‘O senador Aloizio Mercadante, que é economista, líder do governo no Senado, ao comentar a ascensão e a queda vertiginosa do PT, exalou preconceitos contra os botequins e os supermercados. Ou ao menos equivocou-se nos conceitos do que sejam os estabelecimentos.
Disse Sua Excelência que seu partido tinha a ‘administração financeira e orçamentária de um botequim’ e que ‘o PT cresceu de tal forma que passou a ser uma grande rede nacional de supermercados’. O primeiro inconformado com a comparação foi o economista Roberto Macedo, doutor por Harvard, em artigo publicado em O Estado de São Paulo (25/08/05, p.2): Botequins não são como o PT.
Aos conceitos. José Pedro Machado, em seu Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, com a mais antiga documentação escrita e conhecida de muitos vocábulos estudados, dá como origem do português botequim o italiano botteghino, locale di vendita dei biglietti del teatro; banco del lotto. Conclui-se, pois, que em suas origens, na Itália, o botequim vendia entradas para o teatro e bilhetes de loteria.
O Houaiss define botequim como ‘estabelecimento comercial popular onde servem bebidas, lanches, tira-gostos e eventualmente alguns pratos simples; bar; boteco’. O Aurélio esposa os mesmos conceitos e diz que botequim é alteração de botiquim. Acrescenta que a palavra deriva de botica. Ora, botica veio do latim apotheca, depósito, conservando sentido semelhante ao que tinha o vocábulo grego apothéke, que lhe serviu de origem. Acontece que apotheca e apotheké, trazidos pelo poder difusor do Império Romano, passaram a designar farmácia. Como se sabe, o botequim serve também remédios, principalmente para as ilusões perdidas.
O jornalista e chargista Dante Mendonça transcreve o que entendo por botequim em seu delicioso livrinho Botecário: dicionário internacional de sobrevivência no boteco, sem mestre (Curitiba, Edição do Autor, 2004), ao transcrever trecho de meu livro De onde Vêm as Palavras (São Paulo, A Girafa, 2004, 14ª. edição).
Conquanto pareçam contraditórios os conceitos de dicionaristas, jornalistas e escritores, todas as designações são de domínio conexo e refletem dado essencial de nossa vida econômica: a bodega, avó do botequim, está moribunda, mas nos dias de glória foi armazém, bar, farmácia, ponto de encontro, salão de festas etc e vendia tudo o que o vivente precisava: açúcar, sal, fósforo, panela, faca, enxada, fumo, cachaça, remédio etc.
O PT caiu em desgraça, entre outras razões, por não ter a organização econômica e financeira dos botequins que, ao lado de velhos armazéns, constituíram-se em estruturas fundamentais da vida econômica luso-brasileira, herdadas da presença árabe e judaica na Pensínsula Ibérica.
Que nas críticas ao PT e à dinheirama que não foi contabilizada, não caluniem o botequim (bodega, em SC e PR; boliche no RS). O PT tem pouco mais de vinte anos e com o atual figurino é, não apenas dispensável, como insuportável. O botequim tem muitos séculos e é indispensável.’
GARCIA MÁRQUEZ
‘Poeta colombiana reúne em livro os pensamentos de García Márquez’, copyright O Globo, 29/08/05
‘Os leitores da Colômbia vêm consumindo com apetite voraz um livro que saiu há poucos dias naquele país. Embora ele seja assinado pela poeta e dramaturga Piedad Bonnett, o seu conteúdo é totalmente emprestado. Ou, mais precisamente, legalmente surrupiado de um gênio da literatura.
O seu título diz tudo: ‘O mundo segundo Gabriel García Márquez’. Piedad entregou-se à longa mas prazerosa tarefa de reler todos os livros de seu autor preferido, além de entrevistas, discursos, e reportagens que ele próprio escreveu. E desse baú ela pinçou as frases que, a seu ver, ajudam a penetrar na alma de Gabo e a refletir o seu pensamento.
– De vez em quando um dos seus personagens dispara uma verdade ou uma opinião de contundência demolidora. A pesquisa rendeu momentos magníficos, repletos do talento e também do humor desse escritor inigualável – disse ela.
Há de tudo um pouco. Afirmações, comentários, desvarios, opiniões. Em especial sobre o próprio ofício. Ao falar sobre a sua própria classe, García Márquez a dividiu em dois bandos bem distintos. ‘Nós, escritores, estamos divididos em dois: os que escrevem e os que não escrevem. Os que não escrevem são os que mais se vê, os que preenchem o mundo da moda. É moda ser escritor, ainda que seja sem escrever. E o estar na moda exige tantos compromissos sociais como os de um artista do cinema ou uma rainha da beleza. Os outros escritores, os que escrevem, são os que se vê menos, precisamente porque estão demasiadamente ocupados escrevendo’.
Gabo descreve a sua ideologia com franqueza: ‘Sou um comunista que não encontra onde sentar-se’. Há também várias definições do amor nesse glossário. Uma delas: ‘O amor é uma doença do fígado tão contagiosa como o suicídio, que é uma das complicações mortais’.
A América Latina é definida por Gabo como ‘essa pátria imensa de homens alucinados e mulheres históricas, cuja teimosia sem fim se confunde com a lenda’. O escritor tem uma curiosa, se não intrigante, definição sobre a sua própria esposa, Mercedes: ‘Cheguei a conhecê-la tanto que já não tenho a menor idéia de como ela é, na realidade’.
Para ele, os relatos curtos que escreve são mais trabalhosos que os demais: ‘O romance é mais hospitaleiro que o conto. É preciso começar só uma vez, enquanto começar um conto custa tanto trabalho quanto começar um romance completo’.
O seu conceito de realidade é tão singelo quanto poético: ‘Cedo ou tarde a realidade termina por dar razão à imaginação’.
Pérolas de Gabo
‘A gramática é um espartilho e faz tempo que o mandei ao diabo’
‘Todo bom romance é uma adivinhação do mundo’
‘A música põe ordem no silêncio’
‘A fama me intimida e a consagração me parece muito a morte’
‘O ruim da morte é que é para sempre’’
MAGAZINE LITTÉRAIRE
‘Cartas que mentem e falam a verdade’, copyright O Estado de S. Paulo, 28/08/05
‘Volta e meia são publicadas ou reeditadas cartas de gente famosa. Há algumas realmente notáveis, como as trocadas entre o pintor Vincent van Gogh e seu irmão Theo, ou as 287 que Sigmund Freud endereçou a seu colega Wilhelm Fliess e testemunham nada menos do que a invenção de uma nova disciplina, a psicanálise. Freud morava em Viena, Fliess em Berlim. Através da correspondência, discutiam, no final do século 19, novas idéias sobre a saúde mental e o funcionamento do psiquismo. As de Fliess se perderam. As de Freud constituem material de leitura obrigatória para qualquer estudioso da área. O que aconteceria se naquela época existisse o e-mail?
Melhor nem pensar. Talvez toda uma página da invenção da psicanálise ficasse na sombra, já que nas cartas Freud relatava cada passo que dava, tateando em busca de respostas para suas dúvidas. As cartas são testemunho dos erros que levam à invenção. Este é apenas um exemplo.
A revista ‘Magazine Littéraire’ traz um amplo dossiê sobre a importância da análise da correspondência de escritores, como Cícero, Heloísa e Abelardo, Madame de Sévigné, Diderot, Kafka, Chateaubriand, Flaubert, Apollinaire, Proust, Stefan Zweig e outros.
Um dos entrevistados é o cineasta Pierre Dumayet, conhecido na França por seus programas sobre escritores, produzidos para a TV. Cada vez mais Dumayet tem se apoiado na correspondência como forma de traçar o perfil dos personagens literários: ‘Vocês se recusariam a participar de um jantar que tivesse como vizinhos de mesa Hugo e Michelet?’, pergunta. Pois bem, relegar a correspondência a uma espécie de nível inferior da produção literária seria fechar essa possibilidade de diálogo com os grandes autores. Dumayet tem a plena convicção de que ‘a correspondência de um escritor nos diz muito sobre o seu trabalho e sobre o sentido dos seus textos’.
O que não quer dizer que se deva confiar plenamente no que dizem as cartas. Há autores que sabem, ou pelo menos desconfiam ou têm a esperança, de que escrevem para a posteridade. Dirigindo-se ao seu correspondente, dirigem-se, na verdade, aos seus biógrafos, e podem ser tentados tanto a embelezar atos e pensamentos como a expurgar o que acharem inconveniente.
Fanático pelas cartas, Dumayet tem a impressão de que alguns dos seus ídolos mentem. Como Flaubert, que escreve a sua amante Louise Colet uma série fabulosa de cartas nas quais discute desde a relação entre os dois até detalhes da teoria literária. Também expõe dúvidas surgidas durante a construção de suas obras, em especial de ‘Madame Bovary’. Numa delas, diz que trabalhava numa cena famosa de Emma Bovary, quando, tomado pelo amor, decidiu interromper tudo e escrever para a amada. Dumayet tem certeza de que ele mente. Mas seria uma mentira escrita com tamanho calor e elaboração literária que seria impossível reler aquela mesma cena de Emma Bovary sem pensar na carta de Flaubert a Louise.’