militantes estudantis hoje com idades em torno de 50 anos- não deixarão de se reconhecer na descrição:

‘Eram um novo tipo de militante. Detestavam a mitologia que dominava o patrimônio histórico-político da esquerda. Para eles, João Goulart era um personagem do passado; a União Soviética, ditadura que mandara os tanques à Tchecoslováquia (…). Desprezavam os ícones que simbolizavam 30 anos de hegemonia do Partidão na cultura brasileira. Portinari era um mau pintor. Jorge Amado, escritor banal. Ao sambão preferiam o rock, à poesia engajada do CPC [Centro Popular de Cultura] da UNE, a lírica de Mário Faustino. O horror ao nacional-popular levava-os a ver na canção ‘Caminhando’, de Geraldo Vandré, mera demagogia’.

Gaspari capta um perfil geracional no qual se encaixam estudantes de diversas tendências, militantes ou não. Mas o ‘case’ eram os rapazes e moças que se aglutinavam, em São Paulo, em torno da corrente trotskista Liberdade e Luta, a Libelu: ‘Não eram majoritários nem hegemônicos, eram simbólicos. Nas suas festas havia pessoas bonitas, maconha e Rolling Stones’.

Há diferenças notáveis, que não passam despercebidas pelo autor, entre a Geração 77 e a de 68. A juventude dos anos Geisel entrou em cena sob o signo da vitória: ela pôde votar em 1974, e o resultado deixara o braço parlamentar do regime em situação desconfortável num Congresso consentido e policiado. ‘O pedaço dessa mocidade que alinhava com a oposição não carregava derrotas. Adolescentes durante o surto terrorista, votaram pela primeira vez em 1974 e presenciaram a vitória do MDB. Era a ditadura que tinha medo deles, não eles dela.’

Gaspari observa que a lógica do regime fazia supor que houvesse uma identidade do novo movimento estudantil com o anterior e constata a desorientação dos serviços de informações. Os agentes do regime insistiam em ver na Geração 77 o dedo do velho Movimento Comunista Internacional, ‘sob a batuta do governo soviético’. Um engano.

Nem por isso, os estudantes que desfilaram depois do golpe parlamentar conhecido como ‘Pacote de Abril’ deixavam de causar rebuliço nos porões do regime, onde temia-se a mudança dos ventos, conspirava-se contra a idéia de distensão política e reuniam-se evidências de que o comunismo continuava sendo uma ameaça ao país, contra a qual Geisel e seu colaborador mais próximo, Golbery do Couto e Silva, não estariam reagindo à altura.

A Geração 77, que mostrara a cara após a morte de Herzog, reunindo-se na catedral da Sé com d. Paulo Evaristo, d. Hélder Câmara e o rabino Henry Sobel, viria tempos depois a contagiar o país. Continuaria desafiando a ditadura e a sentir o sabor da vitória. Os porões foram a seu encalço, mas não atingiram o intento de restabelecer as trevas de anos passados.’

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‘A última cartada’, copyright Folha de S. Paulo, 26/06/04

‘O general Ernesto Geisel não tinha em mente um projeto democrático, apenas um plano de institucionalização do regime que concederia terreno para o exercício da liberdade ‘responsável’, sem abrir mão de instrumentos ditatoriais. Queria colocar uma pedra sobre o histórico de torturas e mortes do porão e, ao mesmo tempo, manter de pé os ideais do golpe militar de 1964.

Esse projeto, representado pela idéia da ‘distensão’ política, desagradava tanto a extrema-direita e os agentes dos órgãos de segurança quanto a oposição liberal e de esquerda. Classificado por Gaspari como ‘árbitro do gradualismo’, Geisel via-se ora ‘emparedado’ pelos seus radicais, ora pressionado pela crescente insatisfação da chamada ‘sociedade civil’. É nos interstícios dessa dialética que se desdobra a narrativa de ‘A Ditadura Encurralada’. Gaspari retrata a ‘anarquia’ do porão, as reações da oposição -consentida ou não- e os passos de Geisel e de seu chefe do Gabinete Civil, general Golbery do Couto e Silva.

Do porão emergem alguns episódios conhecidos e outros inéditos. Caso, por exemplo, dos detalhes acerca dos espantosos contatos entre o SNI e o general Antônio de Spínola, o lendário líder da revolução portuguesa de abril de 1974, que perdera poder, tentara um golpe e fugira para a Espanha, em março de 1975.

Spínola queria o apoio da ditadura brasileira para um plano mirabolante de invadir seu país. Não conseguiu exatamente o que desejava, mas se reuniu com coronéis do SNI e obteve alguma ajuda -como dinheiro e documentação falsa.

Outro episódio conhecido, ao qual o livro acrescenta informações desconhecidas, é o encontro entre Rosalyn Carter e Geisel. A mulher do novo presidente norte-americano veio ao Brasil para tratar de uma nova agenda internacional da potência que apoiara o golpe de 1964: os direitos humanos. Seus diálogos com um furibundo presidente Geisel são reproduzidos com minúcias por Gaspari, que teve acesso às notas da tradutora.

A política externa de Carter foi um novo complicador para a ditadura brasileira, que via erodir alguns pilares de suas bases de sustentação. A deterioração do ‘milagre econômico’, a inflação, o choque do petróleo, a estatização desenfrada, o dispendioso acordo nuclear com a Alemanha e o surpreendente reconhecimento do novo governo de Angola, apoiado por Fidel Castro, contribuíram para gerar insatisfações internas e externas, tanto à direita quanto à esquerda. O próprio empresariado paulista, que sempre se mantivera ao lado do regime, começava a emitir alguns sinais de descontentamento.

Emparedado pelo porão, atacado pela oposição e pelos estudantes, Geisel procurava administrar a situação distribuindo punições e concessões a todos os lados. Precisava, no entanto, tratar do futuro de seu projeto. E isso significava começar, com a necessária antecedência, a escolher seu sucessor. Muitos nomes foram cogitados, mas nenhum deles afastou Geisel e Golbery do preferido: o general João Baptista de Figueiredo, o comandante do SNI.

O primitivo general ungido por Geisel, cuja Presidência veio a se revelar um completo desastre, era a alternativa ao candidato do porão e da extrema-direita, o general Sylvio Frota. Inúmeras vezes o presidente já havia pensado em demiti-lo, mas em todas elas Frota soube defender suas peças e evitar o xeque-mate.

Finalmente, em 12 de outubro de 1977, Frota perdeu a partida. Gaspari recorre a imagens do jogo de xadrez para narrar -em ritmo de ‘thriller’- os movimentos de Geisel para bater o oponente. Demitido, Frota divulgou um manifesto denunciando a ‘complacência criminosa com a infiltração comunista e a propaganda esquerdista’. O que veio depois, Gaspari narrará no próximo e último volume de sua obra -que começará a escrever proximamente na Universidade de Harvard, nos EUA.’

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‘O romance jornalístico da história’, copyright Folha de S. Paulo, 26/06/04

‘O conjunto da obra está destinado a se tornar o que se chamaria de ‘referência obrigatória’ na historiografia da ditadura militar brasileira. Impressionam a quantidade e a qualidade das informações, não apenas pelo ineditismo do material colhido dos arquivos do general Golbery e das ‘longas, pacientes e sinceras’ entrevistas concedidas por ele e pelo presidente Geisel ao autor, mas também pela maneira como se reconstituem episódios a partir do reprocessamento de versões extraídas de recortes da imprensa e fontes bibliográficas.

Todas as virtudes do jornalista Elio Gaspari -que não são poucas e têm marca autoral- comparecem no livro: a apuração exaustiva, o engenho no ordenamento dos fatos e o estilo.

É disso, afinal, que se trata: um trabalho no qual o olhar e a faina do repórter, do editor e do redator de mão cheia se impõem. Não se espere, portanto, ao longo da leitura a visita do historiador-sociólogo ausente dos volumes anteriores. Na história de Gaspari contam menos os grandes processos e os movimentos estruturais do que as personalidades, com seus traços de caráter, seus humores, suas audácias e fraquezas.

Contam mais, também, a inclinação pelo caso fechado a pano rápido, o gosto por pequenos e significativos episódios, o prazer pelo anedótico e a paixão pela personagem. De certa forma, Gaspari comporta-se diante da história como quem deseja escrever-lhe um romance. Ao romanceá-la, no entanto, não o faz à moda dos que embaralham realidade e ficção. Jornalista, mantém-se fiel às fontes, de modo que a mão do escritor aparece na concepção, na costura e no feitio.

Como das vezes anteriores, há uma seleção vocabular característica e uma afeição peculiar pela frase. Nada mais ‘gaspariano’, por exemplo, do que descrever o general Délio Jardim de Mattos como um homem calmo e irreverente que ‘passava pelas crises como se elas fossem coquetéis’. Ou não resistir a destacar a sentença do ministro Mario Henrique Simonsen, segundo a qual ‘o poder é tão embriagador que passei a considerar o uísque supérfluo’.

Em ‘A Ditadura Encurralada’, como em todo velho e bom romance, há um conflito central. De um lado temos os generais Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva; de outro, o ministro do Exército Sylvio Frota. Geisel e Golbery defendem, da trincheira da Presidência, a distensão política. Frota comanda o que Gaspari chama de ‘anarquia militar’.

É o duelo do poder palaciano e do ordenamento institucional contra a autonomia do porão e a cegueira extremista; o embate entre a perspectiva de redemocratização e o caminho de volta às trevas. A armadilha está armada: os primeiros irão representar o bem, e o segundo, o mal.

Certamente, Elio Gaspari apresenta fatos que matizam o conflito e servem para contornar o risco do maniqueísmo. Lembrará -como já fizera em outras ocasiões- o impressionante currículo de conspirador de Geisel, o fato de que o general alinhou com a tortura e a morte de prisioneiros políticos, além de não nutrir nenhuma simpatia pelo que se entende por democracia. Ainda assim, faz-nos torcer pelo funéreo personagem.

Há um Geisel de Gaspari. Pesa a seu favor o fato de o seu perfil emergir de contatos diretos e das impressões colhidas do convívio com seu círculo pessoal. O autor teve condições incomuns para formar um juízo a respeito de seu personagem e da maneira como deveria construí-lo. Mesmo assim parece um pouco demais enfeitá-lo como representante do ‘poder republicano’ ou da ‘autoridade constitucional’ em antagonismo com a insubordinação militar. Naquele Brasil, Constituição e República ou eram um sonho ou entes ficcionais.

Não obstante, havia o conflito. Esgrimavam a extrema-direita de Frota e seus cães de guarda e a direita austera do ditador de plantão e seu astuto chefe do Gabinete Civil. Gaspari reconstitui as trajetórias da previsível colisão de maneira admirável, ora fechando o foco e congelando a cena sobre determinados fatos, ora restaurando as seqüências ou emoldurando a trama na paisagem mais ampla dos acontecimentos nacionais e internacionais.

Uma das facetas do livro mais caras ao autor é a que se refere à Geração 77, à maneira como ela foi percebida pelos órgãos de segurança e ao papel que desempenhou na reformulação do campo das esquerdas -contribuindo para desalojar o Partidão de sua velha hegemonia.

Aqui, curiosamente, se rompe o diapasão. Se ao longo da narrativa predomina a minúcia factual, nas páginas dedicadas à ‘garotada’ que sai às ruas após o ‘Pacote de Abril’, o trabalho interpretativo se sobrepõe ao descritivo. Encolhem a extensão e a profundidade dos detalhes (os personagens da época certamente encontrarão lacunas e nem sempre estarão de acordo com o que se relata) e cresce a perspectiva conceitual acerca do fenômeno. O essencial predomina sobre o acidental. E fica aberta a trilha para que novas incursões a desbravem.’