Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Deonísio da Silva

‘O alemão Karl Benz fabricou o primeiro automóvel em 1885, na cidade de Manheim. O motor tinha apenas um cilindro, contava com ignição elétrica e alcançava a velocidade espantosa de 16km por hora.

O veículo, porém, já fora inventado pelo francês Nicolas-Joseph Cugnot, ainda no século 18. Coube ao norte-americano Henry Ford popularizar esse meio de transporte, nos finais do século 19. É natural, pois, que os componentes do principal tormento das metrópoles sejam designados por palavras francesas e inglesas, embora uma das marcas mais famosas ainda ostente o sobrenome Benz, antecedido do prenome de Mercedes Jellinek, a filha do primeiro comprador de automóveis, homenageada, a pedido do pai, pelos fabricantes.

De todo modo, carro, do latim carrus, conquistou a hegemonia na designação, embora no mundo do automóvel chassi, chofer, cardã, cupê, embreagem, gasolina, caminhão, biela, derrapar, engrenagem, bagagem, ignição, limusine, manivela e pneu, palavras vindas do francês, convivam com as latinas roda, lanterna, colidir, luz, câmara e volante, que substituiu o francês guidom, e com suas irmãs vindas do inglês, como eletrônica, sedã, flanela, jipe, picape, airbag e van, as duas últimas ainda não aportuguesadas. O espanhol compareceu com painel, pinhão, farol, borracha e borracho.

O automóvel conquistou estradas e ruas, mas realizou também a conquista verbal das novas realidades que engendrou. E para isso recorreu às metáforas. O pneu careca resume o desgaste da borracha, sendo os fios comparados aos cabelos. O pára-brisa e seu limpador não servem apenas para evitar a brisa e retirar o orvalho dos vidros, mas também para proteger do vento, do frio e da chuva motorista e passageiros.

Carros desgovernados ou mal dirigidos podem derrapar, capotar, tombar. São metáforas. O provençal já tinha ‘derapar’, que dobrou o erre no português, mas veio do francês déraper, arrancar. Pneus aderem à pista como deputados e senadores ao governo.

A camionete, diminutivo de caminhão, depois de designar pequeno ônibus, virou perua porque acolhe a muitos, enfeitada de cores espalhafatosas como as meretrizes e as mulheres mal vestidas. A pastilha dos freios certamente não se destina à mastigação humana, mas à mastigação de outras bocas, embora sem os dentes da engrenagem. A lanterna traseira avisa que o carro vai parar. Se acender e apagar com intermitência, piscar, vira pisca-pisca, indicando que vai dobrar à esquerda ou à direita.

E a mão e a contramão? A flecha substituiu a mão, cujo dedo indicador apontava a direção do fluxo, ensejando ainda que homens a pé, a cavalo ou de carruagem soubessem de que lado carregar o chicote, do francês chicot, originalmente pedaço de arbusto ou galho arrancado de uma árvore, depois substituído pelo acelerador, de acelerar, do latim accelerare, tornar celer, célere, rápido.

O chofer, que cuidava da caldeira das locomotivas, passou a guiar os primeiros automóveis, que eram movidos a vapor. O combustível foi substituído, o carvão foi embora, vieram a gasolina e o álcool, mas chofer e motorista, apesar da entrada do último combustível, não podem guiar borrachos. O gótico widan, juntar-se, e o latim medieval guidare forneceram os étimos de guidom ou guidão, como temos garçom e garção.

Os portugueses vacilaram na alfândega quando importaram o primeiro automóvel, mas a locomóvel, máquina agrícola, foi descartada. Carro e autocarro prevaleceram, este para designar o ônibus, do latim omnibus, para todos. No Brasil, os ônibus metropolitanos destinam-se a quem não tem carro. O inglês, como sempre, reduziu: carro, car; omnibus, bus.’



PLANO DE ATAQUE
Aluízio Falcão

‘Bob Woodward e os cientistas políticos’, copyright O Estado de S. Paulo, 11/12/04

‘Se não me enganou o velho Aristóteles, a política é uma arte de Governo. Acadêmicos modernos deram a definição de Ciência Política ao saber organizado sobre o tema e daí surgiram estes senhores falantes na tevê a cabo, sempre entrevistados quando acontecem eleições ou crises. Fora dos estúdios, eles escrevem artigos para a mídia impressa e orientam pós-graduandos na matéria.

Multiplicam-se, em grande escala. Observadores experientes me disseram que se formam no Brasil, a cada ano, cerca de 5.200 cientistas políticos – mão-de-obra talvez excessiva para atender aos convites de pauteiros e produtores que marcam as tais entrevistas. Estes cinco milhares, concluído seu doutorado, vão formar outros cientistas políticos. Os velhos mestres aposentam-se e passam a escrever livros. Talvez nenhum comparável aos de Max Weber, Norberto Bobbio, Caio Prado Júnior ou Florestan Fernandes, mas todos úteis para firmar uma boa reputação entre os seus pares.

O telespectador ou rádio ouvinte habitual raramente aprende alguma coisa com estes cavalheiros em suas digressões na tevê, sempre entremeadas por anúncios de sabonetes, ‘Brasil, país de todos’, rações para cachorros e promoções em supermercados. Os seus artigos nos jornais refletem uma certa erudição, claro, mas faltam neles o raciocínio inesperado e a observação aguda que fariam compreender melhor a chamada evolução dos acontecimentos. No meu caso, devo reconhecer a hipótese mais provável de que o receptor da mensagem não tenha o necessário discernimento para absorvê-la.

Peço desculpas à maioria destes sábios, mas prefiro o Castelinho. Sabeis quem foi ele, meus netinhos? Ah, o Castelinho foi um colunista de jornal. Abordava diariamente a política brasileira e suas complicações. Seu nome, por extenso, Carlos Castello Branco. Escrevia bem, com elegância, ironia e brandura. Sua coluna era uma aula sem professor. A gente acordava, tomava café, abria o matutino, e aprendia, em poucos minutos, o que estava por trás das crises. As quais, mercê de Deus, jamais faltaram na política brasileira e ainda hoje nos garantem assunto em conversas de bar.

Castelinho nunca escreveu sobre Política Comparada, suas aplicações ou perspectivas e muito menos a respeito de agregados sociais homogêneos como alvos do populismo. Eles nos falava do cotidiano de senadores, deputados, candidatos e governantes. Não cometia grosserias, mesmo quando punha reparos à conduta de um ou de outro prócer. Arrogância, vaidade, ênfase, cacoetes de muita gente que hoje tem coluna assinada, jamais foram cultivados por ele.

Bem, voltemos ao ponto de partida. A relação de alguns entrevistadores de tevê e rádio com os cientistas políticos e vice-versa é de mútua reverência. Quase sempre o entrevistado elogia a pergunta que ouviu e o entrevistador acolhe a resposta com alvoroçada concordância. Uma batalha de confetes, um pingue-pongue de flores. E nós, ouvintes e telespectadores, a receber lições cujo vocabulário agora incorporou o termo ‘republicano’, que é uma espécie de pomada maravilha e serve para tudo. Falam da ‘visão republicana’, do ‘conteúdo republicano’ e até mesmo do ‘esgarçamento do tecido republicano’, que substituiu o antigo ‘tecido social’. Isso eles usam para falar das brigas do PSDB versus PT numa hora em que o termo ‘republicano’, para o mundo, lembra imediatamente o partido e o estilo de Bush.

Às vezes me pergunto – e sei o quanto isso pode sugerir uma grande heresia – se a retórica usual dos cientistas políticos, aqui ou em qualquer lugar, é realmente necessária. Inegavelmente serve, e muito, para emissoras de rádio e tevê a cabo. Afinal, que diabos, não se pode achar mão-de-obra simultaneamente mais sofisticada e mais barata para longas entrevistas. Mas, para a difusão do conhecimento, ouso dizer que bastariam, nas horas de crise, uma imprensa livre, analítica, e o trabalho multissecular dos historiadores. Não quero dizer que a contribuição intelectual do chamado cientista político é descartável. A implicância é com o linguajar e a forma pedante com que se autodenominam. Por que não se apresentam e falam como historiadores, na acepção clássica e tradicional?

A propósito, cientistas políticos igualmente se ocupam das relações internacionais. Basta um tiroteio a mais no Iraque e suas figuras carimbadas aparecem no vídeo. Para isso, antigamente, existiam comentaristas especializados, que ao meu ver deveriam voltar. A crônica internacional dos fatos em andamento é tarefa intransferível de jornalistas.

Prova disso é o livro Plano de Ataque, de Bob Woodward , da editora Globo. Bob, vocês sabem, é aquele repórter que, em dupla com Carl Bernstein, descobriu Watergate e derrubou Richard Nixon. Este seu novo livro, contando em detalhes a trama para a invasão do Iraque, resultou de 75 entrevistas, inclusive uma de três horas com o presidente Bush. É impressionante como ele resiste à tentação de ‘interpretar’ a maioria dos fatos. O seu estilo claro e factual deixa isso para os historiadores.

Ele teve acesso a todos os grandes da administração envolvidos no Plano, durante 16 meses de preparativos. Reuniões secretíssimas vêm à tona, com os seus desdobramentos em divergências, intrigas, monumentais disputas internas. Para se ter uma idéia de até onde foi o bom repórter nas apurações, lá está, dentro da narrativa, o fraseado chulo do presidente, em conversa com assessores do primeiro-ministro Tony Blair, que o apoiou na empreitada: ‘Seu chefe tem cojones…’ – disse o cristão evangélico, empregando o coloquial espanhol para testículos. Comentou depois que os ingleses não entenderiam o termo, provavelmente aprendido por ele numa taberna do Texas, perto do México. E disse ainda que chamaria sua conferência com Blair em Camp David de ‘a reunião dos colhões’. Qualquer coincidência com a retórica do ‘aquilo roxo’, usada por Fernando Collor, terá sido mera semelhança. Dois presidentes, duas Américas, um só estilo.

O livro de Bob Woodward não tem grande apuro literário. Ele não é propriamente escritor, e sim o impecável repórter investigativo que conhecemos de outros carnavais. Agora, descrevendo os poderosos da Casa Branca e seus movimentos, revela um domínio da informação e uma capacidade narrativa que excede todas as performances anteriores. Sem usar um só adjetivo para desqualificar os homens do atual presidente, Woodward oferece ao leitor o mapa completo de suas personalidades. Como disse o The Guardian, ‘o livro revela um círculo de fiéis seguidores – com a notável exceção de Colin Powell – que dizem ao presidente o que ele deseja ouvir e não o que ele precisa saber’.

Enquanto absorvia o conteúdo valioso de Plano de Ataque, lembrei aquelas monótonas entrevistas na tevê, durante a invasão do Iraque. Foram madrugadas perdidas. Pensando bem, não tanto assim. Fizeram-me pelo menos consolidar a idéia da inutilidade de certos cientistas políticos, brasileiros ou estrangeiros, como intelectuais públicos e presumidamente habilitados a traduzir para o cidadão comum os enigmas do nosso tempo. Plano de Ataque, de Bob Woodward. Globo, 455 págs., R$ 38,90′



TREVAS NO PARAÍSO
Rosane Pavam

‘O mundo por um viés imoral’, copyright O Estado de S. Paulo, 12/12/04

‘Alguns bons críticos e autores de renome não poderiam estar errados, e assim Luiz Fernando Emediato seguiu sua carreira de escritor, vencedor contumaz de concursos literários nos anos 70 (foram 25 certames). Depois, essa carreira bem vista por Rubem Fonseca e Carlos Drummond de Andrade, segundo nos informam os historiadores, postou-se à sombra, no jornalismo e nas casas publicadoras. Emediato editou este Caderno 2 e se tornou o responsável pela Geração Editorial. É esta a editora que revisa seu trabalho como literato, numa tentativa de aproximá-lo do leitor atual, agora melhor servido de lançamentos em torno dos ‘anos de chumbo’. A ditadura militar brasileira percorre o volume como evocação e tema. Em Trevas no Paraíso, estão reunidos especialmente os volumes de contos O Vago Brilho das Estrelas, Breve Discurso sobre o Significado do Tomate e Anatomia do Pesadelo.

Nas narrativas curtas aqui enfeixadas, escritas em sua maioria entre 1974 e 1978, este autor de atuais 53 anos provou aos críticos daquele período a eficiência de sua escrita invisível, feita de ritmo convincente, mais do que de melodia, uma escrita que abandonava a palavra de função inesperada e a reviravolta dos ditames narrativos em prol de um corpo a corpo com o entendimento simples do leitor, ainda que irônico sempre (ironia quiçá resultante da difícil condição política de então). Emediato não perdia tempo, como Gabriel García Márquez. Não escrevia bonito, escrevia rápida e incessantemente, à espera de fazer a frase durar um pouco mais, embora não muito. Nós o lemos com o interesse com que ele escreve, e também com a facilidade nascida desse estupor. Mas seus temas não são fáceis. São na verdade terríveis. Iguais.

O assunto recorrente nos contos é a canalhice dos militares e da classe média que os apoiou no Brasil de 1964. Na maioria das narrativas, e nas mais eficientes, como Verdes Anos, são os próprios insensíveis a falar. O herói de Emediato, ou melhor seria dizer seu protagonista, é o canalha em exercício memorialístico, como se Dostoievski se arriscasse a presentear Fiodor Pávlovitch com a primeira pessoa narrativa. Emediato se propõe a tarefa difícil de olhar o mundo por este viés nauseante, numa espécie de literatura psicologicamente denunciatória, quase médica.

Ao lê-lo, conhecemos esses terríveis homens, o ácido nas tripas, e sempre nos surpreendemos com sua ausência de autocrítica, medo e sonho. Seus personagens são unilaterais e de identificação naturalista, perfeitos talvez para algum cinema e para o quadrinho adulto. Um problema literário com os canalhas de Emediato é que não têm humor e agem na contramão dos cunhados de Nelson Rodrigues. O bolinador de moças de ônibus transita bem no espaço lírico, mas logo Emediato lhe salpica condenação (e nojo). Quando há vaga para o humor, ele também aparece indigesto, imoral ou nauseante, como em O Vago Brilho das Estrelas, que trata do improvável auto-reconhecimento de um canastrão americano do cinema, e seu desejo de desaparecer da história. As tentativas bem-humoradas revelam-se puro equívoco, como se pode notar em Aventuras e Desventuras de Dom Pedro II, um conto cumulativo de efusiva alegoria.

As coisas caminham melhor quando, no intuito de criar personagens vivos, Emediato nos dá feridos (de alma). Este é o caso da moça de Vegetal, que não ama o marido, mas Jesus, e faz alguma coisa atordoante com a imagem de um crucifixo quando a família a deixa só. Ao ler esse conto, nós o visualizamos, resolvido que ele é, e o imaginamos nos suaves traços em preto-e-branco de um desenhista como Libero Malavoglia. Mas também supomos o que teria feito Clarice Lispector dessa protagonista, quantas sutilezas teria reparado nela, quantos existencialismos teria enxergado num pé de cama. Mas esta, como sabemos, não é a praia de Emediato, a das mágicas entrelinhas, e o conto termina com as tintas fortes com que começou.

Embora sua literatura seja avessa à sutileza temática e verbal, Emediato nos dá peças de importância quando fala da infância maltratada (e explicada de forma menos previsível que em outras ocasiões) e do contraditório pai sonhador, um tipo que todos reconhecemos, não necessariamente num pai. Infelizmente, o autor o explica como um revolucionário a certa altura, e isso enfraquece sua condição ambígua, que é o que esperamos de um personagem assim promissor.

Luiz Fernando Emediato faz uma literatura proposital. Ou fez. Hoje, talvez seus propósitos sejam outros. Um leitor quererá conhecê-los na atualidade depois de ler esse livro, porque só assim o autor se provará, a seus olhos, um pensador em movimento (mas é verdade que Emediato não parece estar em busca de fornecer provas já dadas no passado). Sua literatura serviu como contramão em um exíguo espaço político. Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, Caio Fernando Abreu, todos atuaram no mesmo lugar e ficaram por mais tempo, ao contrário de Emediato. É de perguntar se isso aconteceu porque lançaram uma faísca. Rosane Pavam é jornalista, autora de O Sonho Intacto (Imprensa Oficial) Reflexões sobre a segurança e a paz’