‘O imponente quartel– general do principal diário conservador da França, o Le Figaro, ergue– se das largas calçadas da Rue du Louvre como um grande transatlântico danificado.
Seus toldos azul– royal estão desbotados, estragados pela intempérie, pombos gordos empoleiram– se no seu telhado e ultimamente o venerável jornal tem sido atingido por uma onda implacável de más notícias.
Um de seus correspondentes estrangeiros, Georges Malbrunot, foi capturado por insurgentes iraquianos e uma gigantesca e sombria fotografia dele faz parte de uma vigília em frente do prédio da prefeitura.
A imprensa especializada francesa está analisando a saúde financeira do jornal, com notícias de memorandos internos avisando que sua circulação, que já era fraca, caiu nos últimos dois meses. E dentro do Le Figaro uma sala de redação dividida ferve com ‘boatos e contraboatos e ataques que vão e vêm’, como disse um jornalista de longa data, desde que o jornal foi assumido na primavera passada pelo fabricante de armamentos Serge Dassault.
O Le Figaro, fundado em 1826, está mergulhado em dois debates. Um é uma batalha interna sobre a própria alma do jornal – sua voz, credibilidade e independência. O outro é uma discussão mais ampla sobre a queda na circulação dos jornais franceses de alcance nacional. Como se contrapor à queda no número de leitores num país onde somente uma em cada seis pessoas lê os diários de circulação nacional?
O debate sobre a independência do Le Figaro vem crescendo desde março, quando a gigante da aeronáutica, o Groupe Industriel Marcel Dassault, comprou 82% da casa editora Socpresse por cerca de US$ 1,8 bilhão. O grupo inclui 70 títulos e o diário Le Figaro, com a circulação de mais de 350 mil neste verão, segundo a entidade que verifica a tiragem dos diários franceses de circulação regional e nacional.
A Dassault não é a primeira empresa a dominar equipamentos militares e depois passar para a mídia. O conglomerado Lagardère, por exemplo, reina sobre mísseis assim como sobre revistas como Paris Match e Elle.Juntas, a Socpresse e a Lagardère detêm mais de 70% da imprensa francesa.
Mas Serge Dassault, de 79 anos, já provocou aborrecimentos na sua curta gestão como magnata da mídia por adotar o que é visto como abordagem agressiva. Ex– piloto de combate cuja empresa produz aviões como Mirage e Rafale, Dassault é entusiasmado com a política conservadora francesa. E despertou ansiedades em relação ao tipo de artigo que disse ser a favor e contra, para o jornal.
Em agosto, reuniu– se com a Sociedade dos Jornalistas no Le Figaro e explicou seus pontos de vista, segundo relato de participantes. ‘Há determinadas épocas em que é necessário tomar muitas precauções’, disse ele. ‘Existem artigos que falam sobre contratos que estão sendo negociados. Há algumas informações que são mais más do que boas. E isso representa um risco para os interesses comerciais e industriais do nosso país.’
Muitos jornalistas reconhecem que há uma vantagem no investimento de Dassault. ‘Devemos ser gratos por Dassault injetar dinheiro no jornal’, disse um deles. ‘Mas ainda é um jornal com credibilidade e leitores próprios.’’
Luis Fernando Verissimo
‘Le ridicule’, copyright O Estado de S. Paulo, 30/9/04
‘Lê-se cada vez menos jornal, na França. Má notícia num país em que a imprensa ajudou a fazer a História como em nenhum outro e em que o jornal que você carrega embaixo do braço junto com a baguette pode ser uma definição de caráter, mais do que uma definição política. Na França – também, mais do que em qualquer outro lugar do mundo – você é o jornal que você lê.
Ou era. Cada vez menos franceses estão dando essa importância aos seus diários. E alguns diários estão em crise. No Le Monde demitiram, literalmente, meio mundo. E o velho e conservador Le Figaro, além da crise econômica, passa por uma crise de auto– estima. Há uma rebeldia interna contra uma suposta intervenção na linha editorial do Figaro do seu novo dono, Cerne Dassault, do fortíssimo conglomerado industrial Marcel Dassault, que em março deste ano comprou o controle acionário do grupo que publica o jornal e o salvou da insolvência. Como o grupo Lagardere, que publica o Paris Match e a Elle, entre outras revistas, o grupo Dassault é fabricante de armas (os aviões Mirage são deles). O que significa que desde março deste ano mais de 70% da imprensa daqui pertence ao complexo industrial militar, versão francesa.
Mas dizem que as objeções internas a Cerne Dassault têm menos a ver com a possibilidade dos seus interesses bélicos ameaçarem a objetividade do Figaro e mais com seu hábito de escrever artigos de um reacionarismo embaraçosamente primário em contraste com o tradicional reacionarismo sofisticado do jornal. Houve denúncias de notícias e artigos censurados porque prejudicariam os negócios de armas da Dassault mas o que parece preocupar, mesmo, a redação são as pretensões literárias do Cerne, que já escreveu, entre outras coisas, que o movimento gay é uma conspiração internacional para acabar com a civilização cristã. Afinal, o conservadorismo também pode ser de bom ou de mau gosto, e mais do que a perda da sua independência editorial o que os jornalistas do Figaro mais temeriam seria o ridículo. Pois como em tudo, na França, a questão principal acaba sendo não de conteúdo mas de estilo.’
Bertrand D’Armagnac
‘Jornais franceses atravessam grave crise’, copyright Folha de S. Paulo / Le Monde, 02/10/04
‘A imprensa francesa está em crise. Os jornais ‘Le Parisien’ e ‘Le Monde’ anunciaram planos de incentivo às demissões voluntárias, em razão do déficit em suas contas. O ‘Libération’, que há mais de dois anos procura acionista que substitua o fundo de investimentos 3i, está para enfrentar outra crise. ‘Le Figaro’ vem perdendo dinheiro, e a redação teme por sua independência.
Além dos problemas específicos de cada título, todos enfrentam uma crise maior, que tem certas características peculiarmente francesas e outras que se reproduzem nos países vizinhos e em outros ainda mais distantes.
De 1997 a 2003, a base de leitores dos diários nacionais franceses caiu 12%, (perda de 800 mil leitores), diz a EuroPQN. Em 2003 todos os diários de alcance nacional registraram queda de circulação, à exceção de ‘La Croix’ e ‘Aujourd´hui en France’.
De 2001 a 2003, a parte dos títulos nacionais nas receitas da imprensa caiu de 10% para 8,1%. No mesmo período, a parte do mercado publicitário controlada pela imprensa escrita declinou, em benefício das mídias audiovisuais.
Na base dessa mudança está uma alteração de comportamento dos cidadãos. Como destaca estudo do instituto Bipe, a maior disponibilidade de tempo livre não beneficiou a leitura, mas sim a televisão, as atividades de faça– você– mesmo e os esportes e jogos.
No final dos anos 90, das 4 horas e 13 minutos de cada dia dedicadas ao lazer, a TV ocupava 2 horas e 7 minutos, ante 25 minutos para a leitura. Além disso, os franceses agora usam mais seus carros para ir ao trabalho, e se informam basicamente pelo rádio.
O surgimento da internet, outro obstáculo aos jornais, acostumou os franceses a obter acesso instantâneo à informação, pagando apenas pela conexão com a rede.
O sucesso de público dos jornais gratuitos também prejudica publicações pagas. Os leitores desses jornais e revistas, na maioria jovens, são também mais volúveis.
A perda de uma conexão regular entre os diários e os jovens, de acordo com o Bipe, constituiu uma ‘bomba de ação retardada’, porque pesquisas realizadas nos últimos 30 anos demonstram que o índice de leitura de cada geração não cresce com o tempo, e o contrário tende a ser mais verdadeiro.
As dificuldades econômicas e industriais da imprensa cotidiana a colocam em postura pouco favorável para resistir a essas mudanças sociológicas. ‘O modelo econômico da imprensa não pode continuar sendo o mesmo que existia antes que surgisse a internet e a TV ganhasse tamanha força’, destaca Henri Pigeat, consultor e antigo presidente da agência France Presse. Para ele, ‘a imprensa cotidiana sofre particularmente com a sua subcapitalização. Jamais houve um esforço para atrair capitais para a imprensa, como o que com o cinema.’
Mas, mesmo que a situação seja preocupante, o declínio não é irremediável. ‘É preciso discutir a missão atual dos jornais, agora que as formas de consumo de mídia estão se alterando’, diz Pigeat.
No Reino Unido, o jornal ‘The Independent’ ganhou mais de 27,4% em termos de circulação em um ano, graças a uma nova fórmula que alia formato tablóide a um conteúdo mais dinâmico. De maneira geral, em função da internet, os diários ganharam mais leitores em suas versões online. E, se os jornais gratuitos concorrem com os pagos, eles pelo menos estão criando novos leitores para a imprensa.’
PRIMEIRA LEITURA
‘Caminhos novos, o mesmo norte’, copyright Primeira Leitura (www.primeiraleitura.com.br), 03/10/04
‘No dia 31 de agosto de 2000, cremos que um produto até então inédito surgiu no mercado jornalístico brasileiro: o site Primeira Leitura. Em tal ineditismo, havia o prazer da aventura intelectual e os riscos inerentes a qualquer desafio. Não nos tentava, então, como não nos tenta agora, nem a mais remota intenção de afrontar ou de confrontar a chamada grande mídia. Ao contrário: este site saúda o vigor do jornalismo que se faz no Brasil, imperfeito, sim, como tudo o que é humano, mas capaz – e a história o prova – de buscar os caminhos da auto– regulamentação e do contínuo aprimoramento de seus critérios e de sua técnica.
Primeira Leitura ousou, num trabalho inicialmente pequeno, mas sempre valente, participar do debate público, produzindo um site cuja vocação original, que se conserva, era organizar, selecionar e interpretar as principais notícias do Brasil e do mundo. Para tanto, reunimos alguns profissionais de talento, que ousaram partilhar dessa aventura. Em janeiro de 2001, agregou– se ao projeto inicial a revista República– Primeira Leitura, depois apenas Primeira Leitura, que chega, neste outubro, à edição de nº 32.
Hoje sabemos que muitos concordam vivamente com a linha editorial do site e da revista. Outros tantos dela discordam não com menos energia. Mas poucos, nos chamados setores formadores de opinião, são indiferentes ao que se produz cotidianamente no site e ao que se publica mensalmente na revista. Afinal, a nossa objetividade sempre teve a marca firme e explícita da interpretação e da análise. Participamos, enfim, do debate público.
Primeira Leitura, no espaço que decidiu ocupar, a despeito de todas as dificuldades pelas quais passou e passa o setor no país, é um sucesso. E respondem por esse sucesso todos os profissionais que o fazem, todos aqueles que passaram, ao longo desses quatro anos, pelo site e pela revista. A convivência não poderia ter sido intelectualmente mais prazerosa e proveitosa para todos nós. Somos hoje maiores e, ousaríamos dizer, melhores do que já fomos em nossa profissão. Fala– se aqui, pois, de êxito.
Ocorre que os tempos mudam, as vontades, também. A inquietude é o motor da vida, da sabedoria, da novidade. Primeira Leitura está aí, pronta para continuar sua caminhada, preparando uma vigorosa edição, a de nº 32. Mas prossegue, a partir deste dia 1º de outubro de 2004, com uma nova conformação. Luiz Carlos Mendonça de Barros, editor da revista e do site, decidiu não ser mais parceiro nesta caminhada. Assumem, agora, essa função os jornalistas Reinaldo Azevedo e Rui Nogueira, que passam a responder pela Editora Primeira Leitura, que edita site e revista.
O que aqui se informa aos leitores segue com a transparência de sempre, aquela mesma a que tanto os admiradores como os críticos já se acostumaram. Não há litígio de qualquer espécie a criar dissensões nas muitas convergências intelectuais havidas nesse tempo ou a macular os laços afetivos tão solidamente estabelecidos ao longo de quatro anos. Tanto quanto isso é verdade, a mudança no controle da empresa está se dando, também, de fato, com todos as conseqüências e os aspectos próprios a procedimentos de tal natureza.
Se os que passam agora a responder pela empresa – e, portanto, pelos destinos do site e da revista – lamentam a decisão de Mendonça de Barros de se desligar de Primeira Leitura, forçoso é reconhecer que ao parceiro que decide mudar de trilha, sem mudar de norte, se desejam sorte, confiança no futuro, bem– aventurança, expressões que fazem especial sentido porque pautadas pela reciprocidade. Continuamos todos a lutar por um país mais justo, mais sábio, mais digno. O norte é um só.
Os que ficamos, é claro, temos todos as esperanças e todos os receios inerentes a um desafio que nada tem de corriqueiro. Mas temos confiança inquebrantável na qualidade da equipe. Site e revista conservam intocada a sua linha editorial, na defesa intransigente da democracia, da justiça social, do republicanismo, das liberdades públicas, da inviolabilidade dos direitos individuais, do Estado de Direito, da pluralidade política, do respeito às diferenças, da economia de mercado e da liberdade absoluta de expressão – que tem no já aludido Estado de Direito a sua fonte primeira e seu único limite. Isso não muda.
A primeira e óbvia pergunta que muitos hão de fazer será esta: ‘Vai dar certo?’ A nossa resposta não poderia ser outra: já deu!, ainda que esta fosse uma carta de despedida em vez de ser, como é, um texto de compromisso com o futuro tanto de quem sai como dos que permanecem. De fato, não é todo dia que jornalistas ousam assumir uma editora. No interesse da pluralidade, da democracia, do debate público, que Primeira Leitura tenha longa vida! E que possamos todos nós continuar a experimentar o êxito, por caminhos novos, mas sempre sabedores do norte.’