‘Uma das mais combativas defensoras dos direitos dos perseguidos pela ditadura militar no país, Suzana Lisboa decidiu abandonar a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos com duras críticas ao governo Luiz Inácio Lula da Silva. Ela é representante dos familiares de mortos e desaparecidos e está na comissão desde sua criação, há dez anos. Para Suzana, o governo Lula esvaziou a comissão e não cumpriu a promessa de abrir os arquivos do período militar. Suzana entrará também com uma ação contra a União para que o governo esclareça como morreu seu marido, Luiz Eurico Lisboa, um militante político da Ação Libertadora Nacional (ALN) que apareceu morto em 1972 em circunstâncias não explicadas até hoje.
Suzana Lisboa acusa o governo de ter tirado poder da comissão ao criar um grupo interministerial, no final de 2003, encarregado de localizar os corpos dos militantes mortos durante a Guerrilha do Araguaia. O trabalho do grupo terminou e o relatório, segundo Suzana, nem sequer foi enviado para a comissão e para os familiares.
– O pouco poder que tínhamos foi tirado. A comissão ficou capenga. Não havia condições de permanecer. O governo não abriu os arquivos da ditadura, não esclareceu as mortes e os desaparecimentos, quem matou, como morreram, onde foram enterrados e não puniu os responsáveis – disse Suzana Lisboa ao GLOBO.
Suzana foi relatora dos casos de Lamarca e Iara Iavelberg
Suzana batalhou pela criação da comissão, que surgiu através de um projeto de lei enviado pelo governo Fernando Henrique Cardoso ao Congresso. Ela foi a relatora de casos históricos na comissão, como os dos ex-guerrilheiros da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) Carlos Lamarca e Iara Iavelberg.
Ela acusou o governo de não ter esclarecido o episódio ocorrido recentemente na Base Aérea de Salvador, onde documentos do período militar apareceram queimados:
– Isso deve ter ocorrido em vários outros locais e o governo não fez nada. O governo Lula não somou nada ao que foi feito até agora.
Os familiares, segundo Suzana, chegaram a agendar dois encontros com Lula, que foram cancelados na última hora. Num deles, o presidente iria reunir-se com 70 pessoas. A ativista faz um balanço e diz que a comissão não teve apoio para localizar um corpo sequer nesses dez anos.
– Os corpos que foram localizados foi graças ao esforço dos familiares. O governo matou essas pessoas e nós é que temos que provar e apresentar indícios de onde foram enterradas.
Suzana vai entrar na Justiça para saber como seu marido morreu:
– Não basta o governo ter me pagado uma indenização. Quero saber como ele morreu, quem matou e quero reabrir o inquérito. Além de mudar o atestado de óbito, que diz que ele se suicidou.
Presidente da comissão critica a atitude da ativista
O presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos, Augustino Veit, disse ontem que concorda com as questões levantadas por Suzana Lisboa, mas critica sua decisão de abandonar a comissão. O seu substituto deve ser escolhido numa reunião que acontece hoje.
– De fato, o governo não atendeu às aspirações dos familiares e da comissão. Não colaborou na localização dos corpos e não abriu os arquivos. Mas a decisão de Suzana é equivocada. E essa é uma iniciativa dela, não dos familiares – disse Augustino Veit.’
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‘‘O governo Lula não somou nada à nossa luta’’, copyright O Globo, 31/10/05
‘Suzana Lisboa deixa a Comissão dos Mortos e Desaparecidos acusando o governo de ter interferido indevidamente no órgão. Para ela, o atual governo não somou nada à luta dos familiares. Suzana afirma que essa intromissão tornou a comissão ‘capenga’. Ela se arrepende de não ter saído antes.
Por que a senhora decidiu deixar a Comissão de Mortos e Desaparecidos?
SUZANA LISBOA:Não havia mais condição política de permanecer. Minha permanência não tinha mais sentido. Há um total desinteresse do governo em esclarecer esse assunto. Como se isso não bastasse, o governo ainda criou uma comissão interministerial que se sobrepôs ao nosso trabalho. Os arquivos não foram abertos.
Qual o problema da criação da comissão interministerial?
SUZANA:Dessa forma o governo tirou poderes da Comissão de Mortos e Desaparecidos, que ficou capenga. O grupo interministerial procedeu a buscas de ossadas e nós nem soubemos o resultado disso. Nós não tivemos acesso a muitas informações que eles produziram, o relatório sobre as buscas no Araguaia. Nós pensamos até em renunciar coletivamente. Foi um dos grandes erro que cometi (o de não ter renunciado naquela ocasião).
E por que não renunciaram?
SUZANA: Porque iria criar um vazio imenso na nossa luta. O (ministro) Márcio Thomaz Bastos, que presidia a comissão, reuniu-se conosco e garantiu que teríamos acesso aos arquivos e às informações, o que não ocorreu.
É grande a decepção com o governo Lula numa área que deveria ser sensível a esse governo?
SUZANA: É muita decepção. O governo Lula não somou nada à nossa luta. A única coisa que fez foi ampliar a lei e possibilitar que outros casos, dos que se suicidaram e morreram em passeatas, fossem contemplados pela lei.
É verdade que o presidente Lula não recebeu os familiares?
SUZANA:O Lula desmarcou duas audiências conosco em cima da hora. Numa delas, iriam 70 familiares. Nós íamos levar nossas reivindicações, que não foram atendidas por nenhum governo.
Quais reivindicações vocês iriam apresentar ao presidente?
SUZANA: Os esclarecimentos das mortes e dos desaparecimentos, quem os matou, como morreram, onde foram enterrados, a identificação dos corpos, a punição dos responsáveis. O Lula não fez nenhum gesto de aproximação com os familiares.’
Andréa Michael
‘Governo recupera documentos da censura’, copyright Folha de S. Paulo, 30/10/05
‘Numa operação de garimpagem, o Ministério da Justiça recuperou, em Brasília, fragmentos da história de 50 filmes censurados pelo regime militar. Entre os resgatados estão os documentários ‘Muda Brasil’ (1986), de Oswaldo Caldeira, e ‘Jango’ (1984), de Silvio Tendler, e os longas ‘Kuarup’ (1988), de Ruy Guerra, e ‘Matou a Família e Foi ao Cinema’ (1969), de Júlio Bressane.
A memória das fitas proibidas -que inclui pareceres de censores com as razões apresentadas para a proibição- surgiu de documentos esquecidos nos armários do ministério e de arquivos pessoais de antigos funcionários do órgão.
Em parceria com a UnB (Universidade de Brasília), o ministério pretende, com base na análise dos argumentos utilizados pelos censores para proibir ou cortar os filmes, mostrar exemplos concretos de que a classificação indicativa da programação feita hoje não é censura.
‘Não adianta eu dizer que o nosso trabalho, de classificação, é democrático, que tem perfil pedagógico e informativo. Preciso de elementos para que as pessoas possam comparar e comprovar isso’, diz José Eduardo Romão, diretor do Departamento de Justiça e Classificação do ministério.
‘A censura escolhia o que as pessoas iriam assistir. Nós informamos o que elas poderão ver, se quiserem’, diz Romão. Ele não descarta que haja subjetividade na classificação do conteúdo exibido nos cinemas e nas TVs hoje. Afirma, no entanto, que esse caráter subjetivo está sob controle por conta de parâmetros técnicos que vêm sendo construídos, pelo ministério, em audiências públicas com a população, educadores e especialistas de diferentes áreas.
Exemplo do que mudou desde a ditadura está na reclassificação do longa ‘O País dos Tenentes’ (1987), que havia sido proibido. Analisado à luz dos novos critérios -basicamente cenas de violência, sexo e drogas-, o filme agora é ‘livre’.
Em 1988, a nova Constituição, ao banir a censura, definiu que o conteúdo exibido ao público passaria por uma classificação. Na ocasião, a Divisão de Censura e Diversões Públicas da Polícia Federal, responsável pela análise do conteúdo da programação exibida à população, enviou para o Arquivo Nacional toda a documentação de que dispunha. Mas, sabe-se agora, ficaram para trás, perdidos, fragmentos dessa história.
Alguns deles também estão espalhados nas sete salas de projeção utilizadas pelo serviço de censura no primeiro subsolo do edifício sede da Polícia Federal, em Brasília. Resumem-se a duas máquinas de projeção (para fitas de 16 e 35 milímetros), uma dezena de latas de filmes inteiros em película e pedaços de tantos outros sem identificação.
Entre os pedaços de filmes encontrados pela Folha no local estão cenas de ‘Bum Bum de Ouro’, ‘A Fábrica de Camizinhas’ (sic), ‘Yayá Garcia’, além de episódios dos desenhos animados Popeye e Scooby-Doo.
Em uma das seqüências, sem indicação de título, o diálogo de um casal de jovens esfria uma cena que deveria ser picante na época. Pergunta: ‘É errado, não é, ter desejo que a gente sabe que deve recalcar?’ Resposta: ‘É. A gente deveria reprimi-los.’
Faroeste caboclo
Nos arquivos pessoais da delegada federal Viviane da Rosa, que trabalhou na censura da PF em seus últimos três anos de existência, a Folha encontrou um conjunto de pareceres sobre músicas, filmes, peças e programas de TV.
Entre as músicas, a indicação para veiculação ‘restrita’ de ‘Faroeste Caboclo’, de Renato Russo, ‘pelas referências a drogas abordadas na composição e pelos termos e expressões vulgares’.
O relatório de missão 373/DF, de 23 de novembro de 1987, cujo alvo era ‘a programação noturna da TV Globo’, afirma que ‘o filme ‘Gigolô Americano’, que apresentava corte [determinado pela censura], foi exibido de acordo com o certificado anexo, isto é, o corte foi obedecido’.
Presente ao ensaio geral da peça ‘O Santo Inquérito’, de Dias Gomes, em 6 de novembro de 1987, a censura sugeriu o rebaixamento da faixa etária permitida de 14 para 10 anos. Motivo: ‘houve modificações supressivas que reduziram consideravelmente o clima de tensão’.’
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‘Antigo censor vira delegado ou perito’, copyright Folha de S. Paulo, 30/10/05
‘Editada em pleno regime militar (1964-1985), a Emenda Constitucional nº 1, de 1969, incluiu a censura de diversões públicas entre as atribuições da Polícia Federal. Criou-se, então, a carreira dos censores, que ingressavam no Departamento de Polícia Federal mediante concurso público específico -o último deles foi realizado em 1985.
Dos cerca de 180 censores que já atuaram no Brasil, 22 continuam na ativa. Hoje eles ocupam cargos de delegado e perito federal, o equivalente ao cargo que tinham no regime militar.
Isso foi devido a uma lei de 1998 que transformou os antigos censores, que são profissionais de nível superior, em delegados (se tivessem formação em direito) ou peritos (se tivessem formação em outra área).
A censura foi extinta pela Constituição em 1988. Com isso, o que seria exibido começa a passar por um crivo de classificação. O conteúdo era indicado para programas de TV por horário, e para o cinema por idade.
A constitucionalidade da transformação das carreiras do regime militar para hoje, no entanto, está em discussão no STF (Supremo Tribunal Federal).
O ministro relator do processo, Marco Aurélio de Mello, entende que, conforme a Constituição Federal, os censores deveriam ter sido aproveitados como classificadores de conteúdo e lotados no Ministério da Justiça.
Para as partes interessadas, no entanto, está tudo bem assim: antigos censores como policiais na Polícia Federal e classificadores como carreira não regulamentada no Ministério da Justiça. O ranço do passado continua.’
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‘Responsáveis por cortes e proibições agora se consideram discriminados’, copyright Folha de S. Paulo, 30/10/05
‘Passados 17 anos de sua extinção, a censura é assunto incômodo na PF. O tema não foi abordado no livro que reconstitui os 60 anos da instituição. Os censores, vistos como braço da repressão, sentem ainda hoje, dentro e fora da PF, a discriminação de quem integrou a ditadura, mesmo com a obrigação que lhes era imposta.
Personagens que viveram os tempos de patrulha ideológica, como as hoje delegadas Edina Horta e Viviane da Rosa, lembram, sem saudades, fatos graves e pitorescos daqueles tempos.
Edina ingressou na PF como censora no concurso público de 1972. Lembra-se de que, no ano seguinte, uma portaria proibiu a cobertura jornalística, em Brasília, do chamado caso Ana Lídia, uma menina de oito anos que foi assassinada. ‘Isso aconteceu porque haveria participação de filhos de políticos no assassinato.’
Entre as curiosidades que coleciona, Edina destaca uma espécie de patrulheira da censura. Trata-se de dona Léa, mulher do general Antônio Bandeira, que foi diretor-geral da PF entre 1973 e 1974.
‘Ela tinha uma influência muito grande sobre ele. Observava tudo que achava que não deveria passar na TV e isso era vetado’, diz Edina, que preside a Associação Nacional dos Delegados da PF.
Integrante da última turma de 30 censores,de 1985, a delegada Viviane da Rosa diz que, por sorte, eram passados os tempos da censura ideológica. ‘A única coisa que a gente vetava era a pornografia. E censura política, não faria.’
Em uma de suas missões, Viviane assistiu ao primeiro show de sexo explícito feito em Brasília. Alardeado no jornal, o espetáculo não tinha autorização da censura. Sugestão de um colega: ‘Vamos de braços dados, porque aí pensam que somos namorados’. ‘Eu fui. Só tinha homem. Notificamos os responsáveis e fomos embora.’
Em fragmento de seu relatório de missão, de 22 de janeiro de 1987, ela escreveu: ‘Os diálogos são eivados de termos chulos e maliciosos. Há sexto explícito no palco, triolismo, lesbianismo, sexo oral e ejaculação’. Depois, sugeriu a suspensão do show.
Hoje diretora da Academia Nacional de Polícia, Viviane integrou a equipe que analisou o conteúdo do filme ‘Je Vous Salue Marie’, de Jean-Luc Godard. Na fita, a Virgem Maria é uma jogadora de basquete que fala palavrões e aparece nua. O filme foi proibido em 1986, mas não pelos censores. ‘A decisão de proibir foi do governo, pelas pressões da igreja.’
Sem o poder de veto, Gilberto Ramos da Silva, 58, acompanhou a censura dos bastidores. De 1973 a 1988, ele fez a manutenção das máquinas nas quais os filmes eram exibidos para os censores. Terminada a ditadura, trabalha agora no Departamento de Comunicação Social. No crachá, o passado: agente de cinematografia e microfilmagem -carreira que não existe mais.’
30 ANOS SEM VLADO
‘Cenas de um passado que ainda dói’, copyright O Estado de S. Paulo, 30/10/05
‘A fotógrafa Elvira Alegre conta peripécias de vida com muita simplicidade. Mas aqueles que desde a semana passada visitam a exposição Imagens sob Tensão, montada na sede do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, acabam por comentar: que coragem essa Elvira teve. Na mostra, organizada para celebrar os 30 anos da morte de Vladimir Herzog, dezenas de fotos inéditas exumam o passado – e eis que ele ressurge intacto, quase real, ainda dolorido. Como Elvira ousou apontar a câmera fotográfica para o caixão lacrado de Vlado, um dia depois que o jornalista morrera, sob tortura, nas dependências do II Exército? Como retratou o semblante taciturno daqueles que arriscaram ir ao velório no Hospital Albert Einstein, driblando o clima de medo e incerteza? Como é que Elvira se equilibrou em túmulos e se infiltrou na multidão, no Cemitério Israelita do Butantã, para fotografar o enterro, uma cerimônia apenas registrada pelas lentes dos arapongas da repressão? Enfim, como é que Elvira e sua Pentax não foram parar numa masmorra da ditadura?
Para início de conversa, quem é Elvira Alegre? Rebobinemos a história até outubro de 1975. Eram cinco ou seis jornalistas alternativos e moravam numa espécie de comunidade da imprensa na Rua São Gall, 110, bairro de Vila Romana, em São Paulo. Alternativos porque, depois de passar por importantes redações do País (O Estado, Folha, Veja, Jornal do Brasil, Quatro Rodas, Exame…), acabaram aderindo à chamada imprensa nanica, mas topetuda o bastante para desafiar a censura prévia à qual todos os veículos estavam submetidos. Eram os repórteres e editores que fizeram a revista Realidade, depois a vanguardista Bondinho e agora, neste momento da história rebobinada, faziam o tablóide Ex: Paulo Patarra, Mylton Severiano da Silva, Hamilton Almeida Filho, José Trajano, Narciso Kalili etc, etc… e Elvira. Aos 18 anos, bonita e com todos os sonhos na cabeça, Elvira desembarcou nessa comunidade como a namorada de Hamilton, de 29 anos, e como fotógrafa do Ex. Não fazia muito tempo tinha se despedido do cursinho preparatório para medicina, em sua cidade natal, Londrina, para enveredar pelo jornalismo. Jamais se arrependeria da guinada. Descendente de italianos (parte da família assina Allegro, parte assina Alegre), a garota chegou a São Paulo como que contagiada pelo sobrenome – apesar dos tempos sombrios.
Era início da madrugada de domingo, 26 de outubro de 1975, quando o telefone tocou na casa da Rua São Gall (o telefone era um luxo, porque na redação do Ex, um sobrado na Rua Santo Antônio, bairro do Bexiga, nem telefone havia. Os repórteres trabalhavam no orelhão da esquina). Do outro lado da linha, um locutor da TV Cultura, conhecido de todos, informava que Vlado tinha se apresentado para depor na véspera e morrera, horas mais tarde, ao se enforcar numa cela do DOI-Codi. História esquisita. O Estadão de domingo, horas depois, chegava com uma nota concisa, confirmando a prisão de Vlado e de vários outros jornalistas. O telefone da casa não parou mais um minuto. Em conversas sucessivas, confirmava-se a morte, crescia a boataria em torno de um falso suicídio, sabia-se de uma autópsia oficial e duvidosa, dizia-se que o corpo sairia do IML diretamente para o velório no Einstein e que o enterro não tardaria.
A redação do Ex, reunida na casa da São Gall, resolveu sair em campo e fazer a reportagem. Acabavam de mandar para a gráfica o décimo sexto número do jornal, com uma entrevista de dom Paulo Evaristo Arns na capa. Pois que parassem as máquinas, porque a edição seria reaberta. No lugar da entrevista do cardeal arcebispo, a cobertura de um assassinato de Estado. Narciso, Mylton, Paulo, todos para o Einstein. ‘Elvira, vem com a gente, mas traz a máquina’, recomendou Hamilton. Na corrida, Elvira pegou a Pentax, jogou dois filmes preto-e-branco na bolsa – e não imaginou a importância das imagens que faria.
Quando comecei a fotografar o velório, as pessoas ficaram tensas. Afinal, quem era eu? Uma agente da repressão? Trabalhava para algum veículo? Mas como, se não havia fotógrafos profissionais cobrindo o velório? O então deputado Ayrton Soares chegou a me dar um encontrão contra a parede. ‘De onde você é?’, ele perguntou, quase me ameaçando. Meus amigos explicaram, porém as pessoas evitavam as fotos ou me encaravam com desconfiança. Eu estava bem hesitante até o Hamilton chegar perto de mim e dizer: ‘Vai, não tenha medo. Fotografa’. Não sabíamos ao certo se estávamos sendo vigiados. Hoje acho que estávamos. Então foi chegando gente ao velório, gente, muita gente. Curioso, as pessoas não falavam. Havia um silêncio pesado no ar.
O diafragma da máquina quebrava aquela tensão em surdina com um clac-clac metálico. Elvira flagrou o momento em que Audálio Dantas, então presidente do Sindicato dos Jornalistas, chorava com o rosto entre as mãos, diante do caixão de Vlado (por décadas essa bela foto circulou em algumas redações e algumas vezes chegou a ser publicada sem crédito de autoria). Ou o momento em que dom Paulo se postou diante do caixão, sem dizer uma palavra (fora-lhe recomendado manter-se calado). Apenas rezou, cumprimentou as pessoas e foi embora. Capturou os instantes de ternura e desolação de Clarice, viúva de Vlado, com seus dois filhos pequenos, Ivo e André. Retratou a prostração de dona Zora, mãe de Vlado, que desde o primeiro momento suspeitou que iriam matar o filho. E também a chegada dos políticos: os senadores Franco Montoro e Orestes Quércia, os deputados estaduais Robson Marinho, Del Bosco Amaral e Horácio Ortiz, todos do MDB. Jornalistas e artistas se misturavam e formavam rodinhas de conversas murmuradas, como registrou Elvira: Mino Carta, Plínio Marcos, Zuenir Ventura, Juca de Oliveira, Walter Silva, o Pica-Pau, Raul Cortez… Era muita indignação: como é que Vlado, diretor de jornalismo da TV Cultura, apresentara-se espontaneamente diante das autoridades e, horas depois de entrar no DOI, era dado como morto? Clac-clac. A jovem Elvira continuou apontando a máquina na direção de rostos inconformados, ainda sem saber como a versão do suicídio fora montada, como a autópsia corroborara uma farsa, como haviam sido criados todos os obstáculos para que a viúva não conseguisse um segundo exame no cadáver do marido. Nem imaginava como teriam sido silenciados aqueles que lavaram o corpo de Vlado, seguindo o ritual judaico, ou que ameaças haviam sido feitas para que se enterrasse, o mais rápido possível, aquele incômodo troféu da ignomínia.
Na segunda-feira cedo, o caixão foi colocado numa perua Veraneio preta, jamais me esquecerei, e um longo cortejo se formou em direção ao Cemitério do Butantã. Lá, não havia dúvida. Estávamos vigiados. Éramos filmados, fotografados, observados, fichados. Fazia um calor insuportável, eu transpirava em bicas, e não tinha a menor noção do perigo que corria. Sabia que meu trabalho era importante, mas, noção do risco, não havia. Fui fotografando, e os ‘agentes do mal’ faziam o mesmo. Eles estavam lá com filmadoras, máquinas, flashes. Faziam tudo ostensivamente, na cara da gente. Eu contava com uma boa máquina, é certo, dois filmes de 36 exposições, mas nenhuma lente especial. Subi em túmulos, deitei no chão, precisei empurrar pessoas para não perder as imagens de um enterro que não demorou mais que 15 minutos. A revolta de Clarice diante daqueles que aceleravam o sepultamento foi algo que jamais esqueci. Assim como o barulho surdo das pás cobrindo de terra o caixão de Vlado.
Elvira registrou cenas fundamentais. Contornou por trás a multidão que se acotovelava no local do sepultamento, sob sol forte, e assim ‘congelou’ a primeira prova visual de que Vlado não estava sendo enterrado na área periférica do cemitério, reservada aos suicidas. Flagrou a raiva de Clarice com os representantes da Chevra Kadisha, entidade que zela pelo cumprimento dos rituais judaicos, homens que insistiam em acelerar os trabalhos. Capturou o momento em que dona Zora foi derrotada pela dor. E os olhares de incompreensão e inocência de Ivo e André. No meio daquelas mil pessoas, surgiram os jornalistas Rodolfo Konder, George Duque Estrada, Paulo Markun e Anthony de Christo. Presos semanas antes no DOI-Codi, da Rua Tutóia, foram ‘liberados’ para assistir ao sepultamento de Vlado, com o compromisso de completar seus depoimentos nos dias seguintes – outra farsa. Os quatro choravam. Escoravam-se. Sussurravam coisas. ‘Eles matam’, falavam entre os dentes. A libertação de araque tinha duplo objetivo: desmentir suspeitas de que houvesse tortura no ‘Tutóia Hilton’ e ao mesmo tempo disseminar o pânico. Quanta insânia. O sindicalista Emanuel Martins rompeu o silêncio e citou o profeta Jeremias. A atriz Ruth Escobar não se conteve e cobrou: ‘Até quando vamos enterrar os nossos mortos em silêncio?’ Audálio Dantas declamou Castro Alves: ‘Senhor, Deus dos desgraçados/ dizei-me vós, Senhor Deus/ Se é mentira, se é verdade/ Tanto horror perante os céus’. Fim da cerimônia. De boca em boca, os jornalistas passaram a senha: reunião no sindicato à noite.
Quem sabe sintetizar esse momento de dispersão/união no cemitério é o jornalista Fernando Pacheco Jordão, amigo de Vlado e Clarice e autor da mais completa investigação sobre o caso, publicado no livro Dossiê Herzog (Global Editora), cuja sexta edição acaba de chegar às livrarias. É leitura obrigatória para quem viveu ou não aqueles acontecimentos. Diz Jordão em seu livro: ‘A pequena multidão que foi ao cemitério já ia se desfazendo quando do fundo de sua indignação partiu o grito que dali para a frente empurraria os jornalistas em sua luta: ‘Vamos para o sindicato!’ Se o medo da repressão que torturava e matava persistia – ampliado ainda mais pelo impacto tenebroso da morte de Vlado -, a presença maciça de jornalistas, políticos, estudantes, artistas e representantes de outros setores dava a todos a consciência de que começava a ser superado, naquele momento, o medo de reagir à violência e à opressão’.
Saímos do cemitério direto para a casa da São Gall. A equipe toda do Ex enfiada num só carro, seguíamos apertados, tensos, o calor aumentava… Comecei a passar mal. Antes de chegarmos à nossa casa, Narciso Kalili pediu que parassem numa padaria. Comprou uma sodinha para mim. Como foi providencial aquele refrigerante… Em casa, meus amigos começaram a escrever aquela que seria a histórica matéria de capa do Ex 16. Eu logo saí para me encontrar com um fotógrafo que tinha um laboratório perto da Avenida Rebouças. Fui para lá e revelei os dois filmes. Não tinha aquela desenvoltura toda, estava começando na profissão. Mas, naquele momento, penso que aprendi coisas na marra – e rápido. As fotos ficaram prontas, estavam boas, porém não entraram na edição. Não deu tempo.
Teria sido mesmo falta de tempo ou medo de provocar os donos da ordem? A julgar pelo destrambelhamento do regime, em cujos subterrâneos, naquele momento, confrontavam-se uma direita pró-abertura e uma ultradireita linha-dura, faz mais sentido supor que os editores do Ex resolveram deixar as fotos de Elvira de lado, para evitar mais encrenca. Tanto é assim que, poucos dias depois, no culto ecumênico realizado na Catedral da Sé, Elvira foi desaconselhada a seguir fotografando. Já estaria visada. A reportagem de capa chamou-se ‘A Morte de Vlado’, tinha oito páginas e forma de dossiê. Foi o ponto de partida para o livro A Sangue Quente, lançado mais tarde pelo jornalista Hamilton Almeida Filho. Os editores do Ex, acostumados ao orçamento minguado de uma cooperativa de jornalismo que vivia atolada no vermelho, viram uma edição de 50 mil exemplares ser disputada nas bancas. Providenciaram outra edição, e o sucesso de vendas se repetiu. Quitaram dívidas, pagaram salários, fizeram edições extras. A morte de Vlado garantiria a sobrevida do jornal por mais alguns números.
Depois da publicação da reportagem, Hamilton e eu, preocupados com a situação geral, nos mandamos para o Rio, para a casa do pai dele. Eu já descobrira por que havia precisado tanto daquela sodinha, para me recuperar do enjôo à saída do cemitério: estava grávida. Celebramos a novidade em casa, entre amigos, diante de uma vasta panela de capeletti. A ida ao Rio foi providencial: levei os filmes comigo e, naqueles dias na casa do pai de Hamilton, a polícia invadiu a redação do Ex, mexeu e remexeu em tudo, levou muita coisa embora. Sorte que os jornalistas não estavam lá no momento da invasão. Nem os jornalistas, nem meus filmes. Nove meses mais tarde, eu voltava ao Einstein, onde tanta tristeza e tanto medo havia sentido, para dar à luz. Foi um momento muito feliz. Ainda não tinha nem completado meus 19 anos. Joana nasceu cheia de saúde, às 22h58 de 23 de junho de 1976. Não pude deixar de pensar: que coisa curiosa, vai uma vida, vem outra…
Elvira e Hamilton se separaram em 1978, mas se mantiveram amigos. Antes de voltar para Londrina, com a pequena Joana, Elvira deixou algumas fotos da série que fez sobre o velório e o enterro de Vlado com um jornalista amigo – deixou por deixar, sem visar nenhuma publicidade. Mas levou consigo todo o resto, incluindo os negativos. Os anos foram se passando e, com muita freqüência, Elvira revia as fotos. Não parava de olhar aquelas cenas, de tentar decifrar aquelas fisionomias. Aos dez anos da morte de Vlado, alguns veículos publicaram a foto de Audálio diante do caixão. A autora ficou sabendo em Londrina. Em 1995, aos 20 anos da morte, Elvira despachou para São Paulo parte das fotos, para que fizessem parte de uma exposição sobre tortura, no MIS. Não sabe explicar a razão, mas a mostra não foi sucesso de público. Elvira então exibiu o material num cineteatro de Londrina e mandou cópias para Clarice Herzog. Soube mais tarde que a viúva de Vlado guardara as fotografias, evitando mostrá-las aos filhos. Certamente queria poupá-los. Em 2005, aos 30 anos da morte de Vlado, Elvira tomou coragem e telefonou para a viúva. Queria se apresentar para Clarice. E ouviu ao telefone: ‘Mas, Elvira, há dez anos eu procuro por você…’ Dez minutos depois, era Audálio ligando para Elvira: ‘Conte como você bateu aquela foto minha, diante do caixão’, queria saber. Desta vez, Elvira veio a São Paulo como convidada especial dos eventos em torno do trigésimo aniversário da morte de Vladimir Herzog. Viveu dez dias de emoção.
Minhas fotografias ficaram fora de circulação, censuradas por muito tempo. Naquela época não podíamos sair por aí mostrando aquelas imagens, era perigoso. Depois, houve os desencontros da vida. Eu tratei de continuar meu trabalho em Londrina, casei-me novamente, tive outros filhos. As poucas reproduções que deixei em São Paulo acabaram aparecendo em reportagens e até mesmo no documentário que está em cartaz atualmente. Nem sempre me davam o crédito – afinal, onde estaria a autora das fotos? Agora estou aqui: para dizer que fiz e faria novamente. Não quero nada.
Nos dez dias que passou em São Paulo, participando da programação sobre os 30 anos da morte de Vladimir Herzog, Elvira Alegre voltou a fotografar os personagens e endereços de outrora: Clarice, Ivo, Audálio, Henry Sobel, dom Paulo, Fernando Jordão, a casa da São Gall, o sindicato, a Catedral…’
Henry I. Sobel
’30 anos sem Vladimir Herzog’, copyright Folha de S. Paulo, 31/10/05
‘Neste mês de outubro se completaram 30 anos desde que o Brasil perdeu Vladimir Herzog. Vlado era jornalista de destaque, professor da USP e diretor do Departamento de Jornalismo da TV Cultura. Era também um judeu. Não praticante, mas um judeu -dotado de grande capacidade intelectual, universal em sua visão e profundamente comprometido com as causas humanitárias no Brasil e no exterior.
Na segunda-feira, dia 27 de outubro de 1975, os jornais noticiaram a morte de Herzog, aos 38 anos, depois de ter sido submetido a intensos interrogatórios no Departamento de Operações Internas do 2º Exército, em São Paulo. Estávamos então no auge da repressão. Herzog foi encontrado morto em sua cela no Doi-Codi. A explicação oficial divulgada pelas Forças Armadas foi a de que ele havia se suicidado.
O enterro de Herzog, que se realizou na mesmo dia no Cemitério Israelita do Butantã, teve ampla repercussão na imprensa local e internacional, não apenas devido às circunstâncias trágicas de sua morte mas também porque muitas das pessoas presentes ao sepultamento tiveram a impressão de que a cerimônia não havia sido celebrada de acordo com os rituais tradicionais judaicos. Entre os fatos destacados, enfatizou-se a ausência de um rabino no cemitério e a suposta rapidez com que se realizou o enterro.
Em entrevista à imprensa, esclareci que os rituais de sepultamento haviam sido cumpridos rigorosamente de acordo com a lei judaica. E expliquei que o motivo da minha ausência tinha sido um compromisso profissional inadiável, no Rio de Janeiro, no dia do enterro. Ressaltei que a comunidade judaica estava chocada ante a violação dos direitos fundamentais de Herzog.
Preocupou-me imensamente não só a barbaridade do crime que havia sido cometido mas também a imagem negativa de passividade que foi atribuída à comunidade judaica. Fiz questão de declarar à imprensa que a sinagoga defendia os direitos humanos com o mesmo fervor que a igreja e que os judeus estavam tão revoltados com a morte de Herzog quanto todos os outros brasileiros.
Alguns dias depois da morte de Herzog, a pedido da família e do Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo, foi realizado um culto ecumênico na Catedral da Sé, co-celebrado por dom Paulo Evaristo cardeal Arns, pelo reverendo Jaime Wright e por mim. Cerca de 8 mil pessoas compareceram.
Imediatamente após a morte de Herzog, milhares e milhares de universitários, jornalistas, intelectuais e líderes religiosos de todos os credos organizaram passeatas, greves e atos públicos, em conseqüência dos quais o comandante ultra-radical do 2º Exército foi substituído por outro mais moderado.
A morte de Herzog mudou o rumo do país. Foi o catalisador da abertura política e do processo de redemocratização do Brasil. Seu nome será para sempre uma recordação dolorosa de um sombrio período de repressão na história brasileira. Será também o eco eterno da voz da liberdade, que não cala jamais.
Vlado não foi a única vítima do establishment naquela época. Nos anos da ditadura militar no Brasil, centenas de opositores do regime foram espancados em repartições públicas. Muitos foram mortos. A tortura era o meio preferencial utilizado pela polícia para buscar informações sobre outros militantes. Com a redemocratização do país, teve-se a impressão de que a tortura acabara. Infelizmente, era uma impressão falsa.
A tortura, crime inafiançável, continua a ser praticada pelos agentes do Estado. O espancamento, o choque elétrico e o pau-de-arara são técnicas usadas rotineiramente. Nesta nossa civilização, que se julga tão avançada, ainda é corriqueira a tortura de presos a pretexto de puni-los pelos crimes que cometeram ou para extrair deles confissões de crimes que não cometeram.
A tortura pode ser abolida. O que falta é a determinação da sociedade de não admitir que ela seja praticada. Não basta alguns defensores dos direitos humanos tentarem pressionar o governo para que a proíba. Tal pressão tem de vir da sociedade como um todo. Em última análise, os cidadãos da nação respondem pelos atos -e por sua falta- do seu governo.
Foi a pressão da sociedade que levou o governo militar a refrear a tortura durante a ditadura. O protesto maciço da população contra o assassinato de Herzog surtiu efeitos positivos incomensuráveis. Infelizmente, a maioria das pessoas só se revolta com a tortura quando ela é de caráter estritamente político. Quando um criminoso comum é torturado, a sociedade se cala ou -pior- aplaude. A triste verdade é que a violência da polícia conta hoje com o respaldo de parcela considerável da população. A lição do brutal assassinato de Herzog ainda não foi captada 30 anos depois.
Se queremos render tributo à memória de Vlado, temos que preservar dentro de nós o sentimento de indignação e inconformismo, jamais nos acomodando à violação dos direitos alheios. O silêncio é o mais grave dos pecados. A indiferença em face do mal é um incentivo ao seu recrudescimento. Se fechamos os olhos, se viramos a cabeça, se fingimos não saber, tornamo-nos cúmplices.
Digamos ‘não’ à tortura. Em alto e bom som, digamos ‘não’ à violência institucionalizada. E, inspirados pelo legado de Vladimir Herzog, digamos ‘sim’ à dignidade humana.
Henry I. Sobel é presidente do Rabinato da Congregação Israelita Paulista e coordenador da Comissão Nacional de Diálogo Religioso Católico-Judaico, órgão da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.’