Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Diogo Mainardi

‘Paulo Francis morreu oito anos atrás. A opinião geral é que sou a versão piorada dele. Como responder? Que não é verdade? Claro que é verdade. Digo apenas que a culpa não é minha. Eu me empenho no meu trabalho. Leio, estudo, escrevo, reescrevo. Não faço melhor porque não consigo. Não tenho capacidade. O único fato que alego em minha defesa é que não sou um principezinho. Não herdei o trono de Paulo Francis na imprensa brasileira. Fui posto em seu lugar por falta de alternativas. Porque não encontraram ninguém à altura. Se sou a versão piorada do Paulo Francis, é porque o Brasil, como um todo, piorou. Ficamos ainda mais conformistas, ainda mais rasteiros, ainda mais venais. Pegue a turma de Paulo Francis dos tempos do Pasquim, por exemplo. Apareceu algum humorista de verdade de lá para cá? Não. Apareceram somente chargistas a serviço do regime, como Chico Caruso. Se eles vivessem na Alemanha nazista, estariam pintando caricaturas de judeus com o nariz adunco nas vitrines do gueto. Então não me cobrem por ser uma pantomima grotesca do Paulo Francis. É bem mais instrutivo me ver como aquilo que realmente sou: um simples reflexo da irremediável deterioração intelectual e artística do país.

Oito anos depois de morrer, Paulo Francis continua sendo o mais influente pensador brasileiro. Não é novidade que o melhor da mentalidade nacional se encontra na imprensa. Isso acontece desde Euclides da Cunha. O problema é que Paulo Francis costuma ser mais recordado por seu temperamento do que por sua obra. Seus admiradores sentem saudade de seu talento para o deboche. Seus detratores reclamam de seu ar afetado. Como seria natural num país de analfabetos, discute-se acaloradamente a respeito de sua personalidade, mas ninguém parece disposto a reler seus livros. A republicação de sua obra nos últimos dois anos, pela editora Francis, passou em branco. Dedicaram-lhe apenas umas notinhas chochas nos jornais. É um erro. Uma estupidez. Um país pobre de idéias como o nosso não pode abrir mão de maneira tão leviana de um escritor como Paulo Francis.

Quer um conselho? Releia seu livro de memórias Trinta Anos Esta Noite, publicado originalmente em 1994, no aniversário do golpe militar de 31 de março. Onze anos depois, ficou ainda melhor. Diz mais a respeito do Brasil e dos brasileiros do que Casa-Grande e Senzala. Paulo Francis, para usar uma de suas expressões, não escreve ‘à brasileira’. Não sentimentaliza, não enobrece, não edulcora seu passado. Ao mesmo tempo que se penitencia por suas velhas idéias esquerdistas, ele ridiculariza, uma a uma, toda aquela ‘gente nojentinha’ que nos governou de 1950 em diante. Trinta Anos Esta Noite escancara o lado mais repulsivo do caráter nacional: adesista, fisiológico, acovardado, desonesto, reacionário, primitivo, roceiro. Paulo Francis refletia sobre as asnices brasileiras até mesmo quando lia Samuel Pepys. Ele morreu denunciando a roubalheira institucionalizada das empresas estatais. A Petrobras deveria pedir-lhe desculpas póstumas. Não existem mais intelectuais como Paulo Francis no país. Só versões pioradas.’



JORNALISMO CULTURAL
Valmir Santos

‘Obra investiga crise da crítica feita nos jornais do país’, copyright Folha de S. Paulo, 3/01/05

‘Nos últimos meses, a crítica teatral perdeu espaços significativos na imprensa paulista. Desapareceu das páginas do ‘Jornal da Tarde’ (Alberto Guzik e Sábato Magaldi) e do ‘Diário de S. Paulo’ (Aguinaldo Ribeiro da Cunha).

É nesse contexto de crise na cena contemporânea que a pesquisadora e dramaturga Maria Cecília Garcia apresenta suas ‘Reflexões sobre a Crítica Teatral nos Jornais°- Décio de Almeida Prado e o Problema da Apreciação da Obra Artística no Jornalismo Cultural’ (editora Mackenzie).

Antes de discorrer sobre o enunciado do subtítulo e, por extensão, objeto central do livro, a autora cuida de introduzir a história da crítica teatral no Brasil, desde meados do século 19 até o início do 20, passando pelos escritores José de Alencar, Machado de Assis e Álvares de Azevedo.

Chega à reafirmação do ofício entre as décadas de 40 e 60 (Alcântara Machado, Brício Abreu, Oswald de Andrade, Anatol Rosenfeld, Almeida Prado, Magaldi, Barbara Heliodora etc). Apesar do lastro, com transformações que deram na moderna crítica brasileira, a autora aponta os ‘tempos sombrios’ de uma época, a atual, em que o ‘espírito crítico’ é quase abandonado.

Garcia, 53, quer ‘refletir sobre a crítica teatral como gênero jornalístico, sem nenhuma pretensão de esgotar o assunto, mas com o objetivo declarado de recuperar essa crítica como elemento fundamental de desenvolvimento do teatro e da imprensa, e de contraponto ao avanço da mercantilização da arte’. A crítica, atesta, precisa recuperar o seu papel.

O livro faz um apanhado da teoria crítica: a ambição científica na linguagem estruturalista do francês Roland Barthes; a perspectiva sócio-política na dialética do alemão Bernard Dort; e a pluralidade de vozes e consciências na polifonia do russo Mikhail Bakhtin.

Garcia afirma que monologismo é mal do qual Almeida Prado (1917-2001) não sofreu no período em que escreveu para ‘O Estado de S. Paulo’ (1947-68).

‘Desde suas primeiras críticas, escritas no final dos anos 1940, ele deu mostras de uma profunda vocação para o diálogo; diálogo entre artistas e críticos, diálogo entre correntes estéticas, aparentemente confrontadas, diálogo entre jornal e público leitor’, escreve. ‘Essa postura dialógica acabou por configurar-se em um estilo.’

Professora, jornalista, dramaturga e também ex-crítica teatral da Folha, no início dos anos 1980, Garcia publica no apêndice longa entrevista que fez com Almeida Prado em 1998.

REFLEXÕES SOBRE A CRÍTICA TEATRAL NOS JORNAIS. Autora: Maria Cecília Garcia. Editora: Mackenzie. Quanto: R$ 45 (312 págs.)’



BALANÇO CULTURAL
O Estado de S. Paulo

‘O que eu li, vi, ouvi e gostei’, copyright O Estado de S. Paulo, 29/12/04

‘A convite do Estado, personalidades da área cultural apontam os eventos, os livros, os discos, as peças e os filmes que mais os impressionaram em 2004

Maria Adelaide Amaral, dramaturga: ‘Para mim, o CD Lágrimas Negras, de Bebo & Cigala. Desde que ouvi Bola de Nieve, não me emocionava tanta com a qualidade da música (Bebo) e da interpretação (Cigala). Gostei muito também do DVD Memorial de Maria Moura, a peça de teatro Agreste, que tem texto primoroso e direção mais que perfeita de Márcio Aurélio. Além do filme Lugares Comuns, bom, simples e profundo. Um banho de bom cinema argentino.’

Tom Zé, músico: ‘O livro Responsabilidade e Julgamento, de Hannah Arendt. Leitura urgente. Na pág. 121, uma questão importantíssima: na sociedade de massas há a tendência de você, eu, nos considerarmos dentes de uma engrenagem, delegando nossa responsabilidade individual para um coletivo em nome do qual ‘ordens são cumpridas’. Transpondo a questão da filósofa para a criação artística, penso que nós, criadores, por perigoso descuido, podemos transferir a regência de nossa vida criativa para um ‘mercado’ que não é nada além da ditadura da mediocridade. CDs são dois, não há como separar. Elis e Tom, da Trama. Um substantivo para o CD: força. Para lembrar ou saber quanto podem dois grandes talentos. E O Meio, Luiz Tatit, gravadora Dabliú – um grande talento da música de hoje correndo sob a superfície de São Paulo, como um raro veio d’água limpa que nutre o nosso subsolo.’

Marçal Aquino, escritor e roteirista: ‘Eis meus destaques de 2004: Near Life Experience, do coreógrafo Angelin Preljocaj, o espetáculo que mais mexeu com os meus sentidos; Dogville, do Lars Von Trier, uma prova de que ainda é possível fazer cinema com a imaginação; As 6 Suítes para Violoncelo, Bach pelo brasileiro Antonio Meneses, um disco que já nasceu com aura de clássico; Las Muertas, do mexicano Jorge Ibargüengoitia, um livro extraordinário, ainda à procura de um editor brasileiro.’

Maria Bethânia, cantora: ‘É difícil falar um só acontecimento. Outro dia eu fui ler um texto na Academia Brasileira de Letras, Tinta Derramada, de Manoela Oiticica, uma universitária baiana, que ganhou um concurso. Vinte textos são escolhidos e o melhor é lido por um artista. Acho que isso é um movimento lindo da Academia.’

Ignácio de Loyola Brandão, escritor: ‘Achei marcante o lançamento dos dois livros de Luis Martins, Lapa e Noturno da Lapa. Mas achei ótima a publicação de Dobras da Noite, de Chico Lopes, pelo Instituto Moreira Salles. Chico é um Chekhov brasileiro. Vai dar o que falar. Em discos achei uma nota marcante o Elis Regina e Tom Jobim. Filmes: Má Educação e Os Sonhadores. Adorei a exposição de Gilce Velasco e muito original a da Magy, de camisetas. Peça de teatro? Fico com Tarsila, de Maria Adelaide, e O Mercador de Veneza, ambas dirigidas por Sérgio Ferrara.’

José Celso Martinez Corrêa, ator e diretor: ‘Minha vida está plantada desde 2000 em Os Sertões, de Euclides da Cunha. Momentos de aridez total e de mutações, de apoteoses, de mil primaveras por segundo. Este ano que passou, foi novamente o livro que mais li e reli e ainda tive a felicidade de terminá-lo como teatro.’

Nelson Pereira dos Santos, cineasta: ‘Para mim, o fato mais marcante de 2004 foi Paulinho Jobim, Miúcha, Marco Altberg e eu termos conseguido nos juntar para fazer um filme em homenagem a Tom Jobim.’

Thaíde, rapper: ‘A vinda ao Brasil de Snoop Dogg e Ja-Rule foi muito importante. Provou que estamos atualizados com o que há de melhor no cenário hip hop.’

Guta Stresser, atriz: ‘Uma coisa que me marcou este ano foi o livro Lendo Lolita em Teerã, da escritora Azar Nafisi. É uma boa forma de você compreender e aprender sobre pontos de vista masculinos e femininos, além de ver quanto a mulher ocidental é livre, seja no aspecto religioso, cultural. É muito triste ler e saber quanto a mulher muçulmana é humilhada, censurada.’

Monica Salmaso, cantora: ‘O CD A Vida me Fez assim, de Teresa Cristina e Grupo Semente. Teresa Cristina é uma boa notícia dentre algumas que apareceram no Brasil. É importantíssimo, antes de qualquer coisa, o amor pela música que ela tem e a ‘louvação’ com que ela canta. Nesse disco, além disso, ela surge como uma compositora muito séria, muito verdadeira. Sou absolutamente sua fã e seguidora. No quesito filme, Kill Bill 1 e 2 têm uma variedade de ingredientes, para mim, perfeita: ótimo roteiro, ótimos atores, humor, mistura de linguagens, domínio do ofício e trilha sonora escolhida a dedo. Saí do cinema apaixonada pelo filme. Na dança, o espetáculo Lecuona, do Grupo Corpo, foi uma das coisas mais emocionantes que eu já vi. O espetáculo é de uma força impressionante e, ao mesmo tempo, parece que eles estão se divertindo. É apaixonado, maravilhosamente bem-feito. Me diverti muito também lendo o livro Budapeste, de Chico Buarque. Achei que ele pareceu sair de uma brincadeira séria, um divertimento construído como as ‘cidades’ que o autor brinca de inventar. Eu achei o livro delicioso, isso pra mim quer dizer muito bom!’

Claudio Edinger, fotógrafo: ‘Em dança, o que mais gostei foi Samwaad de Ivaldo Bertazzo, em que ele mistura samba e música indiana num show de dança espetacular! É uma mistura divina do Oriente e Ocidente com garotos da periferia paulista dançando com uma maestria pouco vista aqui ou em qualquer outro lugar do mundo… O tipo de coisa que o Brasil deveria exportar pelo mundo afora como a China o faz com seus artistas. Na área de fotografia, a melhor exposição que vi foi sobre o Pierre Verger na Galeria Luisa Strina, muito bem organizada pelo Mario Cohen, com uma ótima seqüência de fotos e com uma intimidade na relação espaço/trabalho exposto rara em exposições de fotos. O melhor filme que vi foi 21 Gramas, em DVD. A história é ótima e a edição do filme brilhante. Gostei muito de Diários de Motocicleta, de Walter Salles, e especialmente de Os Incríveis, de longe o mais engraçado e melhor desenho animado já feito.’

Graziella Moretto, atriz: ‘Achei brilhante o disco do Abu (André Abujamra), O Infinito de Pé, como tudo que ele faz. É um disco que fala das coisas bonitas da vida e de que a única coisa real é o amor. Uma mensagem valorosa para o ano que se inicia, não é?’

Marco Altberg, cineasta: ‘A proposta de lançar a Ancinav é o fato mais marcante de 2004, que vai democratizar o setor, como acontece em todo o mundo.’

Miúcha, cantora: ‘O fato cultural de destaque foi o show Brasileirinho, da Bethânia, uma revisão importante do País.’’



CRÔNICA
Ferreira Gullar

‘Resmungos’, copyright Folha de S. Paulo, 2/01/05

‘Ao ser convidado a escrever crônicas para este jornal, minha primeira reação foi de euforia: vou escrever para um grande jornal! Mas, passado o primeiro momento, veio-me do fundo da consciência esta pergunta: mas escrever o quê? E quase telefono para o jornal desistindo.

Sim, eu não moro em São Paulo, logo não poderei me aproveitar dos temas locais, restando-me falar dos temas nacionais. E quem sou eu para tratar de tais temas, que são preponderantemente técnicos, como os econômicos, os jurídicos, os esportivos…?

Sobrariam os temas políticos, que não exigem tanta especialização, mas requerem estar ‘por dentro’, enquanto eu estou sempre por fora, já que não me dou com deputados, senadores, ministros; com prefeitos e governadores, nem se fala!

E presidentes da República? O único que me convidou para almoçar -e no Palácio da Alvorada- foi José Sarney, mesmo assim porque fomos companheiros de juventude em São Luís. Mas não os culpo, pois sei muito bem não haver razão nenhuma para um presidente da República conversar com poetas que, por definição, vivem nas nuvens. Por que você acha que Platão os expulsou de sua República ideal? Costumo dizer que, se dependesse dos poetas, o mundo estaria na idade da pedra, já que nem a faca de sílex teria sido inventada, muito menos a roda, o arado, o avião, o computador… Nem tampouco -diga-se a nosso favor- a bomba atômica e o fuzil AR-15.

Assim foi que, quanto mais refletia, mais vontade tinha de desistir. E me dizia: bom de fato é escrever para jornais de menor peso e circulação, que pouca gente lê e, conseqüentemente, escreva você o que escrever, fica por isso mesmo. É quase como se falasse sozinho no seu quarto, ou numa mesa de bar: aí você diz o diabo, esculhamba com os poderosos e famosos sem correr o risco de ter seus argumentos reduzidos a pó publicamente por um especialista nem de ser processado por calúnia ou coisa semelhante.

A verdade é que quanto mais pensava mais achava que tinha entrado numa fria. Esse pessoal da Folha é maluco, por que me fazer um convite desses se eu não entendo de nada? É verdade que eu vivo pensando, que chego ao ponto de ligar o aquecedor para tomar banho e me esquecer do banho ou, mergulhado nas minhas reflexões, deixar de me vestir e sair nu do banheiro. Por tanto pensar, certa vez mijei na lata de lixo achando que era o vaso sanitário e, na praia, imerso em cismas, tirei o calção para entrar na água acreditando que estava em meu banheiro.

Penso sobre qualquer assunto, desde uma videoinstalação sacal que vi no MAM do Rio até a matéria escura que o Stephen Hawking diz preencher a maior parte do espaço cósmico. É bem possível, ao entrar em meu escritório, encontrar-me fazendo um discurso contra a teoria do Big Bang: ‘Não dá pra acreditar que os bilhões de galáxias que existem hoje estivessem, no começo do universo, comprimidos numa esfera do tamanho de uma bola de tênis!’. Por isso mesmo, já na juventude, mal chegado ao Rio, fui logo apelidado sarcasticamente de ‘profissional do pensamento’. Donde concluir-se que, como penso sobre tudo sem de nada entender, posso adotar a definição que deu de si mesmo Otto Lara Resende: ‘Sou um especialista em idéias gerais’.

Dizer que não entendo de nada é exagero. Aliás, não é aconselhável exagerar na modéstia nem ficar se depreciando em público porque corre-se o risco de que, neste ponto, todos concordem com você. ‘Se ele mesmo o diz…’ De alguma coisa entendo, creio eu, de arte, por exemplo, e há pessoas que o admitem. De fato, dediquei -e ainda dedico- a maior parte de meu tempo intelectual a pensar sobre esse assunto. Já escrevi até livros sobre ele.

Mas há controvérsias, já que os críticos de hoje afirmam que arte é tudo aquilo que se disser que é arte, o que torna dispensável um crítico como eu. De qualquer maneira, não fui convidado para fazer aqui crítica de arte, que é um gênero, como se vê, talvez dispensável; fui convidado para escrever crônicas, que ninguém sabe direito o que é.

Esta última reflexão me deu ânimo novo, porque, se ninguém sabe direito o que é crônica, posso escrever o que me der na telha, sem correr o risco de o chefe de Redação me devolver o original com a observação de que ‘isto não é crônica’. Mas logo caí outra vez no desânimo ao considerar que tenho certa responsabilidade intelectual, não posso ficar escrevendo abobrinhas sob pena de me desmoralizar.

Se é verdade que a crônica é tida como um gênero menor, no meu caso ela corre o risco de ficar menor ainda, se não oferecer ao leitor o que ele supostamente espera de mim, e que eu não sei o que é.

Se esperar que me mostre um homem culto, estou perdido. Um dos traços mais lamentáveis da minha personalidade é a facilidade com que esqueço tudo o que leio, a não ser quando estou invocado com determinado assunto e aí me debruço atentamente sobre o livro, leio e releio cada frase, tomo notas; fora esses casos, nada consigo guardar na memória. Certa vez falei entusiasmado a um amigo do ‘Coridon’, de André Gide, e contei-lhe a história narrada no romance. Semanas depois, nos encontramos: ‘Leu o livro? Gostou?’, perguntei-lhe. E ele: ‘Você é maluco! A história que me contou não tem nada a ver com o romance de Gide, cara!’. É isso aí, quem não tem memória não pode ser culto.

Mas tenho uma atenuante: é próprio dos poetas só guardar na memória o que os comove. Alegarão que nem todos, já que há poetas cultíssimos. De qualquer modo, quem nada guarda na memória tem a possibilidade de estar sempre vendo as coisas pela primeira vez e descobrir nelas -num filme, num quadro, num poema- aspectos inusitados, o que daria validez a um aforismo que forjei há muitos anos numa época em que me dedicava a esse gênero literário e que diz: ‘Um homem desprevenido vale por dois’. Certamente não em certos pontos da cidade do Rio de Janeiro ou de São Paulo.

Como o leitor já deve ter percebido, toda esta lengalenga é para sugerir-lhe que não espere demasiado deste cronista bissexto. Farei o possível para não ser chato nem gaiato demais. Dificilmente evitarei algumas críticas ácidas, pois muitas das coisas que leio nos jornais e vejo na televisão me deixam irritado a resmungar com meus botões. Aqui terei a oportunidade de fazê-lo em público. Por isso, em muitas ocasiões, o leitor não encontrará aqui crônicas propriamente e, sim, resmungos.’