‘‘Consulte sempre um advogado’, diz inscrição em alguns automóveis. Dos jornais: ‘Depois de muito apanhar do marido, a mulher deu-lhe um copo de veneno. Cometeu crime hediondo’. Se matasse de outro modo, a pena seria menor.
Hediondo é palavra que veio do latim vulgar foetibundus, cujo significado remete ao verbo foetere, feder, exalar mau cheiro. Antes de chegar ao português, fez escala no castelhano hediondo, cujas variações incluíram fedinte e fediondo. A palavra fedelho tem significado que remete a tal raiz, pois designa quem se comporta como se estivesse envolto em cueiros.
Ao discordar de alguma coisa, o falante pode dizer ‘não me cheira bem’, sem que isso signifique que a está julgando com o olfato ou metendo o nariz onde não foi chamado.
O trabalho de interpretar é influenciado por intuições e sentimentos de quem julga. Semana passada, por sete votos a quatro, o Supremo Tribunal Federal (STF) negou decretação da inconstitucionalidade da taxação de servidores públicos inativos e pensionistas, solicitada pelo Ministério Público.
Para os dogmáticos e maniqueístas, o mundo é muito simples. Há somente os certos, eles, e os errados, os outros. Pois na mesma semana em que os ministros do STF votavam divididos, dois respeitáveis intelectuais brasileiros travaram pequena escaramuça sobre questão gramatical. E nenhum deles estava inteiramente certo, nem inteiramente errado.
Jarbas Passarinho, que honra o Jornal do Brasil com colunas sempre pertinentes e muito bem escritas, foi acusado pelo jornalista Fernando Morais, autor de memoráveis biografias de algumas celebridades nacionais, de desconhecer a concordância verbal.
Como sói ocorrer em discussões acaloradas, havia três pontos de vista em questão: o do primeiro, o do segundo e o correto.
O ex-ministro de diversos governos, em pastas diferentes, e militar de alta patente no exército, pode, sim, qualificar-se como escritor. O fato de ser militar não o desqualifica para o ofício. Fosse assim, começaríamos negando a qualificação de César para escrever a obra esplêndida que resultou de suas campanhas militares, modelo de redação no tempo que o latim era ensinado nas escolas.
Fernando Morais, que se destacou nas lutas pela redemocratização do Brasil, tem o direito de discordar dos que criticam seus escritos, como foi o caso, e estava certo ao apontar o erro de concordância detectado. Mas havia nuanças entre os dois pontos de vista.
Um dos gomos da discórdia verbal foi a frase pinçada de coluna publicada no dia 3 deste agosto. Escreveu Jarbas Passarinho: ‘A descoberta dos campos de extermínio nazistas horrorizaram (sic) o mundo’. Não há como abonar sua opção sintática. Não há silepse, como argumentou o colunista em resposta ao autor de Olga. Nos exemplos brandidos, porém, há, sim, silepse, como demonstrou nos textos selecionados.
Na frase em exame, o verbo horrorizar é obrigado a ir para o singular, para concordar com ‘a descoberta’. No grego, syllepse, que deu origem à silepse, é palavra ligada a syllambano, reunir, incluir, comprimir. Não se pode incluir, sem erro de lógica, ‘campos’ em ‘descoberta’. Se tivesse escrito ‘a maioria das descobertas horrorizaram’ ou ‘um grande número de campos horrorizaram’, teria acertado.
Mas ‘a descoberta’ acrescentou pouco. ‘Os campos de extermínio nazistas horrorizaram o mundo’. Quando? Não apenas quando foram descobertos. Sempre o foram e sempre o serão.
Podemos discordar da gramática e das leis. Nem por isso elas deixam de vigorar. Mas podemos polemizar sem ressentimento, este, sim, um copo de veneno que tomamos com a esperança de que prejudique o desafeto.’
JORNAL DA IMPRENÇA
‘Se a moda pega…’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 190/08/08
‘Depois de extasiar-se com a revoada de periquitos sobre as flores corais das suinãs, nesta ensolarada manhã invernal, Janistraquis reclamou ao deparar com a primeira colaboração que recebeu pela Internet: ‘Considerado, depois do espetáculo da natureza não merecíamos ler uma coisa desta’, suspirou. E exibiu a notícia que ainda percorre o mundo:
Centenas de pessoas tentam linchar o prefeito de Assunção
Centenas de pessoas tentaram linchar o prefeito Enrique Riera, depois de uma missa em memória das vítimas do incêndio que há duas semanas matou cerca de 400 pessoas num hipermercado da cidade.
Meu secretário argumentou, com propriedade: ‘Considerado, o linchamento, mesmo reservado a cabras safados, é péssimo exemplo para a convivência democrática, principalmente depois da missa; afinal, o Todo-Poderoso não aprova a lapidação de ninguém, mesmo que as pedras tenham sido arrancadas dalguma obra do Sérgio Naya…’
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Presidente Casseb
O considerado leitor Geraldo Bernardo Alves envia este sensacional Erramos que saiu na Folha de S. Paulo da semana passada. ‘Está um pouco atrasado, porém é eterno!’, festeja ele. Eis a obra-prima:
Diferentemente do que informou a reportagem ‘Lula mantém Meirelles apesar de denúncia’, Cássio Casseb é presidente do Banco do Brasil, e não presidente do Brasil’
Janistraquis leu, releu e suspirou: ‘Considerado, o Erramos é deveras espetacular, porém eu estava pensando mesmo na hipótese de Casseb ser o presidente do Brasil…’
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Stefan Zweig
Janistraquis também exumou de seu arquivo esta matéria intitulada Back recria últimos dias de vida de Zweig, publicada pela Folha Acontece:
A década de 40 vai ser revivida com estilo no CCBB, com a exibição de Lost Zweig, de Sylvio Back (…). Décimo longa na carreira de Back, reconstitui a última semana de vida do escritor judeu Stefan Zweig (1881-1942). O austríaco foi o autor de Brasil, País do Futuro e se suicidou, em Petrópolis, após o Carnaval de 1942, ao lado de sua mulher, num pacto até hoje misterioso (…)
Meu secretário perguntou, em tom de deslavado deboche: ‘Considerado, por que ‘após o Carnaval?’. Por acaso o chamado tríduo momesco de 1942 em Petrópolis foi tão ruim que pudesse justificar o tresloucado gesto?’
Assim redigido, o texto realmente ‘carnavaliza’ a tragédia de um casal perseguido pelo nazismo. Zweig, porém, deixou transcrita num pedaço de papel a última estrofe do Primeiro Canto de Os Lusíadas, para transmitir a dimensão do seu ato derradeiro:
No mar, tanta tormenta e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra, tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade aborrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano?
Onde terá segura a curta vida?
Que não se arme e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno.
Por essas e outras é que a coluna recomenda um encontro (diário, de preferência) com Os Lusíadas e convém ler (ou reler) a belíssima biografia escrita por Alberto Dines e intitulada Morte no Paraíso – A Tragédia de Stefan Zweig.
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De fofocas
O considerado André Fiori Patrício leu em tempo real e nós transcrevemos em câmera lenta esta notícia publicada há algumas luas no sempre criativo UOL:
Carlos Nascimento se desentendo com cúpula da Band
A coluna ‘Zapping’ informa que a briga que Carlos Nascimento teve na Band foi grave. O desentendimento se deu quando uma matéria foi ao ar sem o seu conhecimento.
Segundo as informações da colunista Fabíola Reipert, depois de encontro com a diretoria da emissora, ficou claro que é o jornalista que cuida da linha editorial do ‘Jornal da Band’. Além de apresentador, Nascimento é editor-chefe do telejornal. O jornalista teria dito que, caso alguma reportagem for editada novamente sem o aval do jornalista, ele deixaria o posto de âncora.
Janistraquis concorda inteiramente com você, Patrício: ‘Fofoca é coisa muito ruim no jornalismo, né mesmo? E quando é desleixada e mal escrita não vale nem as páginas da Veja de onze anos atrás!’
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Doce herança
O considerado Marcos Caldeira garante que escutou na rádio Itabira AM:
‘Tentativa de agressão: homem sai ileso mas quase leva três facadas em briga de rua.’
(Quase levou três sem ter levado sequer uma!!!)
Meu secretário resolveu absolver o locutor: ‘Considerado Caldeira, trata-se, na verdade, daquele alheamento do que na vida é porosidade e comunicação, de que nos fala o Carlos, em Confidência do Itabirano.’
Concordo, Marcos; mais do que ninguém você sabe: não é mole carregar a tal ‘doce herança itabirana’. E por falar nesses versos, confesso que sempre invejei a intimidade de Janistraquis com Carlos Drummond de Andrade.
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Mau gosto
O considerado leitor Sidney Borges diz o que sente quando depara com a expressão risco de morte:
‘É de doer. Também me sinto mal quando encontro algum texto no qual aparece o termo ‘planta’ designando edifício com fins industriais, pois se trata de estrangeirismo dos mais subservientes, derivado do inglês plant. Começou na Folha, onde todos os dias a rapaziada reinventa a roda. Até o ex-presidente FHC usou o termo numa entrevista recente!’
É mesmo doloroso, Sidney; risco de morte, plant, gratuííííííto, fluííííído, são palavras, expressões e modos de dizer do novíssimo Dicionário Brasileiro da Ignorância e do Mau Gosto, atualmente no prelo.
‘E só mais uma coisinha, pra terminar!’, grita Janistraquis lá de dentro; ‘ninguém precisa se deparar com coisa alguma pra obter credibilidade; basta deparar que já está muito bom.’
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Por uma vírgula
Diretor da sucursal desta coluna no Distrito Federal, de onde é possível observar as oficinas do Palácio do Planalto a forjar a blindagem dos amigos do governo, Roldão Simas Filho lia o Correio Braziliense quando tropeçou nesta notinha, discretamente amoitada na página da editoria Mundo:
‘Como eles querem que a população diferencie soldados armados que vieram vencer uma guerra de médicos que só querem garantir assistência a quem precisa?’
Roldão alterou-se: ‘Guerra de médicos?!?!?!? Isso é para vermos que falta faz uma vírgula…’
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Chão de Graciliano
O escritor e jornalista histórico Audálio Dantas, que presidiu o Sindicato dos Jornalistas de SP quando o cargo tinha importância, continua em sua doce peregrinação Brasil afora para mostrar quanta beleza criou o seu conterrâneo mais ilustre. Nesta segunda-feira ele abre no Recife a 5ª montagem da exposição ‘O Chão de Graciliano’, da qual é autor e curador.
Quem vai fazer a palestra de abertura é o mestre Ariano Suassuna. Simultaneamente, realiza-se o IX Festival de Folclore, este ano intitulado ‘A Criação Popular no Chão de Graciliano’. Esta coluna cumprimenta Audálio Dantas, por tudo de bom e importante que tem feito na airosa vida.
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Nota dez
A mais abusada provocação da semana vem da lavra sempre ardente de José Nêumanne Pinto e agasalha-se no site Sanatório da Imprensa:
‘(…) deve-se execrar a recaída totalitária da cúpula petista no poder republicano, mas ninguém pode dizer que ela não avisa antes de dar o bote. O problema maior não é que ela pretenda limitar a independência dos que se lhe opõem, mas a imensa dificuldade que estes mostram ter de entender os muitos e claríssimos sinais de que ela tentará fazê-lo(…)’.
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Errei, sim!
‘VIROU REGRA – Titulinho miseravelmente homiziado na coluna Televisão, do jornal Shopping News, de São Paulo: Excessão à regra. Desanimado, Janistraquis comentou: ‘Considerado, isso se multiplica tão cuniculturalmente que excessão já virou regra’ (Maio de 1994)’
JORNALISMO CULTURAL
‘Silêncio, som e fúria’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 12/08/08
‘Chuvas pesadas de inverno – fico sem Internet. Esqueci-me destas desventuras, mas não seja tão ligeiro em apontar um dedo acusador para a Terra Brasilis, caro leitor: na California pré-Arnold passei sem serviço quatro dos seis meses da minha breve conta com a banda larga da Pacific Bell. Até os esquilos e o cachorro do vizinho foram acusados de terem sido responsáveis pelo desastre.
O silêncio cibernético serviu como acompanhamento perfeito para a segunda parte destas reflexões sobre o estado de coisas no jornalismo de cultura – antes de ser forçada ao jejum, contudo, eu já havia percebido o quanto de nervo exposto o assunto tem. Não posso dizer que é bom que ele doa, mas sempre achei que é melhor sentir algo, nem que seja desconforto, do que ir tocando o barco como se tudo fosse azul com bolinhas cor de rosa.
E a saída, me perguntavam leitores, onde está a saída? A Internet, tão mudinha aqui em casa, seria uma delas?
A Internet tem a rapidez e a autonomia de vôo da melhor imprensa independente, sem os obstáculos da custosa produção gráfica e o sacrifício de várias árvores inocentes. O problema – ou não, dependendo do ponto de vista – é que, até o momento (para citar um amigo distante) ‘não se arrumou um jeito de ganhar dinheiro com ela’. Como diriam pessoas do meio, o modelo de negócios da Internet como mídia cultural ainda está fluido.
Digo depende do ponto de vista porque, realmente, depende. Quem adota uma postura radical provavelmente vê na inerente inviabilidade econômica do meio – como cobrar por algo que é distribuído de graça? – uma de suas maiores virtudes. Seria em última análise o retorno a um jornalismo ‘puro’, amador no sentido mais exato da palavra: feito por amor. A realização extrema do que já está se vendo agora, na prática – a não ser para poucos, jornalismo como ganha pão é pouco melhor do que um hobby.
Além dessa ‘pequena’ questão, a Internet é fluida mesmo: como o ar, como água. Ainda que com o recurso do arquivamento, da possível consulta a textos postados previamente, há algo na delicadeza etérea, uraniana, da Internet, que me lembra o rádio. Como nele, obras e textos só parecem ganhar corpo – e, com ele, peso, uma certa longevidade, uma certa autoridade – quando passam para outro suporte, mais ‘terrestre’ (cds no caso de rádio, impressora/papel no caso da rede).
Voltamos então aos primeiros parágrafos. O espaço que, no passado, títulos da imprensa cultural ocupavam na vida de gerações de leitores não se deveria também ao fato de seus títulos ocuparem um espaço físico, palpável, colecionável, fetichizável? A mudança radical do consumo de arte e cultura, que está eliminando o ‘corpo’ da música e dando uma outra cara ao cinema, também estaria criando todo um novo tipo de leitor, de leitura, de uso do jornalismo de cultura? Um leitor e uma leitura com um outro tipo de prioridade, de visão?
Continuamos a conversa semana que vem, descendo (ou subindo) por este fascinante caminho do choque de gerações.’