Wednesday, 04 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Deonísio da Silva

‘O semblante, os gestos e o tom de voz estão presentes nos atos de fala para melhorar a expressão, como se as palavras não fossem suficientes. E na fala não são de fato. Sussurros, cochichos, sorrisos, risos, gargalhadas e gritos complementam o que se quer dizer.

Para melhorar o desempenho, valemo-nos do corpo também em expressões denotativas ou conotativas, de que são exemplos dedo de prosa, mão dupla, contramão, palmo, braço direito, braça, pegar no pé, pisar no calo.

O repórter diz que certo político está nadando de braçadas, mas que tal desempenho não seria possível se não contasse com qualificado assessor, que é seu braço direito. De outro mirante, a câmera mostra que o político é canhoto. Mas não há contradição no enunciado. Braço direito é metáfora.

Corpo veio do latim ‘corpus’. A palavra chegou ao português no alvorecer do segundo milênio, já designando a estrutura física do organismo vivo e coberta de um significado específico que a opunha à alma.

Perde-se nas brumas o tempo a origem de o corpo servir de medida. Ao instruir Noé para fazer a Arca, Deus lança mão do recurso: ‘Desta maneira a farás: o comprimento da arca será de trezentos côvados, a sua largura de cinqüenta e a sua altura de trinta.’ Côvado veio do latim ‘cubitus’, cotovelo, e é medida de comprimento. Equivale a 66 cm.

O escritor Sérgio Faraco fez cuidadosa seleção de poemas sobre o corpo humano, destacando temas recorrentes num pequeno volume intitulado Livro do Corpo, que se fecha com estes versos de Fernando Pessoa, exalados depois de aludir aos cabelos, aos seios, aos braços e às mãos da mulher amada: ‘Apetece como um barco./ Tem qualquer coisa de gomo./ Meu Deus, quando é que eu embarco?/ Ó fome, quando é que eu como?’

Mão também veio do latim ‘manus’. Além de designar a parte de nosso corpo ligada ao antebraço pelo punho, essencial à transformação do macaco em homem, pelo trabalho, segundo afirmação de Friedrich Engels num ensaio clássico, há dezenas de outros significados para mão, incluindo, por metáfora, a pata dianteira dos quadrúpedes.

Mão é também um conjunto de espigas de milho, cujo número varia de 25, em Alagoas, a 64, no Rio Grande do Sul. Em São Paulo, a mão de milho tem 60 espigas e em Pernambuco, 50.

Designa também camada de tinta e direção no trânsito, além de indicar 25 folhas de papel e servir de medida sob a designação de palmo.

Na Índia, a mão corresponde a dois palmos, pois a medida começa no cotovelo e vai até a ponta do dedo médio. Também os cabelos ajudam homens e mulheres na complexa tarefa da expressão, de que é exemplo a trança.

Unha, do diminutivo latino ‘ungula’, de ‘unguis’, designa tanto a unha humana quanto o casco e a garra dos animais. Ademais, também designa a parte do martelo que é utilizada para arrancar pregos, sendo neste sentido sinônimo de orelha.

A unha presta-se também a algumas metáforas: ‘unha e carne’, para demonstrar união muito íntima entre duas pessoas em seus propósitos; ‘com unhas e dentes’, indicando ação firme, e ‘roer as unhas’, designando situação complicada. O ato de roer pode estar vinculado à antiga necessidade de afiar as unhas.

Falam também os olhos, como na expressão olho-grande, originalmente designando no português o menino que espiava as moças pelo buraco da fechadura enquanto elas trocavam de roupa. O olho-grande primeiramente indicava desejo luxurioso e mais tarde estendeu-se a outros domínios.

Assim, exagerar na contemplação dos rebanhos do vizinho e outros itens de seu patrimônio passou a sugerir deformação psicológica conhecida também como coisa de quem tinha o olho-grande. Por metáfora, o olho-grande é conhecido também como olho-gordo.’



Sérgio Rodrigues

‘Um tal de ‘preconceito lingüístico’’, copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 3/09/04

‘A idéia de ‘preconceito lingüístico’, popularizada pelo lingüista Marcos Bagno, da UnB, é de longe a mais pop criada pela moderna lingüística brasileira. Prestando atenção, vamos flagrar a patrulha espontânea do ‘preconceito lingüístico’ em plena ação aqui e ali, em grupos de discussão na internet ou no bar, reagindo a qualquer reparo crítico que tenha a língua por alvo. Para ficar num exemplo só: outro dia, numa comunidade online dessas que estão na moda, um cidadão de Portugal se assustou com a expressão ‘linha do tempo’ que um brasileiro usara. Propôs sua substituição por ‘cronologia’ e a chamou de ‘brasileirismo horroroso’. Reação – compreensível – do nosso conterrâneo: ‘Olha o preconceito lingüístico aí!’.

Em tudo isso, ouve-se claramente o eco do livrinho (150 páginas em formato de bolso) Preconceito lingüístico – o que é, como se faz (Edições Loyola), de Bagno, um pequeno best-seller que foi lançado em 1999 e já está na 12a edição. Não é pouca coisa. Normalmente, os lingüistas são quase invisíveis fora da universidade. Apesar dos esforços de profissionais como Sirio Possenti, José Luiz Fiorin, Carlos Alberto Faraco e outros, a idéia de que a língua tem uma dimensão profunda para além da ‘norma culta’ permanece ignorada pela imprensa e público em geral. Estes ainda trabalham com as categorias mentais de erro e acerto das gramáticas normativas, território dos colunistas tipo Pasquale Cipro Neto.

Não foi de graça que Marcos Bagno, e só ele, conseguiu romper o cerco. O preço que pagou pelo privilégio é o que este artigo pretende discutir. Será que a missão de combater inimigos barra-pesada não leva Preconceito lingüístico a adotar posições igualmente indefensáveis no lado oposto? Peça de propaganda política (quase) inteiramente assumida, o livro tem uma alma indignada e um tom de panfleto que devem soar como música a certos leitores, mas dão a outros a nítida – e meio cômica – impressão de que a revolução, quando vier, começará pelo idioma.

Nada disso é motivo para não ler Preconceito lingüístico. Quando o fiz, há cinco anos, ajudou a abrir minha cabeça. Embora muitas vezes simplifique demais seus argumentos, Bagno desmonta com competência certas estruturas mentais arcaicas que dominam as discussões sobre língua e linguagem no Brasil. É difícil não vibrar quando ele denuncia a nostalgia lusitana que ainda assombra boas cabeças brasileiras, ou quando expõe ao ridículo os ‘conselheiros gramaticais’ que se especializaram em, por sua vez, expor ao ridículo quem ‘erra’ – gente como Napoleão Mendes de Almeida, Luiz Antonio Sacconi e Dad Squarisi. A idéia aqui é política do início ao fim: a língua é um instrumento de dominação de classe, ponto. Não está errado: de fato, é isso também. No entanto…

No entanto, confesso que para mim, hoje, predomina um certo enfado – a sensação de que esse papo já deu o que tinha que dar. Parece claro que qualquer análise que pese demais a mão na patrulha do ‘preconceito lingüístico’ tem limitações graves. Levado às últimas conseqüências, queira ou não queira Bagno, seu raciocínio dá no seguinte impasse: como ensinar um jovem ‘do povo’ a ler um poeta ‘de elite’ como Carlos Drummond de Andrade sem agredir profundamente seu amor próprio, sem desfigurar-lhe a alma?

Das duas, uma: ou se decide, como Preconceito lingüístico passa perto de afirmar, que ele não tem nada a ganhar aprendendo tal coisa, ou se sustenta fervorosamente que todo jovem, ‘do povo’ ou não, deve ter à mão os instrumentos para, se assim o desejar, entender Drummond, adorar Drummond, odiar Drummond e um dia, quem sabe, superar Drummond. A tradição é pesada, quase insuportavelmente intimidadora, cruel até. É mesmo. Mas se a rejeitarmos em bloco terminaremos de mãos vazias.

Bagno parte de um desejo nobre: o de que o garoto pobre que fala ‘bicicreta’ seja respeitado em sua fascinante singularidade lingüística – que no caso tem raízes profundas na história do português, apressa-se a lembrar o lingüista, citando ocorrências como a ‘frecha’ de Camões. Perfeito, mas seu passo seguinte, a meu ver, é um escorregão: sustentar que a escola não deve dizer ao tal menino, a quem nunca deram nem um velocípede de segunda mão, que o certo é ‘bicicleta’. Que a escola deve dizer a ele que não existe o ‘certo’, que o ‘certo’ é só uma das estratégias da dominação e da violência, e que o modo de falar do menino é bonito. Que o menino, enfim, é bonito.

Faz sentido? Para entender esse debate, é preciso levar em conta a bifurcação decisiva à qual a esquerda ocidental chegou no último quarto do século 20. Metade dela tomou o caminho da direita, aproximando-se do centro. Continua a acreditar no valor da educação universalista instituída pelas revoluções burguesas do século 18 e acha que a auto-estima é importante, claro, mas que o desafio também é. Concorda que não se deve zombar de ninguém por falar variedades menos cultas da língua – ou regionais, idiossincráticas, cheias de gírias, o que seja -, assim como não se deve humilhar ninguém por usar as roupas que usa, votar no deputado em que vota, namorar quem namora.

Tudo ótimo, mas essa gente também insiste em acreditar que o menino que fala ‘bicicreta’ pode e deve aprender a falar ‘bicicleta’, por que não? Da mesma forma que pode e deve aprender, se tiver sorte e mostrar inclinação para tanto, a desenhar uma bicicleta, a traduzi-la por bike e vélo, a construir uma bicicleta com material de ferro-velho, a gerenciar uma fábrica de bicicletas, a pintar quadros retratando um ciclista como os de Cícero Dias, a disputar a Volta da França…

A verdade é que não deveria haver limites para esse menino. Respeitá-lo é uma coisa. Fixar-lhe a situação de origem como horizonte, aprisioná-lo num nicho dialetal como se sua língua fosse, sei lá, um traço genético, aí está o disparate. Pois é exatamente isso o que tenta fazer a metade da esquerda que, naquela bifurcação ali de cima, optou pelo caminho canhoto e inventou a onda multiculturalista e politicamente correta, da qual a crítica de Bagno ao ‘preconceito lingüístico’ é representante de destaque. Com sua ênfase na auto-estima dos explorados, seu ódio aos cânones – todos construídos pelo dominador, o ‘homem branco heterossexual’ -, sua condescendência morninha, a onda multicultural tem um discurso paralisante que, a despeito de suas intenções, acaba por ser claramente conservador.’



Oscar Dias Corrêa

‘Língua portuguesa: Cartilha nas Câmaras’, copyright Jornal do Brasil, 1/09/04

‘Este país, que é o melhor país do mundo, apresenta, em (triste) comparação, situações que nos deixam atônitos e nos fazem adiar os bons prognósticos quanto ao nosso futuro, que, aliás, nunca é presente. Agora, por exemplo, estamos diante da determinação de alguns Juízos Eleitorais para proceder a exame de alfabetização de candidatos à vereança que põe à mostra uma dessas esdrúxulas situações. Quem haveria de dizer que candidatos a representante do povo, com voz e votos nas Câmaras municipais, careceriam de comprovar sua alfabetização!

É inacreditável que devam fazer a prova e, pior, que o índice de reprovados – com a comprovação do analfabetismo – seja elevadíssimo e esteja causando inusitado rebuliço nas hostes partidárias e na própria vida municipal. A Constituição de 1988, se no artigo 14, parágrafo 1º, admite o alistamento e o voto do analfabeto (alínea a), já no parágrafo 4º, categoricamente, dispõe que ‘são inelegíveis os inalistáveis e os analfabetos’.

A justificativa é óbvia: como aceitar que alguém, que não tenha condições elementares de ler e escrever, possa representar os seus concidadãos e atuar legitimamente por eles? É claro que se pode culpar o poder público, que não lhes deu condições de alfabetizar-se; mas enquanto isso não se der, a proibição é total.

E, o que é mais estranho, tomada agora a decisão de fazer a prova da alfabetização, atinge ela muitos representantes, eleitos anteriormente, que já exerciam ou exercem o mandato e que, na verdade, sofrem do mesmo mal do analfabetismo.

Atônitos, os responsáveis pela Justiça Eleitoral se questionam: também esses estarão sujeitos à prova e à aprovação ou reprovação? E o que acontecerá aos novos candidatos, já aprovados nas respectivas convenções municipais, incluídos nas chapas partidárias e em plena campanha pela conquista dos votos? Terão de renunciar às suas candidaturas? Poderão participar dos horários eleitorais gratuitos no rádio e na TV? E se não passarem nas próximas provas a que serão submetidos? Os votos que receberem serão computados? Afinal, falta um mês e meio para as eleições do próximo dia 3 de outubro.

Não somos nós que o decidiremos, mas os que têm responsabilidade de controlar o pleito, inclusive e sobretudo os juízes eleitorais. Fica-nos a dolorosa perplexidade de verificar como, pela incompetência e descaso dos nossos governos, chegamos a este impasse, que fere a legitimidade de nossa fragílima democracia e só não é mais grave porque, por milagre, não é maioria o número dos reprovados no exame primário da representatividade.

Quando nada, e sem análise de fundo da questão – que aqui não cabe – esperamos que a exigência tenha conseqüências prontas: todos os que aspiram à representação dos munícipes por certo se matricularão, imediatamente, nos cursos de alfabetização para poderem disputar o pleito. E o nosso conhecido e amplo analfabetismo sofrerá o impacto da iniciativa, com a conseqüente queda no índice deprimente.

Os próprios partidos (e como são partidos!) certamente criarão seus próprios cursos de alfabetização, para fugir à vergonha de ter candidatos recusados pelo Juiz Eleitoral por não saberem ler e escrever primariamente. Ou então, surgirão em todo o país os cursos intensivos de alfabetização, nos quais se matricularão os candidatos ao pleito, a fim de vencerem esse inesperado obstáculo que lhe foi imposto.

Certamente, com isso, o nível das nossas Câmaras municipais se elevará com o reforço de vereadores alfabetizados e os munícipes se orgulharão da representação que conquistaram, já então em condições de ler as sugestões e os pedidos que lhes sejam enviados, e de redigir os projetos que lhes defendam os justos interesses. Ou até mesmo expressar por escrito os agradecimentos aos votos recebidos nas próximas urnas. *Jurista e membro da Academia Brasileira de Letras’



JORNALISMO CULTURAL
Ana Maria Bahiana

‘Corações e mentes’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 31/08/04

‘Recebo, a propósito de estilingadas recentes e passadas aqui neste verdadeiro espaço cultural, um volume considerável de e-mails. Respondo pessoalmente sempre que posso – sou da velha escola, vocês sabem. Mas algumas questões são amplas o bastante para merecer dois dedos de prosa, aqui.

Por exemplo: um número considerável de missivas digitais quer saber o que eu acho ‘da situação do jornalismo cultural em geral’ para algum trabalho/publicação/ensaio de faculdade. A questão é mal formulada o bastante para me fazer supor 1. um professor preguiçoso e 2. um aluno desmotivado. É o tipo de pergunta que, se não triturada a tempo com enorme e rigoroso carinho pela dura realidade, vai crescer para se tornar aquela coisa que infalivelmente se escuta hoje, nas raras entrevistas ao vivo que ainda se fazem: ‘e aí, aquele lance da/do…(preencha com o que for mais conveniente: guitarra, cinema brasileiro, cultura urbana, cura do câncer, cirugia plástica, piercing, fome no mundo)… como é que tá?’

Eis a essência, meus caros futuros jornalistas culturais, do que está profundamente errado com o setor: ninguém está ensinando vocês a fazer as verdadeiras perguntas, talvez porque 1. isso dá um trabalho danado e 2. ninguém parece interessado em ouvir as verdadeiras respostas.

Mas para não dizer que não atendi seus anseios, aqui vai a resposta: a situção vai mal. Muito mal. Agora voltem à aula. Ou, diante das circunstâncias, talvez não.

Uma proposta de trabalho, contudo, tem um ângulo mais agudo: Fabiane Menezes, da PUC PR, me aparece com um projeto de conclusão de curso sobre a cena musical de Curitiba e, escapando inesperadamente do óbvio, quer saber sobre ‘importação da cultura americana. Sobre a tal ‘conspiração’ para conquistar corações e mentes.’ E, sabiamente, percebe de cara o que lhe falta: ‘não encontrei nenhum artigo ou reportagem consistente que me ajudasse a iniciar essa pesquisa’.

Não encontrou nem vai encontrar com grande facilidade, Fabiane, porque hoje este tema desimportante empalidece diante de controvérsias de peso tais como o que Lobão fará se topar com Caetano Veloso nas coxias de algum show e qual será a próxima tendência de consumo adotada pelos metrosexuais.

Hesitaria em enviá-la diretamente para os braços da academia, na qual uma infinidade de palavras repletas de sílabas foram, são, serão escritas para provar com absoluta certeza quase a mesma coisa que os caipiras carolas de George W. Bush acreditam piamente: que Lá Fora mora um Diabão guloso que bebe sangue de adolescentes, cérebros de criancinhas e corações de mãe.

Mando-a, então, ao videoclube mais próximo, onde, com urgência, você deve alugar o vídeo ou DVD de Sob a Neblina da Guerra, o sensacional documentário de Errol Morris (aliás, já que você foi até lá, pergunte se eles têm outras duas obras primas de Morris: Thin Blue Line e Gates of Heaven. Leve para casa os três e, de além de entender tudo muito mais você terá uma grande lição do que o documentário é quando se tira a auto-promoção da equação).

Vencedor do Oscar este ano, Neblina é um fantástico perfil de Robert McNamara, o Secretário de Defesa dos Estados Unidos durante a Guerra do Vietnã que cunhou a expressão ‘conquistar corações e mentes’ – que, aliás, ele repete, num contexto maravilhoso, diante da câmera de Morris.

A partir daí, caminhe: passo a passo, evitando o óbvio, procurando a riqueza incomparável das sombras. A alguma conclusão você vai chegar, Fabiane.

Agora, para a galera de ainda tem dificuldade em compreender regência, concordância e o uso correto de preposições… que é que vocês estão fazendo aqui, hein?’