Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Em defesa da ciência

‘Alô, Lúcio Flávio, eu queria marcar uma entrevista com você. Você pode amanhã?’ ‘Amanhã a gente pode estar morto, vamos falar agora mesmo.’ Foi assim, num tom tranqüilo, mas com frases cheias de urgência, que o jornalista de 57 anos Lúcio Flávio de Faria Pinto, natural de Santarém (PA), começou um bate-papo com a UnB Agência. Ele, que já trabalhou por 20 anos no jornal O Estado de S.Paulo, completou em setembro duas décadas à frente do Jornal Pessoal, periódico quinzenal com tiragem de dois mil exemplares e sem anúncios publicitários.

Lúcio Flávio, como é conhecido, não se adapta mais aos grandes jornais, pois acredita que neles os interesses comerciais prevalecem. Por conta de sua busca pela ‘história verdadeira’, criou inimigos e já foi ameaçado de morte, o que ele considera um acidente de trabalho. Responde a 15 processos por calúnia, injúria e difamação de autoria de poderosos do Brasil, especialmente os Maiorana, donos das Organizações Rômulo Maiorana, que publicam o jornal O Liberal, no Pará, e mantêm a Rádio Liberal, a TV Liberal e outros veículos.

Mesmo assim, leva uma vida calma. Para se proteger, apenas evita as saídas à noite, não freqüenta bailes e gasta pouco – até porque a renda de trabalhos free lance e palestras também é reduzida. Diz que prefere ficar em casa se informando e lendo o que gosta. Há 41 anos, estuda a Amazônia e viu boa parte das transformações do bioma. Diz que, para a preservação, há apenas uma saída: investimento em ciência e tecnologia (C&T). E também defende que os cientistas e pesquisadores devem ir a campo. ‘Vejo especialistas em Amazônia que não conhecem a Amazônia’, provoca.

Além de objeto de estudo, a região da floresta é seu material de trabalho desde os anos no Estadão (1971 a 1989) e também a causa inicial de seus problemas com a Justiça. Afinal, o incômodo causado a alguns grupos surgiu da tentativa de uma cobertura ‘menos exótica e mais honesta’ da Amazônia. Lúcio Flávio diz ter sempre se pautado por um dos princípios essenciais do jornalismo – a checagem dos fatos – e por escrever histórias que apresentem o lado de quem mora na área, abordando também toda a complexidade econômica. As questões da mata com algumas pitadas de imprensa são o mote da entrevista que pode ser conferida a seguir.

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Você considera falha a atuação do Ibama na Amazônia? O que pode ser feito para que a fiscalização seja exercida de maneira a preservar o meio ambiente?

Lúcio Flávio Pinto – Considero. Com a estrutura que o Ibama tem, é impossível. O pessoal é insuficiente e a qualidade deficiente. O órgão sofre os mesmos vícios do passado, pois nada mais é do que uma metamorfose do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF, autarquia federal extinta em 1989). Deveria ter surgido um órgão totalmente novo. Mas, antes de qualquer coisa, é preciso pagar bem o fiscal, pois o salário baixo é uma indução à corrupção. Depois, é preciso qualificar e requalificar. É preciso tirar esse fiscal do meio do campo, reciclá-lo e depois mandá-lo para outro lugar para que ele tenha condições de resistir ao suborno.

Na Amazônia, já existem quatro hidrelétricas e o Ibama recentemente aprovou a construção de mais duas. O impacto é grande na economia, na população e no meio ambiente. Quem sai mais prejudicado?

L.F.P. – Em primeiro lugar, o meio ambiente. Numa região com rios de baixa declividade, é um contra-senso construir uma hidrelétrica de alta queda. Por exemplo, Balbina (Usina no Rio Uatumã, AM) é 32 vezes menor em potência que Tucuruí, no Pará (construída a partir de 1976). Balbina fica numa área de 2.430 km2 (construída a partir de 1985), enquanto Tucuruí fica numa área de 3.070 km2. Para construir uma hidrelétrica, perdem-se florestas, inutilizam-se terras e gera-se metano, pois a massa vegetal submersa apodrece. Esse processo tem 23 anos e contribui para o efeito estufa. Nunca se tentou transformar esse gás em energia, o que evitaria o efeito estufa e significaria economia. A Amazônia não deveria usar o movimento horizontal da água. Em Girau e Santo Antônio (usinas hidrelétricas no Rio Madeira cujas licenças para construção foram aprovadas pelo Ibama em 9 de julho), há aspectos positivos. São hidrelétricas de baixa queda. Mas pode ser que isso tenha efeito colateral. Os técnicos não estão discutindo isso.

O Pará é tido como o estado onde há mais trabalho escravo no país. Os coronéis donos de fazenda são poderosos. Você acredita que é possível mudar essa realidade?

L.F.P. – Hoje essa realidade é cada vez menor nas fazendas e maior entre os produtores de carvão. Sempre houve trabalho escravo na Amazônia. Em 1973, quando o presidente Médici visitou o Jari, houve um protesto muito grande contra o trabalho escravo. Foi criado então o Grupo Tarefa da Amazônia. É uma tradição na Amazônia –quanto mais trabalhava, mais o seringueiro se escravizava porque o que ele comprava era mais caro do que o que vendia. O problema são as siderúrgicas, que significam um avanço e um retrocesso. Nosso minério é o mais rico do mundo porque a gusa produz uma hematita com grau que aumenta de 65% para 90% de pureza nos altos fornos, quando produzida a partir do carvão vegetal. Poderíamos usar gás, talvez até carvão mineral, até amadurecerem reflorestamentos sérios. É claro que a qualidade é inferior, mas o método não desmata a floresta, pelo menos. Hoje, a produção de carvão é a maior causa do desmatamento.

Que medidas você considera mais urgentes para a conservação da Amazônia? E os fatores que atravancam esse caminho, quais são?

L.F.P. – Só tenho esperança de mudar de um jeito. O principal parceiro deve ser o cientista. A Amazônia recebe 1% do total do orçamento de Ciência e Tecnologia. O Brasil é o que tem o menor orçamento em C&T de todos os países do chamado Bric (Brasil, Rússia, Índia e China). Se os estrangeiros retirassem os 70% que investem, as pesquisas parariam. Com um orçamento desses, é impossível fazer qualquer coisa séria. A Amazônia tinha de ser a Antártida do Brasil. Tudo deveria estar subordinado à ciência. Não a ciência de laboratório, mas a ciência no meio ambiente. Tudo que se implementou até agora deu errado na Amazônia. O principal resultado é o desmatamento. É paradoxal, pois a floresta é o principal recurso natural. É uma esquizofrenia do conhecimento.

O que é necessário para acabar com o desmatamento ilegal? Faltam leis?

L.F.P. – Não. As leis são até boas, mas ou não são cumpridas ou são inócuas. Por exemplo, a Lei de Proteção à Castanheira, de 1965, que diz que não se pode derrubar as árvores de castanha, não funciona, pois essa planta só se mantém em pé se houver outras ao redor. Uma das sugestões que dou é o zoneamento ecológico-econômico, que seria feito com o cientista, para acabar com o ditado de que ‘quem sabe faz e quem não sabe ensina’. Você traz o melhor engenheiro agrônomo do mundo, forma os campi, cria estrutura para graduação, pós-graduação, paga uma bolsa para esse profissional/pesquisador plantar. Ele fica dois anos, cinco anos, ganha dinheiro, recebe o título de doutor e se torna proprietário do lote. No terreno, pode fazer manejo florestal, pesquisas biológicas e estudar princípios ativos.

O Pará é o segundo estado em território, nono em população, décimo sexto em Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e décimo nono em Índice de Desenvolvimento Juvenil (IDJ) do Brasil. Ao mesmo tempo, o Norte do país se queixa da falta de doutores e pesquisadores para os avanços da região. Falta mesmo vontade política para desenvolver essa região? O que precisa ser feito?

L.F.P. – Falta vontade, falta competência. Vejo especialistas em Amazônia que não conhecem a Amazônia. A Amazônia tem uma especificidade própria, tem uma complexidade econômica e social. Temos a maior mina de bauxita do mundo. Temos a quarta maior hidrelétrica do mundo (Tucuruí), temos a maior fábrica de caulim do mundo (substância utilizada em várias indústrias, como a de papel e a de plásticos) e somos o maior fabricante mundial de alumina. É preciso entender esses processos e se antecipar a eles. Hoje, a Amazônia produz uma grande quantidade de energia e produtos com baixo valor agregado. Produzimos energia bruta, mas não produzimos aço. O ônus ambiental e social fica na Amazônia e os benefícios vão embora. Mas não dá para fechar as portas da Amazônia.

A Amazônia precisa da ajuda de outros países para ser preservada? Você diz que dois terços das pesquisas na Amazônia são financiadas por outros países…

L.F.P. – Isso é bom e é ruim. Se os outros países não dessem nada, tudo estaria parado. É ruim porque não temos condições de assumir todas as pesquisas. São Paulo, por exemplo, tem 32% do PIB e 39% do PIB científico. A Amazônia tem menos de 1% do PIB científico. A Amazônia precisa ser uma prioridade real e não retórica, só para inglês ver.

Deixando de lado seu assunto preferido, a Amazônia, para falar de jornalismo, em várias entrevistas você comentou que publica o que a grande imprensa não quer publicar. Por que isso acontece?

L.F.P. – Determinadas coisas, sei que só o Jornal Pessoal vai dar, o que é uma pena. Os grandes jornais podiam fazer mais do que fazem. São vários os motivos para tanto: a) eles não têm a informação, b) eles têm, mas preferem não publicar por questão ideológica ou comercial. Veja o que aconteceu com a privatização: a imprensa apoiou e quem dissesse o contrário estava marginalizado. Eu publico uma visão que se contrapõe à visão da Amazônia marcada pelo exotismo. São matérias que falam da complexidade econômica. Eles não querem ver essa complexidade. Eles não querem um ponto de vista da região. É de fora pra dentro. Além disso, aqui no Pará, só há dois grupos. Se você dá o dinheiro é o mocinho; se não dá é o bandido. Mas o Jornal Pessoal é uma anomalia, não vai crescer, não vai crescer porque não quer. Não aceita publicidade para poder crescer. Trata-se de um compromisso de publicar uma história e deixá-la disponível para outros que se interessem.

Você acredita que ainda existam repórteres que fazem jornalismo investigativo hoje em dia ou é o último dos moicanos?

L.F.P. – Tem muita gente que faz. Não aceito jornalismo com adjetivo. Jornalismo é jornalismo. Você não é obrigado a engolir sapo por lebre. O jornalista tem que checar. Há distorções no mercado hoje, como a indústria do dossiê. Mas o dossiê tem que ser checado. A internet é fonte, mas é uma pena quando o jornalista não olha nos olhos do entrevistado. O jornalista tem que começar no jornalismo policial, é lá que vai testar seus instintos. O único capital que o ‘foca’ (termo para jornalistas novatos) tem é o trabalho, mas o foca que não aceita ser explorado não vai ser bom. Ele não vai receber hora extra, vai trabalhar 14 horas por dia, mas tem que estar presente no olho do furacão. Já passei mais tempo escrevendo uma matéria, mas o editor me segurava porque sabia que valia a pena.

Você já recebeu diversas ameaças de morte, algumas são brincadeiras, outras não. Uma vez foi espancado no local onde funcionava a residência oficial do governador, em Belém. Como é viver sob constante ameaça de morte? Você leva uma vida normal?

L.F.P. – Eu não tenho pretensão de ser um herói. Estou fazendo um jornal e ponto. Não tenho que coletar informações secundárias, boatos, perfumaria. Tenho que checar. Não espero reconhecimento algum. Considero isso (as ameaças) um acidente de trabalho. Não sou excepcional, sou mero profissional. Quando recebo uma ameaça, procuro saber de onde vem e vou atrás, como um jornalista. Às vezes sou intimidado, às vezes é brincadeira, mas procuro saber o que é fato e o que é fantasia. Hoje, evito atividades sociais, não por temer que vão me matar, mas porque não tenho tempo. Prefiro usar meu tempo para me informar, para ler.

Você acusa Ronaldo Maiorana (um dos donos das organizações Maiorana, que compreendem o jornal O Liberal, a Rádio Liberal e a TV Liberal) de o espancar em 2005 depois que a matéria intitulada ‘O rei da quitanda’ foi publicada no Jornal Pessoal. No texto, você denuncia Romulo Maiorana Jr. por vender espaço editorial em O Liberal como se fosse banana. Em 1985, em um telefonema anônimo para a redação do jornal O Liberal, uma pessoa dizia que a manchete do jornal do dia seguinte seria a sua morte. Mais tarde, você descobriu que a ameaça vinha do deputado Jader Barbalho (PMDB-PA). Você os considera seus inimigos?

L.F.P. – Eu não os considero meus inimigos. Eles é que me consideram seu inimigo. Não me preocupo com eles. Eles não têm importância alguma na minha vida. Se me encontrar com eles, vou tratá-los normalmente, embora a recíproca não seja verdadeira. Eu sou um auditor do povo. Atualmente respondo a 15 processos. De 1992 pra cá, foram 32 processos e, no mês passado, ganhei cinco contra os Maiorana, com base na Lei de Imprensa. Outros 17 processos já terminaram – quatro eu perdi e a grande maioria prescreveu.

E você também processou alguém? O que acha da liberdade de expressão?

L.F.P. – Nunca processei ninguém. A única vez que fiz isso foi para exercer o direito de resposta no jornal O Liberal. De 1966 a 1985, fui processado por um crime contra a segurança nacional, apenas uma vez, e fui absolvido. Em pleno AI-5, foi possível fazer jornalismo. Mas agora, na democracia, estou com 15 processos nas costas. Algo está errado. A pessoa diz que está sendo caluniada e difamada e não exerce o direito de resposta. Eles sabem que só escrevo sobre o que posso provar. Nunca fui desmentido sobre qualquer fato essencial. Isso eles não podem dizer.

Como surgiu a vontade de editar e fazer um jornal próprio?

L.F.P. – Começou em 1987. Eu ainda trabalhava no Estadão (saiu dois anos depois), mas já estava insatisfeito com o projeto. Tive várias brigas com o então diretor de redação (Miguel Jorge). Uma vez ele me mandou um telefax em que dizia: ‘Demita-se!’ e eu mandei de volta: ‘Demita-me, se for capaz’. Eu era amigo do dono do jornal, o Júlio Mesquita Neto, mas não amigo de sair, beber. Havia muito respeito entre a gente. Ele dizia que eu ia ficar no Estadão até morrer, mas eu não acreditava mais. Eu quero escrever a verdade.

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Editora de Pauta da Assessoria de Comunicação Social de Brasília (UnB)