Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Esther Hamburger

‘A reunião plenária do Conselho de Cinema prevista para depois de amanhã foi desmarcada. Fala-se uma nova data em janeiro, no meio das férias de verão. Por que esse adiamento?

Dificilmente os nove ministros e 18 representantes do setor e da sociedade civil cancelaram a reunião por falta de tempo para coroar um processo de negociação espinhoso, mas aberto à manifestação dos mais diversos segmentos envolvidos. As pressões sobre a criação da Ancinav são imensas.

Basta lembrar que a Ancine era Ancinav até a véspera da promulgação da medida provisória que a instituiu. A pressão das emissoras de TV levou à redução da agência ao âmbito do cinema.

A Agência Nacional do Audiovisual proposta no projeto gestado no Ministério da Cultura mexe com interesses pesados: televisão, telefonia celular, monopólio de direitos autorais etc. Ela confronta as arquipoderosas emissoras de TV, que superaram temporariamente suas diferenças, se aliaram com outros segmentos empresariais, fundaram uma nova entidade, o Fórum do Audiovisual e do Cinema (FAC), que se reúne hoje em São Paulo para defender a ‘liberdade de expressão e a livre iniciativa’ (sic).

Ironicamente cineastas remanescentes do cinema novo legitimam a reunião se prestando a enfeitar um bolo de gosto duvidoso.

É difícil imaginar que quase 20 anos depois da queda do Muro de Berlim, em plena democracia brasileira, um projeto de regulamentação do setor do audiovisual ameace a propriedade privada e a liberdade de expressão.

Afinal, que cláusulas tão bombásticas esse projeto contém? Esperamos que os interesses contrariados expressem suas reivindicações em termos bem concretos.

Ou ficará a sensação desagradável de que corporações falam mais alto que o interesse público justamente em um momento em que a tecnologia digital acena com uma série de possibilidades libertadoras. Esther Hamburger é antropóloga e professora da ECA-USP’



Patrícia Villalba

‘Ancinav, Fla-Flu do cinema’, copyright O Estado de S. Paulo, 18/12/04

‘A classe do audiovisual está rachada. O desejo manifestado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva era o de ter em mãos neste fim de ano um projeto de consenso para a criação a Agência Nacional do Cinema e Audiovisual (Ancinav). Não só não terá o projeto, porque a discussão foi adiada para o ano que vem, como incendiou o meio cinematográfico. Os mais ilustres cineastas e artistas do País estão se armando para um Fla-Flu cultural. Os discursos já estão preparados, para tentar formar opinião invadindo a mídia.

O grupo a favor da criação da agência fala na necessidade pontual de regulamentação do setor do audiovisual. E na democratização dos recursos que são aplicados no fomento de produções cinematográficas, além de maior competitividade do filme nacional no seu próprio mercado. São capitaneados pelo Congresso Brasileiro de Cinema (CBC), com o apoio de 55 entidades. Citamos alguns cineastas: Geraldo Moraes, Toni Venturi, Luis Carlos Lacerda, Nelson Pereira dos Santos, Murilo Salles, Eduardo Escorel, Mário Carneiro, Walter Lima Júnior, Tata Amaral e Carlos Reichembach.

O CBC fez um manifesto pró Ancinav, argumentando, em linhas gerais, que o anteprojeto do Ministério da Cultura deve ‘manter suas características como efetivo instrumento para o desenvolvimento do setor audiovisual com ênfase no apoio à produção independente’. O texto, enviado para o ministro Gilberto Gil, pede ainda que a sociedade ouça o grupo. Obteve 344 assinaturas.

Do lado de lá da trincheira está o chamado PIB do cinema nacional, além da Rede Globo e das maiores distribuidoras de cinema que atuam no País, as chamadas majors. Têm como porta-voz o Fórum do Audiovisual e do Cinema (FAC). Seus nomes: Roberto Farias, Cacá Diegues, Luiz Carlos Barreto e Arnaldo Jabor. Só para citar cineastas.

No início do debate, foram acusados de estarem defendendo o capital e a manutenção do status quo que concentraria muito dinheiro nas mãos de poucos. E na tentativa de encontrar um discurso claro e pungente para defender sua posição, se reuniram há dois dias em São Paulo. Debruçados sobre o anteprojeto do MinC, cravaram os termos cerceamento da liberdade de expressão, censura, ditadura.’

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‘Cada grupo aponta um ‘golpe’’, copyright O Estado de S. Paulo, 18/12/04

‘Uns falam em ‘cama’ para um golpe de Estado. Outros, luta contra um cartel do cinema. Não fosse o fato de todos serem cineastas e artistas, gente que até outro dia era camarada entre si, era de se supor que os dois grupos falam de assuntos totalmente distintos. Mas, não, fala-se do mesmo projeto, o de criação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancine).

Reunidos anteontem em Brasília, os diretores da Aprocine (Associação dos Produtores e Realizadores de Filmes de Longa-Metragem de Brasília) elaboraram um documento no qual denunciam o ‘golpe’ que estaria sendo preparado por outra associação do setor, o Fórum do Audiovisual e do Cinema (FAC) – ‘entidade casuística de representatividade duvidosa, estrategicamente agendada para o apagar das luzes do ano, que promoveu para inviabilizar o envio do projeto de regulação do Setor Audiovisual à discussão pelo Congresso Nacional’.

A nota, entre outras decisões, desautoriza o FAC como representante da classe cinematográfica e ressalta que esta função é do Conselho Brasileiro de Cinema (CBC).

A classe briga e feio. ‘Quais são os argumentos, afinal, de quem defende a Ancinav?’, questionou a atriz Cristiane Torloni, em um debate sobre o assunto, organizado pelo Fórum do Audiovisual e do Cinema (FAC). Na mesa de discussão estavam o cineasta Roberto Farias, o jurista Ives Gandra Martins, o professor de Direito Marcos Bitelli e o cineasta João da Silveira, um dos diretores da Agência do Cinema (Ancine). ‘O projeto dá total poder de decisão a quem detiver o poder. E aqueles que estiverem vinculados a eles imaginam que também terão poder. Os mais ligados serão beneficiados’, respondeu Martins.

Na platéia foram ouvidos gritos de ‘pelegos’. ‘A resposta é matemática’, argumentou Bitelli, com didatismo. ‘O projeto do governo vende um fato de que a renúncia fiscal que hoje é de R$ 400 milhões passaria a ser de R$ 800 milhões, por causa de todas as taxações que seriam criadas’, continuou. ‘Ou seja, haveria mais dinheiro. Daí vem a sedução.’

Na platéia, ela de novo, foi ouvida a expressão ‘venderam a alma’. ‘Quem está defendendo o projeto não viveu a censura, a falta de direito de expressão’, acrescentou Farias.

Entretanto, entre os signatários de um documento de apoio à criação da agência, uma iniciativa do CBC, estão cineastas como Nelson Pereira dos Santos, Geraldo Moraes, Luís Carlos Lacerda, Carlos Reichenbach e Murilo Sales, entre outros. Todos contemporâneos de Farias, Luiz Carlos Barreto e Cacá Diegues, que repudiam a Ancinav – e que, portanto, viveram o período da ditadura militar.

REAÇÃO

O 1.º Ciclo de Debates do FAC caiu como uma bomba entre os que defendem a Ancinav. Há 15 dias, defesas veementes da agência e manifestações de solidariedade ao ministro da Cultura, Gilberto Gil, foram ouvidas no Festival de Cinema de Brasília. Toni Venturi foi o mais premiado diretor do festival, com o seu Cabra-Cega. Camisa de Che Guevara, ele subiu ao palco para receber seus troféus e defendeu a Ancinav, destemidamente. ‘Fomos acusados de estar querendo emprego público. Não é este o nível da discussão’, indigna-se Venturi.

Para Venturi e os que estão ao seu lado, o pessoal da FAC está tentando desviar o foco da discussão, apelando para o discurso do medo – medo da ditadura. ‘Eles estão usando os mesmos jargões da ditadura. O projeto vai para o Congresso, meu Deus. Quer algo mais democrático do que isso?’, questiona o diretor. ‘A agência, se aprovada, dará mais condições para os pequenos produtores trabalharem. Quem critica a Ancinav faz parte de um cartel que domina os recursos destinados ao setor’, continua. ‘Agora, o FAC quer abortar o projeto antes que ele chegue ao Congresso. Isso, sim, é autoritário.’

Muito curioso entre as diversas opiniões sobre o tema é que os que defendem a Ancinav falam que a agência é um ‘choque de democracia’ ao mesmo tempo em que os que condenam o projeto gritam que se trata da ‘volta da ditadura’. Nos bastidores opera a Rede Globo, o inimigo mais forte do projeto do Ministério da Cultura hoje. A maior emissora do País não aceita determinados pontos da proposta, como os que taxam a distribuição de filmes, a bilheteria nos cinemas e a publicidade veiculada. Coisa que atinge não só a TV Globo, mas a Globo Filmes. ‘Hoje, há feudos de poder na área de comunicação. Acho que a gente não deve ser contra a Globo. Mas as organizações Globo estão nos forçando a tomar posição’, diz Venturi. ‘O projeto põe no seu guarda-chuva atividades que até agora corriam soltas. É disso que se trata a proposta’, acrescenta Geraldo Moraes.

Outra questão colocada pela FAC que, no entender do grupo que defende a agência, deve ser esclarecida é a idéia de que grandes filmes brasileiros como Cidade de Deus e Carandiru teriam produção inviabilizada no contexto da Ancinav. Isso, por causa da pulverização de recursos que estaria contida no projeto – ou seja, mais filmes seriam produzidos, só que com orçamento reduzido. ‘Não é verdade, o projeto não mexe nos mecanismos já existentes de fomento’, rebate Venturi. ‘Todos os filmes distribuídos pela Globo Filmes são feitos com dinheiro público. São pessoas que estão querendo permanecer em cartel e não enfrentar a concorrência.’

LUGAR AO SOL

O que o pessoal do lado da Ancinav quer deixar claro é que há lugar no mercado para todos. E que as agências reguladoras são uma tendência mundial – em alguns países, em termos mais rígidos do que o que se propõe aqui, ressaltam. ‘Não estamos fazendo a defesa pela defesa’, explica Venturi. ‘O projeto é a melhor coisa que apareceu na última década para o setor. Eu não quero ser um outsider profissional. Quero entrar no mercado.’’

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‘Senadora prevê que jogo será pesado no Congresso’, copyright O Estado de S. Paulo, 18/12/04

‘A senadora Ideli Salvatti (PT-SC) conta que foi ‘laçada’ para dar andamento, no Congresso, a uma frente de apoio ao setor de cinema. Formou, há um mês, a Frente Parlamentar Mista em Defesa da Indústria Cinematográfica Brasileira, que recebeu a adesão de mais de cem parlamentares. A senadora esclarece, entretanto, que a frente não se limitará a dar sustentação ao projeto da Ancinav. O grupo já se reuniu, por exemplo, para mapear os projetos sobre cinema que tramitam nas duas Casas. A idéia é, com esses dados, definir prioridades. A seguir, a entrevista que Ideli concedeu ao Estado:

Qual será o foco da Frente?

Delimitamos algumas áreas prioritárias. Fizemos um apelo ao relator da subcomissão de Cultura do Orçamento, deputado Carlito Merss (PT-SC), para que faça um levantamento das emendas relacionadas ao cinema e promova um esforço especial por elas. Também estamos levantando todos os projetos relacionados ao cinema que tramitam no Congresso – é um número grande. Já queremos iniciar o ano com a definição de projetos que terão prioridade de tramitação.

A Ancinav também já é uma preocupação?

Sim. Queremos ter um preparo melhor, acompanhando de perto as discussões que já estão ocorrendo. Em termos de Congresso, não temos sobre o que nos debruçar, mas precisamos nos preparar.

Qual a expectativa da senhora com relação à aceitação do projeto no Congresso?

Não é pouca coisa que está em jogo. É uma discussão que vem com muito peso. Estamos lidando com setores de ponta do faturamento nacional. E que ainda movimentam idéias, a questão cultural e de soberania. Temos de partir do pressuposto de que esses setores têm muita força no Congresso. Por isso, o trabalho da Frente é tão importante. E vamos levar em conta que o projeto, ao passar pelo Congresso, se confronta com uma correlação de forças que não estão brincando. E eles já estão agindo.

Quem é contra o projeto fala em censura…

É uma das coisas mais injustas que estão dizendo. Onde está o autoritarismo? A proposta foi à sociedade, vai ao Conselho de Cinema para, depois, ser enviada pelo Executivo ao Congresso, onde será amplamente discutida. E o Congresso é soberano. Autoritarismo é não querer discutir ou não querer que o projeto chegue ao Congresso.’

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‘Cineastas ‘se armam’ contra a Ancinav’, copyright O Estado de S. Paulo, 16/12/04

‘O grupo de cineastas, artistas, produtores e distribuidores contrários à criação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav) preparam uma guerra contra o governo no Congresso. O Fórum do Audiovisual e do Cinema (FAC), entidade que representa esta parcela descontente da classe, elabora um projeto substitutivo ao de criação da agência, a ser apresentado na Subcomissão de Cinema do Senado. Isso, caso o presidente Luiz Inácio Lula da Silva insista na idéia de mandar o polêmico projeto à votação. ‘Esperamos que o presidente nem envie este projeto, mas se enviar, estamos nos preparando’, diz o presidente do FAC, cineasta Roberto Farias. Ontem, o Ministério da Cultura divulgou o anteprojeto da Ancinav ‘com aprimoramentos’. O novo texto consolida as últimas mudanças feitas na minuta.’



Claudia Antunes

‘Outro tabu’, copyright Folha de S. Paulo, 19/12/04

‘As emissoras de TV rejeitam a Ancinav, o órgão regulador do cinema e do audiovisual proposto pelo Ministério da Cultura. Lê-se nos jornais que elas refutam a taxação do faturamento publicitário para criar um fundo de apoio à atividade cinematográfica e vêem com desconfiança a possibilidade de serem estabelecidas regras de programação, como cotas para produções independentes e filmes nacionais.

As emissoras, a Globo à frente, convocaram seus artistas e autores, credenciados como porta-vozes da cultura nacional, para um seminário que pretendeu mostrar a força e a legitimidade dos argumentos contrários ao projeto.

O encontro mereceu, na semana passada, cobertura extensa em horário nobre. Os brasileiros ligados na TV não ouviram referências a disputas de mercado, novas tecnologias de comunicação, impostos -parte do rol intrincado de temas abarcados na polêmica. A tônica foi o discurso político-ideológico, a rejeição das ‘ameaças à liberdade de criação’.

Há dois meses, outros 300 cineastas e artistas assinaram um manifesto de apoio à criação da Ancinav. Porta-vozes do outro lado, não tiveram o privilégio de ocupar as telas com o mesmo destaque. Para ficar no campo em que a discussão é colocada pelas emissoras, quem precisa de maior liberdade de expressão?

Aos trancos e barrancos, o país vai jogando por terra tabus renitentes: institui-se o controle externo do Judiciário, buscam-se os arquivos da ditadura, discutem-se mudanças na legislação que pune a mulher que faz aborto. Os demônios, quando trazidos à luz, nunca parecem tão feios como eram pintados à sombra.

Mas o debate sobre a distinção entre o que deve ser alvo de regulamentação pública e o que deve ser decisão empresarial privada nas concessões dos serviços de comunicação eletrônica é enviesado justamente em veículos a que diz respeito. O que vem demonstrar como a discussão é necessária.’