Folha de S. Paulo, 25/4 Joaquim Falcão Estados Unidos versus WikiLeaks A guerra jurídica que mal começou entre o governo americano e WikiLeaks se desenvolve em duas arenas principais. Primeiro, como os documentos foram retirados dos arquivos do governo? Houve ilícito? Quem é o responsável? Segundo, o WikiLeaks tem o direito de divulgar os documentos? Qual é a estratégia americana para essa guerra? O governo tem promovido ataques pessoais aos prováveis envolvidos. O soldado Bradley Manning, acusado de ter acessado e transmitido os documentos para o WikiLeaks, está preso sem julgamento há mais de nove meses. É obrigado a dormir nu. Fica também nu diante da inspeção dos guardas. Passa 23 horas por dia numa pequena cela. Só tem uma hora para andar. Esse tratamento é humilhante. Ofende dois valores constitucionais americanos e universais: o da presunção de inocência e o que proíbe castigo cruel e não usual. O ataque pessoal a Julian Assange é mais visível. Trata-se de extraditá-lo para a Suécia. E de lá, provavelmente, para os Estados Unidos. Sob um controverso caso sexual. Não é ataque frontal contra a divulgação de documentos. É sinuoso. Trata-se de, paralisando o chefe, paralisar a operação WikiLeaks. Essa tática já pressionou as empresas de cartão de crédito a não intermediarem recursos que as pessoas do mundo inteiro doavam ao WikiLeaks. Deixando claro que o atual governo americano não hesita em pressionar suas empresas e a liberdade de contratar com terceiros quando julga de seu interesse. O ataque pessoal pretende repercussão intimidatória global. Não importa se há ou não o direito de publicar documentos não publicáveis. Importa aumentar os custos da liberdade futura. Se publicar, a perseguição jurídica do governo será pessoal. Com incríveis custos econômicos, psicológicos e físicos para o adversário. Essa estratégia governamental enfrenta hoje três obstáculos. Primeiro, a incerteza sobre se a Suprema Corte daria ganho de causa ao governo. A jurisprudência é de proteção total à liberdade de expressão. Assim foi nos casos da publicação da fórmula da bomba atômica e dos papéis do Pentágono. Por isso, o governo ainda não peticionou à Suprema Corte. Mas correrá esse risco, um dia, se for necessário. Segundo, somente em caso extremo, quando está em jogo a segurança nacional, a Suprema Corte poderia sustar e punir o WikiLeaks. Teria que haver evidência absoluta do dano. Os fatos mostram que os documentos divulgados não afetaram a segurança nacional. Causaram mais medo à burocracia que dano ao país. Terceiro, a divulgação não foi feita pelo WikiLeaks sozinho, mas pelos maiores jornais do mundo também: ‘The Guardian’, ‘The New York Times’, Folha, entre outros. Eles também serão censurados? Punidos? Como? Será difícil dizer ao mundo que o país campeão da liberdade de expressão realiza ataque coletivo e global à mídia livre. Alguns juristas orgânicos tentam elaborar a teoria de que divulgação em internet não é mídia, e, portanto, o WikiLeaks não goza da mesma liberdade de expressão que ‘Times’, ‘Guardian’ ou Folha. Em EUA versus WikiLeaks, o que está realmente em jogo são valores. Os Estados Unidos continuam dispostos a defender a liberdade de expressão na era da internet? Qual o impacto de coibir internamente essa liberdade, sobretudo quando ela tem sido vital para a democratização dos países orientais? JOAQUIM FALCÃO, mestre em direito pela Universidade Harvard (EUA) e doutor em educação pela Universidade de Genebra (Suíça), é professor de direito constitucional e diretor da Escola de Direito da FGV-RJ. Foi membro do Conselho Nacional de Justiça.