Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Dostoiévski e o grito niilista da cultura de massa

Em Os Irmãos Karamazov (1879), romance do escritor russo Fiodor Dostoiévski (1821-1881), a ficção projeta o inconsciente político, ou a ‘memória do subsolo’ da emergência, na modernidade-mundo, de um sistema de mídias marcado e demarcado pela completa falta de limites, pois será configurado, tal como o enredo do livro de Dostoiévski, a partir da seguinte premissa: se a imortalidade não existe, porque Deus não existe, então as leis, as convenções ou os costumes não têm razão de ser, razão pela qual tudo é possível, inclusive o parricídio, o matricídio, o infanticídio, o genocídio, o incesto.

Sei que tal argumento parece inverossímil, mas penso que a inverossimilhança constitui o caminho mais factível, para não dizer o mais rigoroso, para a abordagem das instituições que configuram as linhas de força de nosso atual presente histórico, pela simples razão de que são, no geral, inverossímeis, como o é a instituição familiar, a do mercado capitalista, a do poder judiciário, legislativo, executivo e, antes de tudo, a midiática, por se constituir como a inverossimilhança ‘em pessoa’, como virtual tempo irreal; tanto mais inverossímil quanto mais pretende ocupar o lugar de todas as outras instituições, com sua não menos inverossímil onipresença de banalidades, de narcisismos, de idiotices, de hipocrisias, de mediocridades, de fetichismos.

Desconsiderando os dissimulados e hipócritas teatros éticos, nosso sistema midiático organiza a farsa de sua programação fora de todo e qualquer limite social, econômico, natural, seguindo à risca o principal argumento de Os irmãos Karamazov, qual seja: num mundo sem Deus, a humanidade pode se transformar em Deus, de tal maneira a se posicionar além do bem e do mal, razão pela qual pode produzir tanto um mundo infernal, bárbaro, inabitável, como, por outro lado, um mundo de justiças, de cuidados e de ilimitadas felicidades coletivas, no horizonte da plena e não menos ilimitada liberdade de expressão intelectual, corporal, amorosa, estética, técnica, civilizacional.

O que fazer com nossas ilimitadas potências expressivas?

A pretexto, no entanto, da ilimitada liberdade de expressão inscrita como laica necessidade, possibilidade e potencialidade na modernidade-mundo, o sistema planetário de mídias constitui-se como o lugar por excelência do divino, em nome do qual, de seu divino-soberano lugar, acredita e se arroga o direito de poder tudo, rechaçando despoticamente, como se fosse uma traição a Deus, ou ao rei, toda e qualquer legítima tentativa de democratização dessa ilimitada liberdade expressiva dos meios de comunicação, infelizmente voltada e devotada para a produção midiática de um mundo infernal, bárbaro, injusto, criminoso, estúpido.

A questão tópica, portanto, no que diz respeito à liberdade de expressão, não é a de controlar os meios de comunicação – argumento de fato autoritário –, mas de reverter a sua tendência expressiva criminosa, medíocre, banal, assassina, através da completa remodelação de seus dispositivos perversos, bárbaros, o que significa dizer que sua cosmológica potência deve estar plenamente voltada para o estímulo da plena liberdade expressiva da solidariedade, da cooperação, da justiça, do cuidado, da inteligência, da criatividade, ao invés de estar direcionada para a banalidade, para a barbárie, para a ignorância, indiferença, egoísmo, retardados infantilismos, exibicionismo, concentração de renda, preconceito, como é o atual caso.

O principal equívoco dos movimentos sociais que exigem regulação dos meios de comunicação é, assim, este: não compreender que o argumento da regulação é anacrônico porque não está assentado na dinâmica laica de um mundo pós-Revolução Francesa, no qual e através do qual o que interessa é liberar as potências expressivas da humanidade, no lugar de controlá-las, limitá-las, circunscrevê-las. O que está em jogo, numa civilização laica, portanto, é a questão colocada pelo romance Os irmãos Karamazov, de Dostoiévski, a saber: o que fazer com as nossas ilimitadas potências expressivas, num mundo não mais regulado pela tradição, pelo conselho, pela sabedoria, pela transcendência, como é o caso do mundo moderno?

Os idiotas manipuláveis e os culpados

Qualquer tentativa de democratização dos meios de comunicação que não assuma essa questão esfíngica corre o sério o risco de não ser plenamente moderna, de modo que, de antemão, inscrever-se-á inevitavelmente como anacrônica e em franca desvantagem com o atual uso em massa que é feito pelas tecnologias de comunicação; uso, quer admitamos ou não, moderno, porque exerce a demanda de uma laica liberdade expressiva, ainda que de forma absolutamente direcionada para o estímulo – igualmente pré-moderno – do que existe de mais nefando em nós: o egoísmo, a estupidez, a arrogância, a ignorância, o preconceito, a sujeição, a humilhação, o autoritarismo, a inveja e o sem fim de outras expressivas perversões que a humanidade vem protagonizando no decorrer de sua malfadada história neste planeta, razão suficiente para, sob o ponto de vista dos outros seres, consideramos que a besta das bestas, a mais destruidora e autodestruidora, é a besta humana, cujo fim será sem dúvida alguma um motivo de inigualável alegria para as vidas não humanas que habitam a Terra.

E é como expressividade moderna, embora perversa, que o sistema midiático produziu/inventou a cultura de massa como efeito possível, na modernidade, do desfecho da trama de Os irmãos Karamazov, de Dostoiévski, o que comprova, assim, o argumento de que a ficção literária pode antecipar os rumos prováveis e improváveis do futuro, considerando as ‘escolhas’ que efetivamente fazemos no decorrer da narração desta outra ficção cravada na carne dos humanos: a ficção da realidade como evidência de nosso fracasso civilizacional.

Assim como o desfecho de Os irmãos Karamazov é aquele em que finalmente se descobre que o assassino do patriarca da família Karamazov, o fazendeiro Fiódor Pávlovitch Karamazov, é o supostamente idiota da trama, o bastardo e abobado personagem Smierdiákov (provavelmente um filho não assumido por Pávlovitch Karamazov), a cultura de massa é igualmente o lugar reservado pelo sistema midiático planetário para a produção/confecção de idiotizados e bastardos seres humanos ilimitadamente prontos a assassinar não apenas pais, por dinheiro, mas também a própria liberdade expressiva dos povos, como potência laica, posto que ela nada mais é do que a estratégia que o sistema midiático internacional tramou para inscrever, na modernidade-mundo, o lugar dos povos: o de bastardos e de idiotas manipuláveis, por um lado; e o de culpados por tudo de negativo que a besta oligárquica moderna planetária faz e desfaz, ata, desata e mata, contra os massificados povos.

Um mundo em que tudo é possível

A cultura de massa, assim, constitui o horizonte de expressividade dos povos contra si mesmos e para isto ela foi inventada, para figurar e configurar perfis humanos que são tanto mais idiotas quanto mais matam e inviabilizam a potência libertária sem fim dos povos, num contexto laico em que tudo é possível, mas que, no horizonte da cultura de massa, as infinitas possibilidades expressivas dos povos devem estar intrinsecamente implicadas com um sistema de submissão e sujeição, tanto mais eficiente quanto mais for da ‘livre’ vontade dos povos, situação muito bem exemplificada no contexto festivo de um gol, nos estádios de futebol, no qual e através do qual a torcida grita feliz, com a realização em ato de seu próprio suicídio laico-expressivo: ‘Está dominado! Está tudo dominado!

Eis porque o principal objetivo da cultura de massa é este: produzir um paradoxal tipo de niilismo: o de uma liberdade expressiva marcada e demarcada pela sujeição absoluta, de sorte que a vontade de nada se transforma no nada da vontade ou no nada em relação à vontade de produzir, numa perspectiva laica, o mundo em que tudo é possível: o amor ao estranho, o fim da fome, a cooperação planetária e a infinita liberdade expressiva de nossas criatividades e potências inventivas, sem nome próprio, porque, como a poesia, a água e o ar, tudo é para todos e para ninguém.

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Poeta, escritor, ensaísta e professor da Universidade Federal do Espírito Santo