Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Deonísio da Silva

‘Servidor já vinha designando funções bem diferentes daquelas que teve na origem. Nunca, porém, ampliou tanto os significados como no século passado, com a chegada da informática. Servidor, derivado do latim servus, servo, escravo, mas com sutis diferenciações entre um e outro, designa o computador que provê dados e serviços a outros computadores, ligados entre si, perfazendo uma rede e ensejando que os recursos sejam compartilhados.

O inglês tem servitor, criado, servente, e servo, redução de servomechanism, neologismo que a língua criou para designar instância a serviço de outra, na mecânica como na eletrônica. E tem também slave, escravo, designando computador periférico ou terminal, dependente de computador central. A palavra aparece nos compostos slave cache, slave store, slave terminal, slave processor e slave tube, designando escravos eletrônicos encarregados de guardar dados, nos dois primeiros casos, e escravos incumbidos de apresentar e processar o que o computador central determina, nos dois seguintes, e monitor escravo que mostra exatamente o que a primeira unidade está exibindo. Ora, escravo e slave procedem do latim slavus ou sclavus e do grego bizantino sklábos, por força de povos eslavos terem sido maciçamente escravizados na Alta Idade Média.

O inglês, o latim do império, invadiu a língua portuguesa. Precisamos disciplinar os neologismos à luz da consolidação que virá do uso. Aristóteles definiu esse processo como entelequia, entendida como plenitude de criação ou de mudança, de sentido diferente ou contrário ao processo que as originou. Afinal, como traduziremos mouse? Rato? E no manual de instruções leremos a recomendação para determinada tarefa: ‘aperte o rato sobre a figura’? Provavelmente erraremos menos. Afinal, outro servidor, o criado-mudo, não fala, não reclama nem denuncia que o obriguemos ao silêncio. E o latim, nossa língua-mãe, não tinha criado-mudo. Não de madeira.

No caso do inglês, a mudança será mais fácil, pois o inglês não é pai nem mãe, é vizinho longínquo, aproximado por guerras e tecnologia. Talvez a tecnologia, parafraseando o que disse da paz o teórico Clausewitz, seja a continuação da guerra por outros meios.

As palavras não dizem tudo explicitamente. Têm estratégias de silêncio e mantêm significados subjacentes. Será que a informática anuncia um tempo em que escravizaremos apenas as máquinas? Ou o computador apenas substituirá o feitor? A abolição da escravatura teve espíritos altruístas que a abominaram com candentes poesias e prosas em nossas letras, mas diagnósticos frios atestam um realismo que pode ter sido a causa maior.

Não precisamos ser economistas ou sociólogos para vislumbrar essa verdade. O dicionário Aurélio abona escravo como adjetivo com este exemplo de Alberto Passos Guimarães, extraído de Quatro séculos de latifúndio: ‘em 1884, o trabalho livre mostrava-se bastante mais lucrativo do que o trabalho escravo’.

Na origem, escravo, servo e servidor tiveram outros sentidos, modificados ao longo dos séculos. Ainda hoje podemos comprovar as discrepâncias. Vejamos este espelho da imprensa: ‘Os servidores públicos não tiveram reajustes salariais durante os dois governos de Fernando Henrique Cardoso. E quando o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva determinou apenas 1%, uma silenciosa revolta apossou-se de todos eles’.

Na mesma página, multinacional apresenta liquidação de servidores: ‘Servidores por apenas R$ 1.200’. Naturalmente, embora as duas classes tenham sido tratadas como escravos, não são os servidores aludidos na notícia que estão à venda no anúncio. A ironia, porém, às vezes se faz por si mesma.’



Sergio Bermudes

‘Dicionários’, copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br) , 4/11/04

‘Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e a sua equipe abriram o ‘Dicionário da Língua Portuguesa’ com citações de Pablo Neruda, Gilberto Amado e Samuel Johnson. Gilberto declara a sua dependência do dicionário: ‘Escrevo com o dicionário. Sem dicionário não posso escrever – como escritor’. No ‘Dicionário Houaiss da língua portuguesa’, Antônio Houaiss e os seus colaboradores também invocaram pensamentos de todos os tempos sobre os léxicos. Lá estão Garcia D’Orta, Horácio, Ludwig Wittgenstein e Vergílio Ferreira. Wittgenstein: ‘Os limites da minha linguagem denotam os limites do meu mundo’. E tantas outras citações poder-se-iam ter repetido, de autores que falaram do dicionário com respeito hierático, admiração, deslumbramento. Veja-se esta, colhida no ‘Dicionário Universal de Citações’, de Paulo Rónai, na qual José Lins do Rego diz que o dicionário ‘tem de ser paternal, simples, dando-nos o valor e o significado das coisas, sem pretensões, capaz da mais franca intimidade, generoso, probo, fácil’. Merecidas loas a esse instrumento de formação da linguagem e de preservação dela, indispensável, não só aos literatos, como, igualmente, a todas as pessoas que, de qualquer modo, precisam comunicar fatos, idéias, sentimentos. Com os dicionários, põem-se as palavras lá no alto, claras e brilhantes como estrelas, como aconselha Vieira.

Ora é a simples grafia correta da palavra, especialmente daquelas que não se nos fixa o bestunto – e aqui está um termo a ser procurado. Em silêncio, com discrição, o dicionário explicará o significado dele e dos vocábulos vizinhos, onde baterem os olhos. Abrirá o seu mar infindo à navegação do consulente, desbravador dos mistérios da língua, descobridor das suas pulcritudes. Feínha embora, está lá essa palavra porque os dicionaristas a dicionarizaram, entronizando-a na língua, numa presença imarcescível – e não será melhor verificar a grafia correta desse adjetivo, no qual o s traiçoeiro bem pode vir depois do r? Viva! Fui ver, acertei e ainda o descobri, num heróico de Cláudio Manuel da Costa: ‘A imarcescível hera, o verde louro’ (herói foi ele; heróico o seu decassílabo). Ora a explicação da palavra, com as suas diferentes acepções, segredos, alcance e os sinônimos, perfeitos e imperfeitos. Tudo se encontra nos dicionários, ou quase tudo. Palavras novas já lá estão; palavras velhas ainda estão lá – e juro que me saíram espontâneos esses dois versos de nove sílabas (por que não nonassílabos?) que, segundo a gramática, nem são gregorianos nem jâmbicos, pois não acentuados na 3ª, 6ª e 9ª sílabas, porém modernos, pois tônicos na 4ª e 9ª. Medrar, no sentido de recuar amedrontado; peitar, na acepção de enfrentar. Roga-se a mais medonha das pragas ao dicionarista que, um dia, incorporar anglicismos da linguagem de uns papalvos do mercado, como estartar (de start), numa língua onde se encontram começar, iniciar, principiar; bidar (do inglês bid), no significado de licitar; bilar – Santo Deus! – equivalente a mandar a conta. Deve-se pôr cuidado na seleção dos neologismos. Espera-se que os dicionários não coonestem as porcarias da linguagem dos e-mails. Fiquem neles os arcaísmos, documento da constante evolução do idioma oficial do Brasil, que é a língua portuguesa, conforme o art. 13 da Constituição. Nas suas petições incomparáveis, Dario de Almeida Magalhães empregava substantivos como moxinifada, que usei, de brincadeira, num bilhete a Alberto Dines e o levou asinha ao léxico (parênteses para recomendar o livro recém-lançado de Dines, na realidade livro diferente das duas edições anteriores. Crítico severo, Alberto Venancio Filho diz que, no gênero, ‘Morte no paraíso – a tragédia de Stefan Zweig’ é uma das melhores biografias escritas no Brasil). Há quanto tempo não se escrevem bragas, no sentido de calças, sobrevivente em braguilha; louçania, taful? De novo as petições do Dr. Dario com expressões como ‘deu às de vila-diogo’, ou ‘cantou a palinódia’.

Vez por outra, os dicionários cochilam, ou não cobrem toda a extensão do vocábulo. Ouvi falar que certo dicionário espanhol apresentava ‘ajabebe’ como ‘el mismo que jabebe’, e ‘jabebe’ como ‘el mismo que ajabebe’. Nehemias Gueiros contava que o seu pai, pastor no Recife, presenteava os fiéis com dicionários baratos, ao alcance do seu bolso. Um dia, ouviu de um deles: ‘Pastor Jerônimo, eu não vou mais estudar no seu dicionário, não. É um tal de ‘lugúbre’, vide ‘funébre’; ‘funébre’, vide ‘lugúbre’. Assim não dá’. Peroá, o mais comum dos peixes dos verões da minha infância, em Marataíses, a praia dos veranistas de Cachoeiro de Itapemirim (os locais detestavam o gentílico maratimba), aparece, no ‘Laudelino Freire’, apenas como ‘peixe fluvial’. Não é, ao menos nas minhas bandas, onde é marítimo e fica mais próximo da descrição de cangulo, oferecida pelo ‘Aurélio’, peixe-porco no litoral fluminense. Amaro Martins de Almeida lembrava o comerciante de Campos, que mandou um empregado comprar um dicionário e logo o devolveu, pela falta do índice. Pois saibam quantos estas linhas virem que tem índice remissivo o ‘Dicionário de Sinônimos’ de Antenor Nascentes. Confira-se a 3ª edição, Nova Fronteira, 1981, página 369 e seguintes.

Os dicionários não constituem apenas uma utilidade, mas também fonte de prazer estético, para os lexicófilos. Inefável o gosto do manuseio deles, especialmente os clássicos, para aprender, conferir, relembrar, comparar, como se, aberto um cofre de moedas, se examinasse e selecionasse uma após a outra.

Há exagero na afirmação de Antenor Nascentes, para quem ‘A língua portuguesa tem dois dicionários: o de Morais e o de Caldas Aulete’. Sem dúvida, o ‘Caldas Aulete’ converteu-se em padrão da arte de dicionarizar, tanto quanto, em língua espanhola, o ‘Corominas’, ou o majestoso ‘Dicionário da Real Academia Espanhola’. Onde ficam, porém, Cândido de Figueredo, da predileção de Rui Barbosa, ou o completo ‘Laudelino Freire’, dois léxicos primorosos, do lado de lá e de cá do Atlântico? Na atualidade, o ‘Houaiss’, excelente embora, ainda não conquistou as galas de dicionário do dia, como é o ‘Aurélio’, cuja fama premia a dedicação do dicionarista que lhe dá o nome.

No tocante aos bilíngües, não se podem esquecer, para socorro de quem fala português, dicionários célebres, como o Parlagreco, para italiano, e o velho Domingos de Azevedo, para o francês. O Langenscheidt ajuda quem fala inglês a decifrar o alemão. Quanto aos de latim, nunca se podem dispensar o ‘Torrinha’, favorito dos alunos de latim, quando latim se estudava, tanto quanto, para estudos maiores, o ‘Diccionário Manual Griego-Latino-Español’, dos padres escolápios. Não se deve esquecer o ‘Saraiva’, plasmado no ‘Quicherat’, ambos ensinando a etimologia dos vocábulos latinos. Nesse campo, parece insuperável o ‘Dictionnaire Étymologique de la Langue Latine’, de Ernout e Meillet, que desvenda a formação dos vocábulos latinos. Outro dicionário francês, de Henri Goelzer, supre a necessidade de um léxico que dê o sinônimo latino das palavras de uma língua viva, no caso o francês.

Encantam os dicionários temáticos, como este pitoresco ‘Dictionnaire de symboles’, dedicado a mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números, pacientemente recolhidos por Jean Chevalier e Alain Gheerbrant. Ele é meu acompanhante neste fim de semana de mar grosso e cerração densa, e sugeriu o assunto da coluna de hoje.

Durante algum tempo, resisti à tentação de especular o preço da mais completa edição do OED – Oxford English Dictionary, sedutoramente exposta na vitrine da Oxford University Press, na avenida Madison, em Nova York. Imaginava custar alguns milhares de dólares. Finalmente, sucumbi e telefonei à editora. Tive a surpresa do preço acessível. Por menos de mil dólares, frete aéreo incluído, os 20 volumes pousam na minha estante. Aliás, há uma longa linha de dicionários ‘Oxford’, de todos os formatos e assuntos, incluídos nela o preciso Dicionário Etimológico e o ‘Modern Slang’, dedicado às gírias. Da mesma grei, os dicionários ‘Webster’, a começar pelo ‘Webster’s Third New International Dictionary’. E, em língua francesa, destacam-se, além do clássico ‘Littré’, os ‘Robert’, grandes e pequenos, e domina o ‘Larousse’, tradicionalíssimo, desdobrado em diferentes espécies. Certa vez, para presentear o meu pai com um dicionário de gírias, quis comprar, numa livraria de Paris, o ‘Larousse des Argots’. Tropeçou a minha língua. Pedi um ‘Dictionnaire des Escargots’. Supondo compreender-me, a vendedora me trouxe sorridente um volume do ‘Larousse gastronomique’.’