Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Deonísio da Silva

‘Os dicionários mais consultados do país não têm ‘relê’, mas o seu carro tem. A língua portuguesa foi buscar a palavra no francês ‘relais’, do verbo ‘relayer’, revezar, alternar, substituir. Inicialmente foi aplicado aos cavalos que, fatigados, eram substituídos, principalmente em carroças e arados, por animais descansados, ensejando que os outros fossem alimentados, para depois voltarem ao trabalho novamente, no moto perpétuo que o homem lhes impôs com a domesticação.

Nossa língua acolheu o vocábulo como ‘relé’, que está grafado ‘relê’ no Dicionário do carro, do carioca Bob Sharp, jornalista especializado em automóveis, ex-piloto de competição com vários títulos nacionais e regionais. Os lexicógrafos lhe devem 1.200 verbetes por ele reunidos, movido pela paixão do conhecimento, tempero que apresenta diferencial de qualidade em qualquer pesquisa. Fale, ou melhor, escreva Bob Sharp: ‘relê: dispositivo eletromecânico que, por meio de uma corrente de baixa intensidade (amperagem), efetua ligação elétrica de outra, de alta intensidade. Com isso, interruptores de bordo não precisam ser reforçados e volumosos’.

Mas o que é amperagem? Designa intensidade de corrente elétrica, medida em amperes, plural de ampere, que o Aurélio ainda não acolheu, preferindo indexá-lo em sua versão francesa, ‘ampère’. Em Portugal, desde 1929, foi adotada a forma ‘ampério’, recusada pelo Brasil por uma daquelas razões que nos lembram o dito famoso de Bernard Shaw: ‘Inglaterra e Estados Unidos são dois países separados pela mesma língua’, o que pode ser uma ‘boutade’ divertida, mas desprovida de base. Alias, ‘boutade’, sinônimo de dito espirituoso, de brincadeira verbal, deriva do verbo ‘bouter’, empurrar. Toda a comunidade lusófona se entende muito bem em vários continentes.

Vejamos que curiosa a viagem das palavras. ‘Ampère’, ‘volt’ e ‘ohm’, entre outras palavras, entraram para o francês em 1881, por ocasião de um congresso de eletricistas realizado naquele ano em Paris. Cientistas europeus estão na origem das três palavras: o francês André-Marie Ampère (1775-1836); o italiano Alessandro Volta (1745-1827) e o alemão Georg Simon Ohm (1789-1854). A eletricidade é nossa companheira inseparável, no carro e em casa. Explica Sharp: ‘Um volt produz uma corrente elétrica de 1 ampère através de uma resistência de 1 ohm’.

Não denominamos ‘volta’, mas ‘volt’, porque a palavra deu entrada pelo francês, que omitiu a vogal final. No carro, falamos de seis volts, 12 volts, mas nas residências em 110 ou 220 volts.

Alessandro Volta, mudo até os 7 anos, foi considerado deficiente mental. Na universidade onde ensinava, seus colegas achavam que ele era ‘pouco científico’. Já tinha descoberto a pilha quando foi nomeado senador do reino da Itália por Napoleão Bonaparte. A Academia de Ciências da França recusou-se a condecorá-lo, alegando que o regulamento vetava premiações a estrangeiros. Não é de hoje… Napoleão revidou: acrescentou à medalha de ouro por reconhecimento intelectual um prêmio de seis mil francos.

O cientista, que morreu aos 82 anos, quis aposentar-se quando chegou à velhice, mas outra vez o imperador interveio: se estava cansado de ensinar, que desse apenas uma lição por ano, ‘pois os bons generais morrem no campo de batalha’. Desde que não sejam presos e exilados numa ilha…

No Brasil atual, leis esdrúxulas teriam chutado o velho cientista para bem longe de qualquer campus. Mas seu nome está presente em nossa vida cotidiana: em casa, nos meios de transporte, no trabalho. E no automóvel, o substituto do cavalo. Até a invenção do trem, no século 19, o cavalo foi o meio de transporte mais rápido.’



CAUSOS DE JORNAL
Eduardo Ribeiro

‘História de redações ainda precisa ser contada’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 24/02/05

‘É um inenarrável prazer acercar-se da velha guarda do jornalismo e, entre goles de cerveja e muita risada, ouvir deliciosas histórias de como eram as redações nos anos 40, 50, 60… São dezenas, centenas, certamente milhares os causos que se contam pelos botecos da vida e que ainda não foram publicados, privando as novas gerações da rica história de seus antecessores. Por paradoxal que possa parecer, a nossa é uma história de tradição oral, em que as pessoas, mais do que escrever, preferem contar. José Aparecido, colega que viajou antes do combinado para o andar de cima há alguns meses, era o típico jornalista da velha guarda com o perfil acima. Adorava contar histórias e vivia prometendo que um dia escreveria um livro com elas, para ‘ficar rico’.

Não deu tempo. Mesmo trocando a metrópole pela aconchegante cidade de Presidente Epitácio, no interior paulista, nos últimos anos de vida, não conseguiu tempo para colocar no papel aquelas memórias. Logo se meteu a escrever para um jornal e depois para outro, e assim o que inicialmente seria descanso transformou-se em trabalho e assim foi praticamente até a morte. Zé Aparecido tinha histórias hilariantes, como veremos abaixo, mas não era um saudoso do jornalismo daqueles anos. Ao contrário. Tinha consciência das deficiências técnicas e éticas que atingiam veículos, donos de jornal inescrupolosos e mesmo profissionais de caráter, digamos assim, maleável, que não titubeavam em utilizar a condição de jornalista para auferir vantagens pessoais. O divisor de água, nesse sentido, pode-se dizer que foi a regulamentação profissional e a obrigatoriedade do diploma, na segunda metade dos anos 70, quando o perfil profissional das redações começou a mudar radicalmente. A molecagem deu lugar à sisudez, fazendo com que o romantismo – o principal legado daquele período – desaparecesse de mentes e corações, substituída pela objetividade, característica, aliás, que muitos também chamam – até com certa razão – de arrogância. Mas a evolução, segundo esses próprios colegas, é nítida. Hoje se tem muito mais respeito profissional pelo jornalista do que se tinha antingamente, tanto por parte dos patrões, quanto das autoridades e da própria sociedade. Mas aqui o nosso negócio não é falar de assunto tão árido e sim das boas histórias. Elas nos ajudam a rir e, em conseqüência a desopilar o fígado, coisa que a cada dia fica mais rara. Uma das histórias do Zé Aparecido, que me lembro, envolvia o Cláudio Abramo, um dos mais respeitados profissionais da história do jornalismo brasileiro do Século XX. Por onde passou, deixou sua marca, incluindo o Projeto Folhas, que iniciou e dirigiu por vários anos.

Cláudio Abramo era rigoroso ao extremo e o que se poderia chamar de um chefe zangado. A passagem que Zé Aparecido contava deve ter acontecido na Última Hora, lá pelos idos dos anos 60. Se não era a UH talvez fosse o Diário Popular ou quem sabe o Diário de São Paulo. Francamente, não me lembro. O que sei é que era uma daquelas tardes modorrentas, com pouca coisa acontecendo e, de repente, entra na redação um leitor que dá de cara com o Zé Aparecido. Contou a ele a razão da visita – uma reclamação – e perguntou com quem poderia falar a respeito. Rápido no gatilho, Zé Aparecido disse que ele deveria se dirigir ao senhor que sentava-se na última mesa da redação – o chefão ali -, e recomendou: ‘Fale bem alto – grite mesmo – pois aquele senhor é surdo feito uma porta e se você falar baixo ele não vai escutar’. Disse isso e, claro, se mandou pro bar, pois tinha consciência do teor explosivo da brincadeira. Resultado, a redação inteira parou vendo aquele senhor berrando com Cláudio Abramo e riu-se a valer vendo Cláudio Abramo colocando aquele senhor pra fora, também aos berros, dizendo que naquela redação ninguém era surdo. O que se deu depois não sei contar, mas não consta que o Zé tenha perdido o emprego.

Um outro causo, também muito engraçado, envolveu um revisor do jornal. Era um sujeito metódico, de poucas palavras e muito elegante, sempre trajando terno. Chegava todos os dias no mesmo horário, colocava suas coisas sobre a mesa, o chapéu no suporte e ia ao banheiro para começar o dia bem apessoado e, digamos assim, zerado. Era o sujeito ideal para uma pegadinha, num tempo em que nem se pensava nisso. Montado o plano, imediatamente se puseram a executá-lo. No dia combinado, tão logo o colega chegou e foi ao banheiro, um dos gaiatos foi lá e trocou o chapéu. Era um modelo igualzinho, porém menor um pouco. Logo que voltou do banheiro, em intervalos regulares, vinha alguém – sempre uma pessoa diferente – e perguntava, com seriedade, se estava tudo bem com ele. Lá pela quarta pessoa, ele achou estranho e quis saber o por que daquela preocupação. E o interlocutor, simulando algum constrangimento, dizia: ‘nada não, é que parece que sua cabeça está um pouco inchada’… O revisor ficou com aquilo literalmente na cabeça e ao ir embora percebeu que, de fato, o chapéu já não lhe estava caindo tão bem. No dia seguinte, a operação foi repetida, agora com um chapéu ainda menor do que o do dia anterior. Antes que os amigos pudessem contar a travessura, o tal revisor se escafedeu, indo diretamente para um hospital para ver o que estava acontecendo com ele e com sua cabeça inchada… Claro que o resultado foram sonoras gargalhadas, não sem antes uma ponta de preocupação pelo que poderia ter acontecido com a ‘cabeça’ do tal revisor, a partir daquela brincadeira. Mas tudo acabou bem e foi mais uma das passagens que entraram para o folclore das redações, sem nunca ter sido escrita. E se figuras como Zé Aparecido aprontavam com chefes como Cláudio Abramo e mesmo com colegas de trabalho, imaginem só o que não faziam com os pobres dos focas… Eram, sem dúvida, as vítimas prediletas. Quantos não foram à gráfica entrevistar a calandra, ou tiveram de ligar para funerárias para fazer um levantamento sobre preços de caixão de arquivo morto… Revivi algumas dessas histórias esta semana, num evento do qual participei ao lado de um grupo de jornalistas, em Porto Alegre, organizado pela General Motors do Brasil, em comemoração aos seus 80 anos de Brasil. A programação incluía duas visitas: uma ao incrível Museu de Carros Antigos da Ulbra, em Canoas, e outra à fábrica da montadora em Gravataí. Fiquei grande parte do tempo ao lado de Mário Pati, que, em seus mais de 70 anos de vida e uns 50 de jornalismo, é um acervo vivo de nossa atividade. Me deliciei com suas lembranças.

No Museu da Ulbra, fizemos uma viagem no tempo olhando relíquias sobre quatro rodas desde a década de 20 até os dias atuais, e ele a contar passagens e mais passagens que vivenciou naquele período, algumas como jornalista, outras como piloto de corridas e também como diretor da mais importante prova do calendário brasileiro de automobilismo, o GP Interlagos de Fórmula 1, nos anos 70.

Disse-lhe: ‘Mario, como é que essas histórias não estão escritas em lugar algum?!?! Você precisa escrevê-las.’ Ele limitou-se a sorrir e a dizer: ‘Quem sabe um dia…’’



CRÔNICAS DE FOCAS

Marcelo Rubens Paiva


‘Esmolinha pro foca’, copyright O Estado de S. Paulo, 28/02/05


‘Na Quarta-Feira de Cinzas, entrei assustado em casa, pois a pilha de jornais que deveria estar na porta encontrava-se na mesa da sala. Arrombaram meu apartamento durante o feriado! Procurei por mais estragos. Nada. O computador com esboços de livros e peças estava OK. Encontrei dona Cristina, que trabalha comigo há anos, e falei: ‘Entrou ladrão, você sentiu falta de algo? Os jornais, colocaram na mesa da sala!’ Dona Cristina sorriu e disse pacientemente: ‘Calma, seu Marcelo, eu recolhi, como costumo fazer sempre.’


Na estréia da minha peça Mais-Que-Imperfeito em 2001, no Teatro Augusta, um celular tocava incessantemente na primeira cena. Eu olhava furioso para platéia. O som vinha abafado. Todos procuravam o mal-educado. Aos poucos, fui reconhecendo o toque. Virei as costas e fingi que tinha mais o que fazer. Era o meu toque. Ontem, uma corretora de imóveis me ligou. Pedi educadamente que me ligasse mais tarde e perguntei se ela tinha o meu telefone. ‘Claro, acabei de discar.’ Tem nome, isso?


*


Comecei a trabalhar quando não havia legislação de cotas para deficientes. Neguinho vendia canetas. Inclusão social era ficar em casa vendo chacretes na TV. Uma ilusão social. Hoje, a lei determina: empresas com mais de 100 funcionários devem ter uma cota de 2% de deficientes, com mais de 200 funcionários, 3%, com mais de 500, 4%, acima de 1 mil, o percentual é de 5%.


Não comecei a trabalhar graças à ação afirmativa nem ao meu nariz italiano, mas a uma dose de sorte e um livro de sucesso nas costas. Na minha estréia na TV em 1984, eu me sentei numa bancada entre Henfil e Tarso de Castro. Silvia Poppovic comandava com Paulo Markun o São Paulo na TV, programa ao vivo da Abril Vídeo, que rolava nos estúdios caidaços da Gazeta. Nada de ar-condicionado. Ventiladores, desses de torre. Eu tinha a minha fala datilografada no colo. Na deixa, o vento a levou. Com uma câmera apontada para a fuça, gaguejei sobre a venda de um terreno.


Pedi transferência para o programa de domingo, Olho Mágico. Gravado. Pedi ajuda ao amigo de escola Fernando Meirelles e sua antiga produtora, Olhar Eletrônico. Fomos ao presídio fazer uma matéria sobre detentos escritores. Vivíamos na ditadura ainda. Sem sabermos, era a primeira equipe de TV a cruzar aquelas grades. Na luz, Marcelo Tas. Os próprios presos nos pautaram o Bandido da Luz Vermelha. Fomos à sua cela e fizemos dela um pequeno estúdio. Quando ligamos o equipamento, o sujeito não parou de falar. Era a minha primeira entrevista. Sem perguntas. Toda vez que eu tentava perguntar, ele solava. Desencanei e peguei um cigarro. Quando ele finalmente ficou quieto, estendi o cigarro como se fosse um microfone e perguntei. Nada. O cara surtara. Eu e a equipe, idem.


Já trabalhei em muitas áreas. Nos anos 70, fui varredor de quintais do Leblon, ator amador em São Paulo, animador de escola e professor particular de Física em Campinas. Já fiz até espionagem industrial em Paranaguá. Mas jornalismo foi a carreira que me deu mais trabalho. Como todo jornalista, amo e odeio a profissão, me pergunto diariamente para que serve, se fazemos história ou passamos à margem, me culpo pelos erros cometidos e me pergunto se serei perdoado ou descerei as escadas sem corrimão de Dante.


Reportagem não faço mais. Parei. E isso se deve a um acontecimento bizarro. Quando Lula fechou os bingos no ano passado, calculei que a massa que gastava os tubos apertando botões estaria fazendo outra coisa, e que a indústria de entretenimento sairia ganhando. Fui apurar. Com meu bloquinho de Clark Kent (ainda se chama assim?), me aproximei da fila do Teatro Cultura Artística. Queria saber quem trocara o jogo pelo teatro. Uma senhora se assustou com a minha cadeira de rodas: ‘Olha aqui, rapaz, não dou trocados, afaste-se de mim!’ Procurei contornar o mal-entendido, explicando ao marido que a esposa tinha se confundido, na verdade eu era um jornalista. Ele me interrompeu: ‘Ela não dá esmolas. E se continuar nos importunando chamo a segurança!’ As estrelas dessa noite sussurravam: Mude de ares. O jornalista é o mendigo da notícia.’




ASSESSORIA DE IMPRENSA
José Paulo Lanyi

‘Eles me ajudaram a escrever a coluna’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 24/02/05

‘Dois colegas me deram o gancho do artigo de hoje. Na semana passada, o Eduardo Ribeiro me citara como exemplo de ‘gente que faz’ em outras paragens (leia Em Busca de Novas Experiências). Agora a Ana Maria Bahiana nos diz que, por ocupar o lugar daqueles que sói analisar, ficou em dúvida sobre o rumo da sua coluna aqui do Comunique-se (leia Simpatia por Um Diabo Velho). Cara a cara com os contrastes, a Ana Maria tem razão ao dizer que a saída para o dilema é a transparência.

Bom, trabalhar nisso ou naquilo não faz ninguém melhor ou pior. Claro, vamos excetuar a bandidagem de toda ordem. Da mesma forma, é equivocado dizer que um ser humano vale mais ou vale menos pela atividade que escolheu. O caráter suplanta o rótulo. Essa é a frase-chave.

Importam algumas reflexões. Tomemos um exemplo de sala de aula. O professor de jornalismo pergunta: – Qual é a fonte mais importante? Um porteiro de prédio ou um senador? A resposta certa é: – Depende da reportagem.

Voltei a fazer assessoria de imprensa, depois de um bom tempo nas redações. Aproveito o ensejo para, de forma cristalina, compartilhar algumas observações sobre o que penso e o que fiz nessa seara.

Em quase quatorze anos de profissão, trabalhei, de forma regular ou como free-lancer, para 15 redações (TV, rádio, revista, jornal, Internet), duas faculdades de jornalismo, uma associação de críticos e uma produtora de conteúdo institucional.

Foi nessa produtora, a Rádio 2, que realizei o meu único trabalho de comunicação política, até então: divulgar as ações da administração Mário Covas e, mais tarde, integrar a equipe que produziu a sua campanha de reeleição ao governo do estado de São Paulo. Naquela ocasião, recebi a dica e, por se tratar de Mário Covas, o político brasileiro que, abertamente, mais admiro (até por me identificar com o seu estilo), não vi nenhum impedimento moral, nenhum contraste ético em aceitar aquela missão. Ao contrário. Sempre disse, a quem quer que fosse, que jamais aceitaria trabalhar para o Paulo Maluf, por exemplo (embora, de forma geral, respeite os profissionais que tenham feito tal escolha).

Essa tinha sido, portanto, a minha única experiência em assessoria. Não se trata de uma atividade jornalística. Já disse aqui e repito: assessor de imprensa é jornalista e se utiliza de instrumentos jornalísticos, mas não faz jornalismo.

Coincidentemente, assumo agora a Comunicação de um vereador tucano. O acaso me conduz novamente ao PSDB, pois a indicação partiu de dois jornalistas que nada têm a ver com o partido. Eles sabem que eu não aceitaria esse trabalho, não fosse a minha convicção das garantias de seriedade ideológica e profissional.

Sou um cidadão, antes de ser jornalista e escritor. Quem me conhece sabe do asco que a direita me inspira. Daí a minha identificação com partidos e políticos cujos projetos embutem conceitos de esquerda. O meu voto tem acompanhado essa disposição. Claro, também me pergunto: ainda temos esquerda responsável neste País? Se depender de mim, uma mera formiga capenga, sim. Se, no curso dos fatos, não for o que espero, caio fora. Esteja claro, pois: não farei jornalismo, farei política, no campo da comunicação.

Mais do que com as implicações do meu novo trabalho (para mim, ponto pacífico), concentrei-me em uma outra análise: poderia eu manter a coluna que assino? Uma atividade interferiria na outra? Ponderei fundamente e conversei com vários colegas. Concluí (e essa foi a opinião geral) que tudo dependeria da forma com que eu me conduzisse. E isso o que dita é a consciência. Como prova, mantenho as críticas passadas deste espaço à arrogância dos candidatos José Serra e Marta Suplicy nas eleições municipais; reafirmo a minha disposição de votar no Partido dos Trabalhadores, sempre que um candidato se mostrar à altura do meu ideário; carimbo a minha admiração pelo estilo de fazer política do vereador (ainda) petista Carlos Giannazi, meu amigo de longa data (antes mesmo de ter sido eleito), comprometido com as suas bases e, por isso mesmo, fritado pelo partido que ama, apesar de tudo.

Não esqueça o que eu escrevi.

Esta não é uma coluna política. Trata de numerosos aspectos da atividade jornalística. Continuará, alegremente, a analisar os veículos e os profissionais. Eis a minha maior preocupação: a eqüidade. Divido-a com o leitor. Foi com essa mesma lógica que, um mês atrás, recusei-me a conversar com uma rede de televisão. Soube que teria de enviar releases e lançar mão de expedientes escusos para defender o indefensável. Teria de abdicar do trabalho que faço aqui. Teria de iludir a minha consciência. O salário? Era bom, em torno de seis mil reais. Mas isso é menos do que um mínimo da Somália, no terreno da vergonha na cara.

Sei que é démodé falar dessas coisas, dar satisfação pública dos próprios atos e das escolhas pessoais. Só o faço porque me cobro uma atitude ‘antiprofissional’. Isso mesmo. Hoje em dia o calvário dos jornalistas tem imposto um raciocínio que me incomoda muito: o de que devemos aceitar qualquer trabalho, em qualquer lugar, simplesmente porque estamos em dificuldades. Essa posição é considerada ‘profissional’. Discordo. Não precisamos morrer na sarjeta, mas não devemos vender a alma ao diabo. O cidadão pode ser o que quiser, desde que se mantenha cidadão, na acepção mais rigorosa desse termo. Alguns trabalhos são indignos, sejamos sinceros, não nos iludamos. Em suma, é isto que devemos evitar: fazer aquilo em que não acreditamos e aquilo em que não devemos acreditar.’