‘Citações em latim nem sempre aparecem transcritas corretamente. Algumas, incrustadas em monumentos ou desenhadas com esmero em bandeiras e estandartes, nem assim escaparam a compreensíveis cochilos, dos autores ou dos revisores.
Um dos exemplos emblemáticos é o verso ‘libertas quae sera tamen’, que está nas bandeiras de Minas Gerais e do Acre. ‘Tamen’, em latim, quer dizer ‘todavia, porém’. É, pois, uma adversativa. Os Inconfidentes, para o que queriam expressar – ‘liberdade, ainda que tarde’ -, não precisavam acrescentar a partícula final ‘tamen’, que é excessiva e desprovida de sentido, já que são omitidos os versos que lhe seguem.
O latim, em geral invocado para melhor clareza ou por simples ostentação, tem a ver, na origem, não com o ato de mostrar, mas, sim, com o de ocultar.
O ‘latinus sermo’, como foi originalmente designada essa língua, surgiu por volta do século IV a.C., na região do Lácio, ‘Latium’, costa ocidental da atual Itália. ‘Latium’ deriva do verbo ‘latere’, esconder-se.
Segundo a rica e complexa mitologia romana, o deus Saturno, ao ser expulso pelos outros deuses, escondeu-se naquela região.
É polêmica sua definição como língua morta. Está aí o papa exarando condenações do aborto, em latim. Grandes obras científicas e filosóficas foram escritas na mesma língua de encíclicas e documentos pontifícios, tais como as de Newton e de Spinoza. As citações mais freqüentes, entretanto, são extraídas de obras literárias. Horácio, Virgílio e Sêneca são os preferidos.
Profissionais do direito sabem que as armas forjadas no silêncio dos tugúrios de advogados, promotores, desembargadores e ministros, e brandidas depois em denúncias, petições, sentenças e acórdãos, são lançadas do alto das torres de papel para cumprir seus destinos, cujos insondáveis caminhos freqüentemente desdobram-se em encruzilhadas e bifurcações. E podem descer aos subterrâneos das prisões ou voar para o recinto solene dos tribunais.
Raramente o povo entende a luta do direito, de que é vítima e beneficiário, sem entretanto discernir em que medida, tanto num caso, como no outro. Mas sente na própria pele o poder das palavras. A ordem de prisão que tira a liberdade, o alvará de soltura, o imposto disfarçado em estilo elegante, mas quase sempre portador de desgraças adicionais, semelham remédios ou venenos envoltos em embalagem que doura pílulas amargas.
Tomemos um exemplo recente. As empresas de telefonia estão brigando com o governo. Ao povo é dito que na contenda o governo Lula faz o papel de mocinho, que vencerá no fim, como todos os mocinhos de todos os filmes de faroeste. As empresas são apresentadas como vilãs. Ora, não foram assinados contratos? Foram. O povo os leu? Não. Por quê?
Excetuando algum hipocondríaco empedernido, nem bulas de remédio o povo lê. E, se as ler, não as entenderá. Não pela eventual presença de palavras latinas, mas pelo estranho português em que foram redigidas. Farmácia, medicina e direito talvez liderem os territórios das coisas inexplicáveis, em domínio conexo.
Se não entende normas comezinhas do direito e da língua portuguesa, como haverá de entender as sutis complexidades de documentos eivados de expressões e citações latinas? Se o português, língua viva, oferece dificuldades na modalidade culta, que se dirá do português preferido por juristas e outros sábios do direito? Visto de outro mirante, o direito semelha, às vezes, apenas o torto autorizado, como é o caso de muitos contratos que afetam nossa vida cotidiana.
O povo, porém, é claro e conciso no diagnóstico: de urna de eleição, bunda de criança e cabeça de juiz, nunca se sabe o que pode vir.’
FAHRENHEIT 9/11
‘Fenômeno Moore’, copyright Jornal do Brasil, 19/07/04
‘O Homem-Aranha e o ogro Shrek podem brigar à vontade pela audiência. Não importa o vencedor, pois nenhum deles vai mudar o fato de que o grande herói do cinema em 2004 – e ponha grande nisso, já que se trata de alguém com 1m87 e 115 quilos – chama-se Michael Moore, 50 anos. Com seu Fahrenheit 11 de Setembro (Fahrenheit 9/11, EUA), que chega ao Brasil no próximo dia 30, o diretor americano, além de provocar seu arquiinimigo George W. Bush em período de eleições, fez pelo cinema algo que nem Spielberg foi capaz: provou que documentário dá bilheteria. Afinal, rodado ao custo de US$ 6 milhões (33 vezes a menos que o orçamento de Homem-Aranha 2), seu novo longa, premiado em Cannes com a Palma de Ouro, conseguiu arrecadar US$ 93,8 milhões em menos de um mês em cartaz.
Mas a prova de que Moore – que hoje roda Sicko, sobre o sistema de saúde nos EUA – é um fenômeno ultrapassa cifras. Envolve o surgimento de seguidores e antipatizantes de seu estilo provocador. Desde quando Moore levou o Oscar por Tiros em Columbine, em 2003, ele abriu caminho para uma safra de documentários que abraçam a iconoclastia para falar da América. É o caso de Supersize me, de Morgan Spurlock, que investiga os males à saúde causados pelo consumo dos produtos do McDonald´s, e The corporation, de Jennifer Abbott e Mark Achbar, sobre as estratégias de concorrência empresarial nos EUA. Ambos os filmes estão atualmente em cartaz no Festival Internacional de Cinema de Brasília (leia mais sobre o Festival na página B2) e chegam ao Rio no dia 27, na mostra Melhores do FIC, no Centro Cultural Banco do Brasil.
Mas há uma seleção anti-Moore em campo, formada por figuras indignadas com os ataques ao governo Bush propostos em Fahrenheit 11 de Setembro, cujo roteiro explica como o presidente americano pegou carona no 11 de Setembro para botar em prática sua belicosa estratégia de governo. Neste time, é possível escalar documentaristas como Michael Wilson, que está finalizando o longa I hate Michael Moore (Eu odeio Michael Moore), em que tenta confrontar o diretor de Tiros em Columbine com uma perspectiva ufanista da América de Bush. Outro opositor declarado do cineasta é o editor Jon Alvarez, fundador do grupo Patriotic Americans Boycotting Anti-American Hollywood (Americanos Patrióticos Boicotando a Hollywood Anti-americana), que, no site http://www.pabaah.com, chama o diretor de traidor da nação.
Mas, entre prós e contras, há um setor que está simplesmente curioso para ver o que Moore tem a mostrar em seu Fahrenheit 11 de Setembro: a comunidade de documentaristas.
– Sem entrar em juízo de valor, dizendo se os filmes de Michael Moore são bons ou ruins, é interessante que haja um cineasta que tenha conseguido juntar o espetáculo à militância. Isso aconteceu nos termos dele e nos termos permitidos pelo cinema americano. Mas dessa atitude derivou uma intervenção direta no processo eleitoral americano. Isso é uma prova do poder que o cinema pode ter – afirma o diretor Eduardo Escorel, montador de um dos maiores documentários brasileiros, Cabra marcado para morrer (1984), e que prepara atualmente o longa Vocação do poder, co-dirigido por José Joffily, sobre candidatos a vereador.
A ala brasileira dos militantes do cinema-verdade pensa que a contribuição de Moore ao filão documental não se resume a arrecadações milionárias. É o que defende o cineasta Eryk Rocha, filho de Glauber, e diretor de Rocha que voa (2002):
– Moore é a afirmação do cinema político. A Palma de Ouro que ganhou em Cannes foi uma resposta do mundo a George Bush e uma afirmação de que há um cineasta decidido a impedir a reeleição de uma tragédia. – diz Eryk, que questiona os ataques dos detratores do cineasta que o classificam como manipulador.
– Chamar Moore de manipulador é supor, ingenuamente, que uma imagem cinematográfica é inocente. Isso não existe. Toda imagem supõe uma interpretação do real. O cinema de Moore propõe diálogo com a conjuntura política americana. E é no diálogo que nasce a potência da linguagem do cinema – diz Eryk.
Consagrado diretor de fotografia, Walter Carvalho, que acaba de dirigir o documentário Moacyr, sobre um esquizofrênico pintor brasiliense, acredita que o frissom em torno de Fahrenheit nas salas de exibição é uma conseqüência do processo de descrédito pelo qual a TV passou.
– A banalização que a TV promove dos temas que aborda, pelo sensacionalismo e oportunismo, transfere para a tela grande uma expectativa que antes era atribuída ao telejornalismo. Moore realmente tornou-se um personagem da mídia. Um senhor do mundo, que provou que um documentarista pode enfrentar um exterminador com permissão oficial para matar, como Bush – diz Walter.
Para o homem que ajudou a inventar alguns dos mais bem-sucedidos modelos de programas jornalísticos da TV brasileira, como Roda viva, o jornalista Fernando Barbosa Lima define o sucesso de Michael Moore através de uma equação simples:
– O cinema vive da fantasia. O que Moore faz é buscar a verdade. Coisa que os EUA mais precisam. Eles precisam entender melhor o presidente que têm.’
VIOLÊNCIA CONTRA JORNALISTAS
‘Jornal em Rondônia é atingido por uma bomba’, copyright Folha de S. Paulo, 19/07/04
‘Uma bomba destruiu o portão do jornal ‘Diário da Amazônia’, em Porto Velho (RO), na madrugada de ontem. O ataque aconteceu logo após um carro da equipe de reportagem ter entrado no prédio. Não houve vítimas. Segundo a Polícia Civil, que realizou a perícia, não há pistas ainda sobre a autoria do ataque. Todo o material encontrado foi enviado para análise. Segundo o editor do jornal, o jornalista Nilton Salinas, o motivo para o ataque ainda é ignorado. ‘Não acredito que o atentado tenha motivações políticas.’’
Luis Fernando Veríssimo
‘Anticorpos’, copyright O Globo, 19/07/04
‘O economista italiano Paolo Labini, escrevendo sobre a vergonha que tem do atual primeiro-ministro do seu país, diz que Silvio Berlusconi ainda não merece o apelido que lhe deram, de ‘Piccolo Cesare’, mas é uma ameaça real aos ‘anticorpos’ que, numa democracia, protegem contra o vírus do autoritarismo. No caso de Berlusconi, com seu controle sobre grande parte da mídia italiana e sua necessidade de escapar de processos antigos e novos, os anticorpos ameaçados são a liberdade de imprensa e a independência da Justiça.
A Itália tem uma história de autoritarismo triunfante, dos cesares ao Duce e aos capos dei capi, e teme-se pela competência dos anticorpos para enfrentar mais esta inflamação. Já nos Estados Unidos, os anticorpos têm melhor retrospecto. Esse sucesso do ‘Fahrenheit 9/11’, do Michael Moore — o primeiro documentário a ter público de filme arrasa-quarteirão, nos Estados Unidos — é um fenômeno cultural que provavelmente não terá no eleitorado o efeito anti-Bush que muitos esperam, mas vale como a evidência mais espetacular da reação em curso aos desvios de conduta democrática que extremistas conservadores quiseram impor a uma nação aterrorizada.
Jornais que engoliram todas as mentirosas razões oficiais para ir à guerra no Iraque, e a conversa de que ser crítico era ser antipatriótico, agora se desculpam com seus leitores. Tribunais americanos estão defendendo os direitos humanos de presos contra os argumentos de emergência nacional para justificar o arbítrio, como no campo de concentração de Guantânamo. As denúncias da imprensa reacordada sobre tortura de prisioneiros iraquianos por soldados americanos deram numa comissão de inquérito no Congresso que pelo menos deve ter inibido novas torturas. Entre parênteses: devemos ter ciúmes do Iraque. Nenhuma comissão do Congresso investigou as supostas aulas técnicas dadas por instrutores do Pentágono a torturadores latino-americanos naquela Escola das Américas, na época dos generais. Fecha parênteses ressentidos.
Os anticorpos em ação hoje são iguais aos que reagiram à histeria macartista, nos anos 50, e depois à carnificina sem sentido no Vietnã. Ninguém sabe como a América profunda votará nas eleições de novembro. Pode muito bem reeleger seu projeto de Cesar. Mas a América que cultua o seu ‘Bill of Rights’ e sua tradição de irreverência, crítica livre e respeito aos direitos e à inteligência de todos, a América, enfim, admirável, está aí, viva e bem. E mobilizada contra o vírus.’