Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Emir Sader

‘‘Lei do audiovisual’ argentina garante espaço para a produção cinematográfica nacional através de mecanismos de regulamentação das salas de exibição. Segundo as novas normas, os exibidores são obrigados não apenas a estrear filmes nacionais, mas também a mantê-los em cartaz.

O cinema argentino vai bem, não apenas na qualidade dos seus filmes e nos sucessos que obtêm nas bilheterias, mas na regulação da exibição de filmes – decisão que, aliás, tem também muito a ver com aquele sucesso. Em abril deste ano, foi assinada pelo Instituto Nacional de Cinema e Artes Audiovisuais (INCAA) resolução que regulamenta a cota de exibição para defender o cinema nacional diante dos avanços considerados indiscriminados do cinema de Hollywood, que ameaçava, segundo a resolução, extinguir a exibição de cinema argentino.

A resolução foi apoiada pelo consenso dos produtores, atores e diretores, embora sob protesto dos exibidores. A medida contém dois tipos de ações regulatórias. Por um lado, os cinemas deverão garantir pelo menos um filme argentino por sala de estréia em cada trimestre. O que significa que, se um multicine, por exemplo, têm 12 salas, terá que estrear 12 filmes argentinos a cada três meses. A cota de tela será por sala e não por complexo ou multicine. Assim, as mil salas que possui a Argentina – das quais 35% pertence a multicines, representando 70% do faturamento – garantem uma média de 6 salas para cada filme estreado por ano, considerando uma média de 50 estréias anuais. No caso de não haver cópias suficientes de filmes argentinos, serão excetuadas as salas que não cumprirem a cota.

Mas os problemas do cinema argentino – assim como aqui – tendem a aparecer na segunda semana de exibição, quando os exibidores costumam alegar ‘pouco público’. Para evitar manobras por parte dos exibidores, o INCAA estabeleceu uma fórmula para regular os tipos de filmes e salas para garantir a continuidade. Se o filme é estreado em temporada alta – de primeiro de abril a 30 de setembro -, os filmes ‘classe A’ (de mais de 20 cópias para a estréia) devem permanecer em cartaz se chegam a ter uma média de 25% de espectadores em salas de até 250 lugares. Têm que manter 20% de público em salas de 250 a 500 lugares e 10% em salas de mais de 500 lugares.

Se os filmes ‘classe B’- que estréiam com 10 a 20 cópias – mantêm pelo menos 22% de público em salas de até 250 lugares, 18% em salas de entre 250 e 500 lugares e 9% em salas de mais de 500 lugares, não podem ser retirados de cartaz. Os filmes ‘classe C’ (que dispõem na estréia de 10 cópias ou menos) têm que manter 20% de espectadores em salas de até 250 lugares, 16% em salas de 250 a 500 lugares e 8% em salas de mais de 500 espectadores. Na baixa temporada – de primeiro de outubro a 31 de março -, as médias de continuidade passaram a ser ainda mais baixas.

A resolução buscou encontrar uma forma de controle para que os exibidores cumpram a resolução. Isto passou a ser feito a partir de uma gerencia, encarregada de controlar os exibidores juntamente com a colaboração da Federação Argentina de Produtores. Os cinemas passaram a ter que declarar a quantidade de espectadores e de entradas vendidas ao Instituto, da mesma forma que a suas matrizes. Mas o INCAA considera que não há melhor controlo do que aquele que é feito pelo produtor do filme. Se os exibidores não cumprem a resolução, é aplicada multa de 1 a 15 dias sobre a renda bruta de exibição. Se reincidirem, o Instituto poderá fechar os cinemas por um período de 30 a 60 dias.

Emir Sader, professor da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), é coordenador do Laboratório de Políticas Públicas da Uerj e autor, entre outros, de ‘A vingança da História’.’



PARAGUAI & BRASIL
Folha de S. Paulo

‘Fantasmas do passado’, Editorial, copyright Folha de S. Paulo, 26/12/04

‘Faz todo o sentido a solicitação do governo paraguaio para ter acesso aos documentos secretos do Brasil relativos à Guerra do Paraguai (1864-70), que a administração do presidente Luiz Inácio Lula da Silva cogita de manter sigilosos indefinidamente. Não se pode privar um país de conhecer melhor o seu passado.

Imagine-se qual não seria a justa indignação de autoridades brasileiras caso a mídia norte-americana divulgasse que Washington possui papéis inéditos a respeito das manobras da Casa Branca que levaram o Brasil a entrar na Segunda Guerra Mundial, mas que o presidente George W. Bush pretende mantê-los ocultos para sempre. Transcorrido um certo tempo, até o mais valioso segredo de Estado precisa ser dado a conhecimento do público. Do contrário, autoridades, principalmente as que comandam serviços de inteligência, poderiam ficar com a sensação errônea de que não precisam prestar contas a ninguém.

No caso específico da Guerra do Paraguai, é até difícil conceber o que o governo brasileiro possa temer que venha à luz. Não há acusação pior do que a de genocídio, que não necessita de nenhum documento secreto para ser formulada. Basta olhar para o comportamento das curvas demográficas paraguaias. Antes do conflito, havia no país 525 mil habitantes. Depois da guerra, em 1871, não passavam de 221 mil almas, das quais apenas 28 mil masculinas.

É forçoso reconhecer que soldados brasileiros, argentinos e uruguaios estão envolvidos nessa carnificina. Foram, é claro, ajudados por doenças, fome e pelo próprio ditador paraguaio Solano López, que torturou e matou milhares de paraguaios que lhe fizeram oposição. De todo modo, não é razoável pretender que o Brasil se manteve ao largo dessas mortes. Sua responsabilidade, é claro, precisa ser avaliada historicamente, considerando-se o contexto moral vigente à época e as próprias condições em que se deu o conflito.

O mesmo vale para os rumores de que, no pós-guerra, Brasil e Argentina teriam subornado árbitros de fronteiras que subtraíram território ao Paraguai, entregando-o às potências vencedoras. Especula-se que seria essa apropriação territorial -aliás rotineira em conflitos do passado- o motivo de o Itamaraty vetar a abertura dos arquivos.

Se a idéia que justificaria o sigilo é a preservação das boas relações diplomáticas entre Brasil e Paraguai, é muito provável que a ameaça de jamais abrir os arquivos seja pior do que uma política de transparência. Os paraguaios sabem melhor do que ninguém o que sofreram na guerra. As fronteiras entre os dois países já estão consolidadas. Não é demais lembrar que o conflito se encerrou há mais de 130 anos.

Também não parece haver animosidade pretérita que possa constituir-se como obstáculo aos esforços de integração pelo Mercosul. A União Européia congrega Estados que já travaram as mais sangrentas guerras da história da humanidade, como Inglaterra e França, de um lado, e Alemanha e Itália, do outro. Ao contrário, blocos regionais parecem ser a melhor forma de cicatrizar definitivamente feridas históricas.

Nessa polêmica em torno dos arquivos secretos do Brasil só há uma posição insustentável, que é lamentavelmente a adotada pelo governo: pretender manter o sigilo eterno.’