‘O diretor do núcleo de documentários da TV Cultura de São Paulo, Mário Borgneth, produziu uma magistral encrenca. Por motivos políticos, recusou-se a transmitir o trabalho ‘O sol da liberdade’, uma reconstrução da campanha das Diretas de 1984, feita pelo jornalista Alex Solnik. Cancelou a transmissão de uma peça que a emissora programara e divulgara.
Numa entrevista ao repórter Maurício Stycer, Borgneth contou que o trabalho de Solnik tinha ‘um buraco monumental em relação ao movimento sindical e ao recém-criado PT. O filme apresentava um painel bastante incompleto das forças que viabilizaram as Diretas (?) Não faço co-produção de mentirinha.’
A argumentação de Borgneth não é de co-produtor, mas de comissário. A campanha das Diretas foi a maior mobilização popular da História brasileira. Se algum partido tem o crédito desse magnífico momento, ele é o falecido PMDB de Franco Montoro, Ulysses Guimarães e Tancredo Neves. O papel do PT nessa mobilização foi relevante, mas não foi fundamental.
Solnik fez o seu documentário de 55 minutos com R$ 15 mil do Senac e um generoso apoio logístico da TV Cultura. Seu trabalho é simples, pobre. Tem alguns momentos emocionantes, como uma passeata na Praia de Capão da Canoa. Reflete bem a época e é melhor vê-lo do que decidir não vê-lo.
Borgneth suspendeu a exibição com argumentos de duas ordens. Um, genérico, é a ausência do PT. Tem toda razão na crítica. Lula não aparece no filme e o governador Aécio Neves faz três aparições banais, longas e injustificadas. Em 1984 ele era apenas o secretário do avô, Tancredo Neves.
Outras restrições foram pontuais. Solnik conta que Borgneth se contrariou com o depoimento do ex-deputado Airton Soares, que teve de deixar o PT porque votou em Tancredo Neves. Não gostou que Fafá de Belém contasse o boicote que Franco Montoro tentou impor-lhe, nem de Mário Covas Neto dizendo que hoje o PT está à direita do PSDB. Essas observações pontuais, amparando a decisão de não levar o documentário ao ar, são um exercício clássico de censura.
O documentário tem tucano demais e barbudo de menos. E daí? O trabalho é de Solnik, não de Borgneth. Se o jornalista tivesse dado muito espaço aos tucanos num documentário sobre as greves do ABC, teria sido parcial. No caso das Diretas, os petistas foram coadjuvantes. Enfiar sindicalistas num documentário como o de Solnik seria delírio stalinista. ‘O sol da liberdade’ é um retrato aceitável do que foi a campanha das Diretas. Tomara que a conduta de Borgneth não seja um retrato de novos padrões na TV Cultura, uma instituição pública.
A TV Minas já transmitiu o documentário e é provável que a TV Senado venha a fazê-lo. Se Deus é brasileiro (mesmo que seja petista), o documentário de Solnik será transmitido pelas emissoras de televisão interessadas em informar ao público que, independentemente do que se acha da peça, um comissário é pouco para silenciar uma produção cultural decente.’
TV CULTURA EM CRISE
‘Estudo aponta ‘supercustos’ na Cultura’, copyright Folha de S. Paulo, 9/06/04
‘Os programas da TV Cultura, mantida pelo governo do Estado, custam até 3.164% a mais do que nas redes comerciais, aponta estudo inédito, concluído em abril pela consultoria Booz Allen Hamilton. Na média, a programação da Cultura sairia 113% mais cara do que a da concorrência.
O estudo, que foi feito de graça e vem causando controvérsia por subestimar custos das TVs comerciais, integra dossiê enviado há duas semanas a todos os conselheiros da Fundação Padre Anchieta (mantenedora da Cultura) por Julieda Puig Pereira Paes.
Ligada aos secretários estaduais da área econômica, a economista Paes assumiu o cargo de diretora-superintendende da fundação em agosto passado, numa ‘intervenção branca’ não assumida pelo governo do Estado, mas apontada como tal por diretores e conselheiros da Cultura.
Sua missão principal era fazer uma reestruturação que resultasse em redução dos gastos da TV pública, reduzindo assim os repasses do governo. Paes pediu demissão no último dia 25, após se ver excluída de composição política que elegeu Marcos Mendonça, ex-secretário de Cultura, novo presidente da fundação.
Com quase 200 páginas e mais de uma dezena de anexos, o dossiê que acompanhou o pedido de demissão de Julieda Paes é o mais contundente documento já divulgado sobre a TV Cultura.
‘A chamada ‘crise da Cultura’ não é uma crise de receitas, como comumente se diz, mas uma crise de despesas’, afirma a economista na apresentação do relatório.
Conclui Paes que ‘as áreas fim [produção e jornalismo da Cultura] têm deficiências de comando, controle, capacitação gerencial e falta de orientação para resultados’. Conseqüentemente, a produção de programas próprios e a audência tiveram queda de cerca de 40% de 1995 a 2003.
Supercustos
Do estudo da Booz Allen, o caso de suposto superfaturamento que mais chama a atenção é o do seriado de ficção juvenil ‘Galera’.
Segundo a consultoria, uma hora do programa custa R$ 248 mil. A Booz Allen usa como comparativos ‘benchmarks’, termo do economês que designa o referencial de custos de determinado produto na concorrência. O ‘benchmark’ de ‘Galera’, de acordo com a Booz Allen, é de R$ 7.600. Ou seja, o seriado custaria 3.164% a mais do que o padrão.
De fato, R$ 248 mil por uma hora de um programa como o ‘Galera’ é caro para os padrões brasileiros. Está acima, por exemplo, do patamar de custos da Globo. Em 2002, uma hora de teledramaturgia na emissora custava R$ 161 mil. Assim, ‘Galera’ seria em tese 54% mais caro do que ‘Malhação’, por exemplo.
No máximo, o programa da Cultura saiu três vezes mais caro do que o mínimo que se pode praticar nas redes mais populares, que não têm o mesmo compromisso com a qualidade que uma TV pública. O apresentador Netinho de Paula, por exemplo, negocia um seriado juvenil com a Rede TV! por R$ 120 mil o episódio.
Outro caso de ‘superfaturamento’ mostrado pela Booz Allen é o de ‘debate em estúdio’ (o documento não especifica o nome do programa). Uma hora desse tipo de programa na Cultura sai por R$ 25,4 mil, contra R$ 4.800 na concorrência. O problema, segundo a TV Cultura, é que esse valor de R$ 4.800/hora é irreal.
O relatório da Booz Allen traz contradições. Provavelmente por erro de digitação, dá preços diferentes a programas do mesmo gênero. É o caso dos documentários, que ‘saem’ por R$ 76 mil ou R$ 7.600 na concorrência.
Contestação
Jorge da Cunha Lima, presidente executivo da Fundação Padre Anchieta desde 1995, com o terceiro mandato vencendo neste sábado, contesta os argumentos e os dados apresentados por Julieda Pereira Paes.
Diz que a conclusão de que os programas da Cultura custam na média 113% a mais do que na concorrência ‘não tem o menor fundamento’. ‘Poderiam pôr no relatório 113%, como 200% ou 300%’, ironiza.
Segundo Lima, a Booz Allen não lhe apresentou as fontes dos ‘benchmarks’, em quais emissoras os programas têm os custos apresentados. ‘Acho que eles [da Booz Allen] foram conversar com gente da TV paga’, diz, se referindo ao baixo padrão de custos dos programas usados como comparativos aos da Cultura.
Procurada pela Folha, a Booz Allen não quis se pronunciar sobre o relatório feito à Cultura, dizendo se tratar de um documento confidencial.
O dossiê de Julieda Pereira Paes traz ainda informações que questionam a transparência da contabilidade da fundação.
‘Pautando-se pela máxima transparência nos registros contábeis, foi feito [na gestão dela] um ajuste de R$ 51 milhões no exercício de 2003, explicitando-se passivos até então ignorados. Essa medida levou a um prejuízo de R$ 50 milhões no exercício.’
Em outras palavras, ocorreu o seguinte: no balanço de 2003, foram lançadas provisões de despesas futuras, como o pagamento de sentenças trabalhistas (R$ 28 milhões). Até então, essas estimativas não eram contabilizadas, mas apenas citadas em notas técnicas nos balanços.’
***
‘‘Não somos somente números’, diz presidente da Padre Anchieta’, copyright Folha de S. Paulo, 9/06/04
‘O presidente executivo da Fundação Padre Anchieta, Jorge da Cunha Lima, diz que sugestões da Booz Allen poderão ser eventualmente acatadas.
‘Tenho que respeitar o trabalho. Vou analisar isso tudo, dentro do planejamento estratégico traçado pelo conselho curador, mas não como uma coisa vinda de inspiração divina’, afirma.
O estudo da Booz Allen propõe uma reorganização e cortes de pessoal e de custos que reduziriam os gastos com jornalismo e programação, respectivamente, em 48% e 32%, resultando em economia de R$ 26 milhões.
Lima, no entanto, afirma que já foram efetuados cortes de gastos e demissões no ano passado. ‘Já foi feita uma grande economia.’
O presidente reclama do caráter ‘financista’ do dossiê de Julieda Pereira Paes. ‘Não somos somente números a serem produzidos e analisados. Temos conteúdo, e em nenhum momento esse fato é analisado no relatório.’
Lima contesta o pequeno peso dado à defasagem tecnológica da Cultura. ‘A questão da despesa passa pela tecnologia. A gente trabalha com mais pessoal por causa da tecnologia ruim’, diz.
Segundo ele, a Cultura precisa investir R$ 75 milhões em digitalização e em transmissores.
Sobre os gastos com ‘Galera’ superiores aos da concorrência, Lima afirma que isso ocorreu devido a experimentações. ‘Foi a primeira experiência de pura dramaturgia, de linguagem.’
Já o ‘prejuízo’ de R$ 50 milhões em 2003, diz, é meramente contábil. ‘Ninguém descobriu dívida nenhuma. Todas as provisões estavam em notas nos balanços.’’
Eduardo Nunomura e Jotabê Medeiros
‘MP deve vetar novo salário na TV Cultura’, copyright O Estado de S. Paulo, 13/06/04
‘A Curadoria das Fundações do Ministério Público deve analisar amanhã mudança no estatuto da TV Cultura que criou um cargo remunerado para Jorge da Cunha Lima na presidência do Conselho da Fundação Padre Anchieta. O promotor Paulo José de Palma já tinha decidido sobre o caso na quarta-feira à tarde, mas uma nova petição de conselheiros da fundação o fez postergar a decisão.
Segundo o Estado apurou, o MP deve indeferir o pedido de modificação no estatuto – a mudança foi feita para acomodar na nova gestão o atual presidente, Cunha Lima, e o seu sucessor, Marcos Mendonça, em um processo eleitoral que foi considerado uma ‘costura política’ por Palma. O promotor deve ainda recomendar uma apuração rigorosa na emissora, em face das denúncias de superfaturamento na produção de programas e de rombo orçamentário da Cultura.
No entanto, o MP garantiu que não estão ameaçadas as posses de Cunha Lima e Marcos Mendonça amanhã, porque as suas eleições transcorreram legalmente.
Cunha Lima deixa a direção da TV Cultura depois de nove anos. Sem preparar um discurso para a posse na reunião do conselho, às 9h30, e na sessão solene, na Sala São Paulo, às 20h30, ele passou o feriado com uma tarefa ingrata: reforçar o convite para que ninguém falte às cerimônias. Muitos ligaram para perguntar se ele ia mesmo assumir o novo cargo.
Descansando na sua fazenda em Taquaral, no interior paulista, Cunha Lima mostrou-se indignado com notícias publicadas nos últimos dias, mas disse estar confiante numa decisão favorável a ele. ‘O promotor já disse que a posse é regular e legítima e está estudando a questão do salário porque vai analisar como é essa nova função.’
Ele enumerou algumas de suas novas atribuições, como a representação da fundação nos planos nacional e internacional, o seu planejamento estratégico, a análise de convênios e o encaminhamento das propostas das comissões internas da emissora. ‘Não sou palhaço de querer trabalho remunerado sem trabalhar.’ Antes, os presidentes do conselho curador da Fundação Padre Anchieta não recebiam salários.
‘Cretinice’ – Cunha Lima desqualifica os estudos da consultoria Booz Allen Hamilton, que traça um panorama de ineficiência na produção de programas, orçamentos maquiados e baixa audiência da TV Cultura.
‘É difícil imaginar que esses relatórios sejam de boa-fé, tais as incoerências de seu conteúdo’, disse. Segundo ele, foram feitas avaliações inadequadas, como o fato de programas de jornalismo terem sido rotulados como reprises, produções da Cultura comparadas com outras de TVs a cabo e a sugestão de demissões apenas de funcionários operacionais. ‘Isso é de uma cretinice sem tamanho.’
Para o futuro presidente do conselho curador, o estudo da Booz Allen e sua divulgação provocam a desestabilização da fundação e permitem uma avaliação negativa, e injusta, de seu trabalho à frente da emissora.’
Laura Mattos
‘Promotor deve barrar salário novo da Cultura’, copyright Folha de S. Paulo, 11/06/04
‘A Promotoria de Justiça de Fundações deverá se opor à mudança de estatuto da TV Cultura, que prevê pagamento de salário ao presidente do conselho da Fundação Padre Anchieta (FPA, administradora da emissora).
O cargo deverá ser ocupado, a partir de segunda, por Jorge da Cunha Lima, atual presidente da FPA. A remuneração, aprovada pelo conselho, foi conseqüência de acordo entre ele e Marcos Mendonça. Cunha Lima desistiu da reeleição, e Mendonça, ex-secretário da Cultura de SP, foi candidato único ao comando da FPA.
A mudança de estatuto deve, por lei, ser submetida à promotoria. A decisão está nas mãos do promotor Paulo José de Palma e deverá ser divulgada na próxima segunda. Segundo a Folha apurou, a tendência da promotoria é se opor à mudança. A fundação teria de recorrer à Justiça. Cunha Lima disse que não poderia comentar por não ter conhecimento da decisão.’