‘Assim não dá. Enquanto o embate ficou no âmbito das idéias e do debate intelectual – mesmo que pontuado por insultos mútuos e ofensas estridentes – a América de Michael Moore (liberal) e a de Ann Coulter (conservadora) ainda se toleravam. Até porque um parece precisar do outro para medir a própria força. Mas na semana passada a voz mais demolidora da América ultra-republicana usou arma desleal, por invencível: um notável par de pernas que deixam tanto a direita quanto a esquerda dos Estados Unidos de queixo caído.
Durante a semana inteira Ann Coulter reinou sozinha nas bancas de jornal do país, como tema da capa da revista Time. Com sua silhueta longilínea enfiada num pretinho básico, a cachoeira de cabelos louros emoldurando os seios e o par de pernas estrategicamente cruzado e alongado pela lente do fotógrafo, Ann Coulter nocauteou o rival ideológico. Como competir contra um par de pernas daquele, quando você é desaprumado, mais para amorfo, óculos em desequilíbrio permanente num rosto suado? Michael Moore também já tinha sido capa de Time, no longínquo tempo (2004) em que seus filmes, livros e idéias efervesciam no cenário político-cultural americano.
Michael e Ann têm em comum serem celebridades, se alternarem na lista dos autores mais vendidos e embolsarem milhões de dólares com a persona ideológica que cada um optou por incorporar. Jamais mediram as forças num debate direto – possivelmente para não correr o risco de terem de dividir as atenções. Mas enquanto Michael Moore concentra o seu agit-prop fazendo documentários de denúncia monolítica irreverente, a louraça de 43 anos intoxica mentes com sua presença na televisão e uma coluna acerba em jornais americanos.
Apenas um exemplo do estilo Coulter de incendiar: ‘Precisamos atacar a França’, escreveu em março de 2002 na publicação conservadora American Enterprise. E explica porque: ‘Tendo se exaurido no feroz combate contra o nazismo, na última guerra, a França de hoje não consegue mais arregimentar forças para combater o terrorismo. Ela tem alimentado, financiado e protegido terroristas fundamentalistas islâmicos há décadas.’
‘Ann tem a língua mais rápida do Leste’, elogia o reverendo Jerry Falwell, com quem comunga parte do ideário conservador. Mas apenas parte, visto que o gatilho verbal de Ann Coulter nem sempre poupa o arquiteto maior da América conservadora, o próprio presidente dos EUA, George W. Bush. Aborrecida com a forma que considera ‘molenga’ e ‘indecisa’ com que a Casa Branca está encaminhando a revisão do direito ao aborto, a colunista decretou, meses atrás, que ‘talvez Bush seja mesmo um cretino’.
O que mais enfurece a América liberal e democrata é o domínio com que Ann Coulter maneja o seu tempo de exposição na televisão.
Cada vez que é chamada a opinar na CNN ou Fox News, leva a audiência a estados de exaltação, exultação ou ira absolutos – ou seja, sucesso total segundo o estado das artes do debate intelectual transformado em reality show.
Dado que na discussão política, pela tevê, se privilegiam opiniões que causem o máximo de choque com um mínimo de palavras, Ann Coulter é nome de grife.
Ao vivo e a cores também. Por U$ 25 mil a palestra (ou U$ 50 mil, depende) ela causa um mesmo frisson em platéias hostis ou amigas. Algo como a pós-feminista Camille Paglia nos anos 90. No circuito acadêmico/universitário, majoritariamente liberal, sempre há alguém na platéia decidido a pulverizar as frases de efeito e simplificações abrasivas da palestrante. Em geral, acaba sendo atropelado pelo trator Coulter. Seis meses atrás, exasperados, dois estudantes da Universidade do Arizona a alvejaram com tortas de creme chantilly.
Desde então, ela se apresenta a bordo de dois guarda-costas e uma unidade policial de prontidão.
Foi assim em janeiro deste ano, no Boston College. Foi assim em março, quando se apresentou no Auditório Cabot da Universidade Tufts, em Massachusetts, Estado natal de John Kerry e do liberalismo que ela pinça como inimigo maior do país. Basta listar alguns títulos de seus livros, nenhum ainda publicado no Brasil, para se ter a dimensão da cruzada de Ann Coulter: Treason – Liberal Treachery from the Cold War do the War on Terrorism ( Traição – Perfídia Liberal da Guerra Fria à Guerra contra o Terror), How to Talk to a Liberal, If You Must (Como Falar com um Liberal, se necessário), Slander – Liberal Lies About the American Right (Calúnia – Mentiras dos Liberais sobre a Direita Americana).
Segundo a revista Time, em fevereiro último, por ocasião de uma palestra no Atrium Hall do Edifício Ronald Reagan, em Washington, um dos presentes fez o que cristãos-novos e macacos velhos gostariam de ousar: na sessão de perguntas e respostas que se seguiu, convidou-a para sair. Só que Ann Coulter, como mulher, seduz tanto quanto intimida. Solteira, desfez três noivados até agora. Educada em colégios de elite e formada em Direito pela Universidade de Michigan, ela veste o figurino da mulher que despreza mulher.
Aliás, difícil ser mais politicamente incorreta: Ann fuma, bebe, usa casaco de pele (longo, ainda por cima, cobrindo uma micro-saia de couro preto), e desanca minorias de todos os tipos.
‘Ela é a Paris Hilton da política pós-moderna’, alfineta James Walcott, um de seus críticos mais ferozes, em artigo para a Vanity Fair.
‘Reacionária’, ‘neo-imperialista’, ‘pantera televisiva’, ‘embusteira’, ‘fraude’ são apenas alguns dos epítetos que a acompanham, variações de uma dúvida central em torno de Ann Coulter: sua verborragia é oca ou baseada em convicção? Suas argumentações têm algum peso intelectual? O fervor ideológico é sincero ou ferramenta de marketing? A revista Time, ao colocá-la na capa, quis fazer média com o eleitorado conservador? O autor da reportagem, John Cloud, se defende. ‘A meu ver Ann Coulter condensa a forma como a política foi discutida neste país ao longo da campanha eleitoral do ano passado. Foi um mata-mata dos dois lados. O lado dela venceu de forma inequívoca e me pareceu oportuno mostrar quem é a força por trás da forma como nosso debate político vem sendo conduzido. Sob vários aspectos, Ann Coulter é a pessoa que está dando o tom desse diálogo’, declarou Cloud em entrevista pela Internet. A América já conheceu tempos melhores.’
Michael Kinsley
‘Reversão desavergonhada dos neocons’, copyright O Estado de S. Paulo, 24/04/05
‘O termo neoconservador começou como um insulto e ainda é usado dessa maneira. Quando as pessoas dizem que a escolha de Paul Wolfowitz para dirigir o Banco Mundial marca o triunfo dos neoconservadores na política externa do governo Bush, geralmente não estão indicando prazer. Os cínicos dizem que estão indicando anti-semitismo: um neoconservador é um intelectual judeu com o qual você não concorda. Isso é muito grosseiro. Mas o que significa neoconservador?
No último número da revista National Interest, Rich Lowry, um conservador do tipo não-neo, define um neoconservador como alguém com uma ‘visão messiânica’ de usar o poder americano para disseminar a democracia, com uma indiferença à distinção crucial entre o que seria bom e o que é essencial para a segurança nacional, e um otimismo excessivo de que podemos arranjar as coisas de acordo com nossos próprios valores em terras estranhas e longínquas. Uau. Nem sempre é assim.
Quando a palavra surgiu pela primeira vez nos anos 1970, o golpe estava em chamar as pessoas de conservadoras 5 ou 10 minutos antes de elas estarem preparadas para admitir isso. O grupo principal eram os trotskistas do City College nos anos 1930. Nos anos 1950 e 1960, eles eram liberais anticomunistas e defensores da Guerra no Vietnã. O movimento antiguerra e a contracultura dos anos 60 os alienou. A ação afirmativa foi outro ponto amargo. Finalmente, Irving Kristol, apontado como chefão neoconservador, decidiu levar isso como um elogio. Ele definiu um neoconservador como ‘um liberal surpreendido pela realidade’. Essa frase também resume a trama do Grande Romance Neoconservador, Mr. Sammler’s Planet, de Saul Bellow. O último romance de Bellow, Ravelstein, na verdade tem um personagem inspirado em Wolfowitz.
O grande tema neoconservador era o pragmatismo consciente diante da ingenuidade liberal. Os liberais eram sentimentais. Eles acreditavam que as pessoas eram basicamente boas ou podiam ser facilmente transformadas. Internamente, os programas sociais liberais não eram páreo para os marginais intratáveis ou ainda tornavam a situação pior. No mundo, os liberais estavam muito apoiados na democracia e nos direitos humanos, recusando-se a reconhecer que a única questão importante sobre outros países é: amigo ou inimigo?
Em algum lugar, eu ainda devo ter uma lembrança de um antigo ponto alto do conservadorismo. É um boné de beisebol da convenção republicana de 1988 que diz: ‘Jeane Kirkpatrick para vice-presidente.’ Isso foi sério. Kirkpatrick, uma acadêmica austera com um olhar enviesado, era tão improvável como política quanto se pode imaginar. Mas é preciso dar crédito ao Partido Republicano: às vezes, eles se regozijam com suas idéias. Quando foi a última vez que os democratas fizeram isso?
Ronald Regan teve uma síncope em 1979 com um artigo de Kirkpatrick na revista Commentary, o órgão oficial neoconservador, e ele a nomeou sua embaixadora na ONU quando se tornou presidente. Ela fez o grande discurso na convenção de 1984 do Partido Republicano, liderando a massa de republicanos em um coro de ‘eles sempre culpam a América primeiro’.
O artigo de Kirkpatrick, Dictatorship and Double Standards (Ditadura e Padrão Duplo), foi um ataque feroz ao presidente Jimmy Carter por tentar ‘impor liberalização e democratização’ em outros países. Ela fez pouco ‘da crença de que é possível democratizar os governos a qualquer tempo, em qualquer lugar, sob quaisquer circunstâncias’. A democracia, disse ela, depende ‘de complexas condições sociais, culturais e econômicas’. Leva ‘décadas, se não séculos’.
Kirkpatrick achava que o poder americano deveria ser usado para apoiar ditadores instáveis, mas amistosos, como Anastasio Somoza, da Nicarágua, e o xá, do Irã, Reza Pahlevi. Carter estava sentado nas próprias mãos, reclamou ela. Agora, temos um governo que – espertamente ou estupidamente, sinceramente ou cinicamente – alega ter a busca agressiva da democracia como ponto central de sua política externa. E diz-se que a Doutrina Bush tem as impressões dos neoconservadores sobre ela.
Isso é uma bela volta por cima do mais influente grupo de intelectuais da América, embora surpreenda que tenha recebido poucos comentários ou explicações. Escrevendo na Commentary (onde mais?) em 1997, Kagan notou a diferença entre suas idéias e as de Kirkpatrick e se divertiu às custas dos oponentes que estavam à procura de uma política externa de alto nível até que os neoconservadores começaram a pedir uma. Mas ele tinha pouco a dizer sobre a volta por cima dos próprios neoconservadores.
Muitas explicações estão disponíveis. O colapso da União Soviética (que os neoconservadores não previram – sua cantilena era que a União Soviética ficava cada vez mais forte, enquanto os Estados Unidos patinavam) certamente mudou o cálculo. A aparente fácil dispersão da democracia nas duas últimas décadas pode ter desfeito o pessimismo de Kirkpatrick. Mas todas essas explicações exigem uma admissão de erro, algo em que os neoconservadores não são bons. Eles estão vendendo certeza.
O autor é editor de editoriais e opinião do jornal ‘Los Angeles Times’’
Vinicius Torres Freire
‘Bento, Bush e blogs’, copyright Folha de S. Paulo, 25/04/05
‘O mundo, oh, cada vez mais conservador, suspiramos nós ali pelos 40 ou mais, da última geração que se interessou por política, diante de Bento 16, Bush e quejandos.
O mundo é um lugar injusto e mau como sempre, apesar de vacinas e de mais bens em toda parte. Nós, que já não amávamos tanto a revolução, sabemos porém que o inferno na terra poderia ser algo menor. Mas o que conservadores de fato conservam?
Gente de 20 anos e pico desconectou-se das sabedorias e do mundo convencionais. Orbitam no Orkut, blogs e na música ruim de iPods. ‘Ficam’, mas parecem caretas. Literatura e artes, tais como cultivadas até o modernismo, lhes são tão estranhas como entender de heráldica.
Ongueiam em ONGs, mas desdenham a política da polis, que talvez nem exista mais mesmo, pois vivemos sob impérios, finanças globais ou armas americanas, poderes que a velha política não sabe enfrentar.
Mas como saber o que sairá deste caldo? ‘Conservador’ ainda é palavra útil? A política, o Estado, controla mudanças? O que podemos prever do mundo acelerado por tecnologias informacionais, financeiras e biológicas? Não previmos nem o desabamento ridículo do comunismo, a letargia do Japão, a virada chinesa, temas de sabedorias convencionais.
Minha filha, oito anos hoje, há meses montou seu blog. Acha o que quer na internet por meio do Google, apesar da ortografia ainda caoticamente infantil. Aos seis anos, explicava que casais de homens têm de adotar filhos porque não têm vagina e útero para gerar crianças. Já pediu piercing e celular, obviamente negados.
Não teve educação religiosa, mas desde os cinco anos se dizia ‘católico-judeusa’ (‘judeusa’ por causa de amigos da escola e as duas fés porque ‘somos todos irmãos’). Teme seqüestros. Acha exótica e chata minha infância sem DVDs e computador. Gosta do ‘Picapau Amarelo’, mas na TV (em que dona Benta usa e-mail!).
Numa tabuleta suméria de 5.000 anos (está no Louvre), alguém já se queixava dos jovens e de como o mundo ficava pior. Tudo verdade? Talvez. Só mais rápido, decerto.’