Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Emir Sader

‘A diversidade cultural – como um direito fundamental da humanidade – se choca frontalmente com as políticas liberais predominantes no mundo atualmente – em particular no chamado ‘livre comércio’ – que promove, em uma de suas tantas conseqüências negativas, a homogeneização cultural – fenômeno hegemônico no mundo atual.

A iniciativa da Unesco de elaborar uma convenção internacional de caráter normativo e vinculante – Convenção sobre a Proteção da Diversidade dos Conteúdos Culturais e as Expressões Artísticas -, que brinde respostas às ameaças concretas à diversidade cultural em tempos de globalização liberal, defendendo o direito das nações e dos povos de proteger e estimular sua criação cultural, é objeto das grandes discussões entre diversidades versus achatamento cultural. A convenção foi concebida como um instrumento jurídico permanente, para dar apoio legal às medidas e às políticas soberanas que adotem os Estados nacionais nessa questão. Ela pretende propiciar um maior equilíbrio nos intercâmbios culturais de distintos países do mundo e brindaria legitimidade às propostas para modificar os acordos comerciais nessa direção. Estabeleceria normas que os Estados signatários se comprometam a respeitar, no sentido de dar garantias para a diversidade de expressões culturais em cada país, em um marco de liberdade de expressão.

As negociações para o estabelecimento dessa convenção encontram dificuldades em vários aspectos, a começar pelo estatuto legal da convenção, ainda mais quando os EUA retornaram à Unesco e são o principal interessado na liberalização dos bens culturais como se fossem assimiláveis a outros bens comerciais. A expectativa é que as discussões possam estar concluídas no momento da 33ª sessão da Conferência Geral da Unesco, em outubro de 2005, antes da conclusão da Ronda Doha da OMC.

O primeiro esboço da Convenção se inspira na Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, aprovada pelos governos membros da Unesco em novembro de 2001, que reafirma a convicção de que o diálogo intercultural é a melhor garantia da paz, rejeitando as teses do choque de civilizações. Ambos documentos reconhecem que a diversidade cultural é um patrimônio comum da humanidade, tão necessária para o gênero humano quanto a biodiversidade para os seres vivos.

A proposta de texto para a convenção destaca o caráter cultural e econômico dos bens e serviços culturais, que não devem ser considerados como mercadorias ou bens de consumo como os demais, porque ‘são portadores de identidades, de valores e de significados’. Os Estados signatários da convenção ‘afirmam seu direito soberano a adotar medidas para proteger a diversidade das expressões culturais em seus respectivos territórios e reconhecem sua obrigação de protegê-la e promovê-la tanto em seus territórios como no plano mundial’. Estabelece também que os Estados podem ‘adotar medidas, em especial regulamentares e financeiras, para proteger a diversidade em seus respectivos territórios, especialmente quando estes se acham em perigo ou em situação de vulnerabilidade’.

As pressões, especialmente dos EUA, são para manter a convenção como uma mera declaração de intenções, sem poder de lei. Lembremo-nos que a única organização multilateral que tem poder de lei é a OMC, que pode punir países por suposta violação da ‘livre competição’, enquanto denúncias de trabalho escravo e de exploração de crianças feitas pela Unicef e pela OIT ficam no papel. A isso os EUA querem reduzir a convenção da Unesco. Países como a França, o Canadá, o México, a África do Sul, o Brasil se situam na linha de frente pela diversidade cultural, enquanto os EUA reafirmam, pela boca dos representantes do governo Bush, a cantilena conhecida por nós aqui de que decisões desse tipo serviriam para ‘controlar a informação e a livre criação artística’. Quando o que desejam são mercados livres para seguir avassalando a capacidade criativa dos outros com suas poderosas máquinas comerciais.

Os problemas para implementar uma convenção desse tipo se colocam principalmente no plano dos subsídios, das cotas e do controle dos investimentos. Países que abriram seu setor audiovisual no marco dos acordos da OMC podem ter de oferecer subsídios a empresas nacionais e estrangeiras situadas no seu território. Países que aplicam cotas para limitar a porcentagem de programação estrangeira no setor audiovisual, especialmente na televisão, vêm sofrendo pressões dos EUA para que elas sejam eliminadas. Sobre o controle de investimentos – recordando que os próprios EUA têm reservas protecionistas que limitam o acesso de investidores estrangeiros a seus mercados de rádio e de televisão e autorizam a outorga exclusiva de subsídios de produção artística a empresas nacionais -, vários países renunciaram a esse direito. Os EUA se mostram menos rígidos nas medidas que se referem aos formatos tradicionais do audiovisual, que tenderão a desaparecer com as transformações tecnológicas, para concentrar-se no tema eletrônico, com o propósito central de assegurar as redes digitais, para que permaneçam fora dos protecionismos culturais. Buscam eliminar a distinção entre bens e serviços digitais, ao utilizar o termo ‘produtos digitais’, o que equivaleria a abrir o mercado de bens. Interessam-se na liberdade de comércio, que os favorece e estandardiza o mundo cultural, em detrimento da diversidade cultural e da liberdade das idéias.’



HISTÓRIAS DE JORNALISTAS
Luís Nassif

‘Filosofias de botequim’, copyright Folha de S. Paulo, 31/10/2004

‘Havia um velho freqüentador do bar do Alemão, ali no viaduto Antarctica, que foi fazer análise. Uma noite, em que o choro corria solto, chegou à roda e fez uma imersão de autoconhecimento. ‘Quem sou eu’, ‘o que faço da vida’, ‘o que pretendo de mim próprio’ e aqueles papos maneiros dos psicologizados ébrios. Foi tocado a vassourada do bar.

Pois não é que, em plena sexta-feira, mergulhei nessa crise de identidade? Sou jornalista econômico relativamente conhecido? Sou. Nos anos 80, era conhecido por ser especialista em matemática financeira? Era. Freqüentei o bar do Alemão? Era freqüentador assíduo, tocando bandolim quase toda noite na mesa 8. Lancei livro recentemente? Lancei. Voltei a freqüentar o bar do Alemão? Voltei.

Depois de fazer esse ‘check-list’ completo, liguei de volta para minha filha Luizinha e recitei a frase temida: ‘A pessoa difamada sou eu, mesmo’.

Pouco antes ela tinha telefonado soltando fogo pelas ventas, porque o ‘Guia’, do ‘Estado de S.Paulo’, saíra com uma reportagem sobre o Alemão com o sugestivo título: ‘Matemática financeira na hora da conta’. Nela, falava-se de seis amigos que freqüentavam toda quinta-feira o bar do Alemão. Na hora de dividir a conta, um deles, jornalista econômico ‘de renome’, ‘especialista em matemática financeira’ etc., sacava a calculadora e dizia o quanto cada membro do grupo deveria pagar. Um dia, um dos amigos levou uma calculadora e, depois de o jornalista ter feito o cálculo, refez a conta e constatou que o malandro dividia a conta por cinco e deixava de pagar a sua parte. Nos últimos meses, o jornalista econômico retornou ao bar, depois de lançar um livro.

Admito que, em algumas noitadas do Alemão, bebi um pouco além da conta, e pode ter ocorrido algum episódio que o álcool varreu da minha memória. Mas uma cena continuada como aquela, positivamente, não constava no HD da minha memória.

Toca ligar para o Sandro Vaia, diretor de Redação do ‘Estado de S.Paulo’ e testemunha ocular daqueles tempos, ele, o Elói Gertel, o Klebinho, todo o povo do ‘Jornal da Tarde’ da época. O Sandro leu, levou um susto, ficou indignado e disse que iria tomar providências. Na outra linha do celular, Mariana, outra filha, querendo chupar com canudinho o sangue do redator difamador. Tenho cada filha braba!

Ligo para as meninas pedindo para baixar as armas, que a honra do seu pai seria reparada. Aí o Sandro me liga, todo aliviado, acalmando. ‘Pode ficar tranqüilo, que o jornalista não é você. É fulano de tal.’

Senti-me o próprio Henry Ford naquele filme ‘O Homem Errado’, de Alfred Hitchcock. ‘Mas, Sandro, nunca vi fulano no bar, ele não conhece matemática financeira, não lançou livro recentemente, e jornalista econômico conhecido como freqüentador do bar do Alemão sou eu.’ E Sandro, com sua pachorra velha de guerra: ‘Pode ficar sossegado, é fulano, mesmo’. ‘Mas, Sandro, nem aquela reparaçãozinha que você me prometeu?’. E ele: ‘Como reparar, se o jornalista econômico não é você?’. Pensei, pensei e admiti: ele está certo. A reportagem dizia que tinha orelha de gato, rabo de gato, olho de gato, miava. Mas não era o gato, era o galo do vizinho.

Até me lembrei de um terceiro jornalista econômico, que ia ao Alemão quando saíamos do fechamento de ‘Veja’. Ele tomava uísque, a gente tomava chope. Ele ganhava mais, a gente ganhava menos. Um pouco antes de pedir a conta, abria-se uma discussão sobre um tema qualquer -tipo quem foi maior, Vinicius ou Drummond. Ele, que era calmo, de repente se exaltava e saía indignado do bar. Sem pagar a conta. Quando descobrimos a jogada, ficamos todos de tocaia. No grande final da indignação, ele se levantou e o bar inteiro gritou em coro: ‘Paga a conta antes, fulano de tal’. Foi legal, e terminou em boas risadas.

Mas fiquei com crise de identidade. Seria eu, eu? Seria eu, fulano? Seria eu o Sandro Vaia? Quem serei eu? Se eu for o fulano, terei a reparação? Mas quem precisa da reparação, fulano ou eu?

Está cada vez mais complicado ser freqüentador de boteco neste país.’




COLUNISTAS EM FOCO
Tutty Vasquez


"Mártires da falta de assunto", copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 30/10/2004


"O IBGE ainda não nos contabiliza, acho eu, mas calculo que somos uns 5 mil em todo Brasil. Mais que dobramos de tamanho nas últimas duas décadas, apesar da evidente redução nas reservas da matéria-prima que movimenta nossa atividade. O fenômeno da multiplicação dos colunistas – ô, raça! – é, como se sabe, proporcional à crescente falta de assunto que atormenta o país. Se é duro para quem lê, imagina para quem escreve! A situação ameaça fugir de controle agora que os colunistas estão uns roubando idéias dos outros sem qualquer constrangimento, na caradura mesmo.


Tem gente que acha o Luis Fernando Verissimo tímido. Tímido é o escambau! Ele quase não fala com medo de que o Carlos Heitor Cony escreva o que ele diz. O Zuenir Ventura é outro que você não pode levantar um assunto perto dele, que ele rouba descaradamente sua idéia. De vez em quando te chama para a piscina da casa dele, você vai todo prosa, enche a cara de cerveja e, dois dias depois, reconhece uma a uma as bobagens inspiradíssimas que disse numa crônica do mestre, que não te dá crédito, nem te cita. A Mary, que evidentemente está por trás de tudo isso, batizou a operação de ‘Boa noite, Colunista’.


O Zuenir é só um exemplo que a gente pode abrir porque ele age com uma elegância de tirar o chapéu. Se fosse para entregar, contaria o caso de um renomado colunista que conseguiu acesso ao arquivo onde um famoso colega armazena suas idéias. A vítima nem desconfia, pensa que o outro escreve o que ele pensa por mera afinidade intelectual da dupla.


Por essas e por outras, estamos virando um bando de jornalistas ensimesmados, trancados em nossos pensamentos, paranóicos com a possibilidade de subtraírem nosso maior patrimônio. Idéias não estão à venda na esquina, nem se encontram nos cofres dos ricos. O felizardo quem tem uma de vez em quando deve mantê-la guardada a sete chaves até o dia do fechamento de sua coluna. O Joaquim Ferreira dos Santos, por exemplo, só conversa com amigos na segunda-feira depois de se certificar de que ‘O Globo’ publicou sua crônica. Dia desses, liguei para ele na sexta-feira e tomei um passa-fora: ‘Por que você está me ligando no dia do seu fechamento?’ Só queria saber dele. ‘Não vem com esse papo mole pra cima de mim, não!’ E bateu o telefone na minha cara.


Não é de hoje que o Joaquim é um cara meio esquisitão, mas, no caso, tem lá suas razões para sê-lo. Já viu idéias suas publicadas na coluna do Artur Xexéo, do Arnaldo Jabor e do Diogo Mainardi, com quem conversou uma única vez na vida. Não à toa, de uns tempos para cá, ele fala cada vez mais baixinho para que ninguém o escute. Parece coisa de maluco, mas nem as filhas entendem o que ele diz em casa. A namorada o deixou!


Vocês devem estar questionando, se o Joaquim não fala com ninguém, onde diabos ele arruma idéias para seus textos. Eu vos respondo que o cara arruma assunto para escrever andando de táxi. Pega um atrás do outro até encontrar um desses motoristas que falam pelos cotovelos absurdos que, bem ordenados, dão caldo.


A situação é dramática! Os leitores talvez não percebam, mas quase ninguém hoje em dia entre os colunistas é autor de seu próprio texto. Eu mesmo não sei exatamente dizer se este aqui é meu ou do Joaquim. Ou será que o Marcos Sá Corrêa tem alguma coisa a ver com isso? É a cara dele, né não?"