Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Fernando de Barros e Silva

‘Como o emplastro anti-hipocondríaco que Brás Cubas carregava no trapézio que tinha no cérebro, Lula também pendurou na cabeça uma idéia fixa: o denuncismo da imprensa faz mal à saúde do país.

No caso do defunto autor machadiano, a invenção que ele divulgava com o propósito de ‘aliviar a dor da nossa melancólica humanidade’ era, na verdade, movida pelo desejo de lucro e reconhecimento. Como ele próprio confessa do além: ‘De um lado, filantropia e lucro, de outro lado, sede de nomeada. Digamos: -amor da glória’ . Estando do lado de cá, entre os mortais -e no poder-, Lula não ousaria ser tão sincero.

Anteontem à noite, ao participar de mais um convescote da mídia, prestigiando uma revista que o apóia abertamente, o presidente voltou a martelar o suposto denuncismo da imprensa, segundo ele um subproduto de interesses comerciais das empresas jornalísticas, que privilegiariam o escândalo à informação.

O argumento é cretino. Até os menos informados sabem que o jornalismo político é um produto em baixa no mercado. O leitor hoje quer saber e comprar outras coisas.

Isso, porém, é o de menos. A ofensiva do governo petista contra os ‘abusos da imprensa’ não visa aprimorar nossa democracia nem preservar nossas instituições, mas justamente o contrário. E isso os Brás Cubas do Planalto precisam esconder em vida.

O escárnio da elite petista vai, no entanto, além. Marcelo Coelho mostrou na semana passada, na Ilustrada, que o PT herda o discurso fernando-henriquista quando fala em ‘governabilidade’ e condena o ‘denuncismo’. Mais ainda: o PT reciclou e aprimorou o casuísmo institucional.

Na democracia de resultados petista, é preciso enquadrar a imprensa e amarrar o Ministério Público. É mesmo chato ler no jornal que o governo federal agiu na surdina para beneficiar Marta no pagamento da dívida da Prefeitura de São Paulo. Não é lá muito confortável ver o Ministério Público remexer na sujeira ainda mal explicada do caso Santo André.’



Fernando Rodrigues

‘Realidade e marketing’, copyright Folha de S. Paulo, 1/09/04

‘Lula tem uma fita de vídeo em seu gabinete. São cenas suas e da seleção brasileira de futebol no Haiti. Há trechos do ‘Jornal Nacional’, da TV Globo. Zagallo está quase chorando. O presidente abraça os jogadores. É uma festa.

O vídeo é apresentado para visitantes seletos. Lula se refestela com seu maior ato de marketing internacional desde que assumiu o cargo.

A propaganda agora será reforçada. A economia cresceu 4,2% no primeiro semestre deste ano em comparação com o mesmo período de 2003. É um resultado expressivo.

Desde o retorno à democracia, em 1985, só em seis anos o PIB cresceu mais de 4%: 1985 (7,9%); 1986 (7,5%); 1993 (4,9%); 1994 (5,9%); 1995 (4,2%) e 2000 (4,4%).

Nas cidades, o crescimento da economia pode até não ajudar candidatos a prefeito petistas, mas deixará de atrapalhar. O discurso de estagnação econômica usado pela oposição terá de ser, do ponto de vista político-eleitoral, colocado na prateleira.

Não que exista segurança sobre a capacidade de o país sustentar esse crescimento. Não há essa certeza. Só que os políticos estão preocupados em ganhar a eleição. A população paga a conta mais adiante.

Há exemplos de como o país está despreparado para crescer de maneira sustentada. Basta olhar o nível de informação dos principais assessores do presidente da República.

Guido Mantega (Planejamento) falou ontem de manhã na TV Globo -sempre lá- que só a China se equipara ao Brasil em ritmo de crescimento das exportações. Errado.

As exportações brasileiras estão em 32º lugar em percentual de crescimento no período de 12 meses que terminou em maio. O Brasil está atrás de Uruguai, Bolívia e Peru.

Tudo bem. O marketing acima de tudo. O Haiti ama o Brasil. O crescimento da economia dá para o gasto eleitoral nas cidades. E Lula está feliz com seu vídeo futebolístico.’



Folha de S. Paulo

‘A redação do Poder’, Editorial, copyright Folha de S. Paulo, 5/09/04

‘Na prova de redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2004, pela primeira vez na história recente, o governo orientou o conteúdo político de uma atividade escolar. O Ministério da Educação nega, mas a evidência é contundente.

No momento em que o governo patrocina o polêmico projeto do Conselho Federal de Jornalismo (CFJ) e Lula e seus ministros denunciam o ‘denuncismo’, os jovens estudantes foram solicitados a dissertar sobre o tema ‘Como garantir a liberdade de informação e evitar abusos nos meios de comunicação?’. O suporte para a redação era constituído por uma charge, na qual a TV transfigura-se em lata de lixo, um extrato de texto sobre os programas sensacionalistas, dois extratos favoráveis à auto-regulamentação da mídia e os incisos do artigo 5º da Constituição que proíbem a censura e asseguram a proteção à vida privada e imagem das pessoas.

Nada sobre o valor da liberdade de imprensa na democracia, a importância da fiscalização do governo pela mídia ou a função histórica desempenhada pelos jornalistas na denúncia de episódios de corrupção no poder público. Nenhuma alteridade: uma receita de bolo que, com certeza, gerou milhares de redações semelhantes entre si e involuntariamente parecidas com o discurso emanado do Planalto.

O Enem é a única prova de abrangência nacional aplicada diretamente pelo Ministério da Educação aos alunos do último ano do ensino médio. A maior parte das universidades públicas usa os resultados do Enem na pontuação dos candidatos dos seus exames vestibulares. Por razões óbvias, as escolas públicas e particulares o tomam como referência na estruturação de conteúdos e métodos de ensino. Quando a redação do Enem torna-se uma convocação para que os estudantes reproduzam como papagaios as palavras do presidente da República, professores de todo o país registram o recado.

As instruções contidas na prova do Enem comandam a redação de uma dissertação baseada ‘nas idéias presentes nos textos acima’, ou seja, na charge e nos extratos cuidadosamente selecionados para gerar um fim político definido.

Qual seria a avaliação atribuída a um candidato que optasse por distinguir os programas sensacionalistas de TV das denúncias de corrupção governamental estampadas na mídia e por mostrar os perigos à liberdade de imprensa inerentes ao projeto do CFJ?

Os regimes autoritários sempre almejaram controlar as idéias veiculadas na escola e promover entre as crianças e jovens os ‘valores patrióticos’, ou seja, para todos os efeitos práticos, os seus próprios valores e ideologias. Na democracia, o governo tem o dever de promover a educação pública, mas, igualmente, o de respeitar a autonomia pedagógica do processo de ensino. O governo não se confunde com o educador e não pode entrar na sala de aula. A transgressão desse imperativo ético e político pelo Enem configura um perigoso precedente.’



O Estado de S. Paulo

‘Novo ataque à imprensa’, Editorial, copyright O Estado de S. Paulo, 1/09/04

‘Pela segunda vez em dois meses, o presidente Lula investiu anteontem contra o ‘denuncismo’ da mídia. Em julho, na posse do novo diretor da Agência Brasileira de Investigação (Abin), ele dissera que ‘o denuncismo não contribui com (sic) a democracia. Muitas vezes figuras são difamadas pela imprensa por informações precipitadas, com o nome achincalhado pelos quatro cantos do País. Depois, não se prova nada e ninguém pede desculpa pelo estrago que foi feito à imagem da pessoa, à imagem da família e à imagem do Estado brasileiro’.

E ensinou: ‘Uma denúncia só pode se tornar pública quando estiver embasada em fatos verdadeiros (sic) e totalmente comprovados, senão isso passa a ser difamação.’ Houve quem saudasse tais palavras como um tardio mea-culpa do líder máximo da agremiação política brasileira que, na oposição, fez do denuncismo uma rotina, plantando sistematicamente na imprensa informações falsas, com a intenção de achincalhar colaboradores do então presidente Fernando Henrique, como o secretário Eduardo Jorge Caldas Pereira, para desestabilizar o seu governo – algumas vezes mobilizando para isso procuradores com carteirinha do partido.

Logo se percebeu, porém, que o otimismo não tinha razão de ser. O presidente Lula não havia pedido desculpas coisa nenhuma pelas difamações a que os seus companheiros se entregaram no passado com voracidade sem precedentes e das quais não deram mostras de arrependimento, nem mesmo em privado, junto às suas vítimas – entre as quais vários presidentes do Banco Central. O puxão de orelhas visava a desqualificar de antemão perante a opinião pública o noticiário de fatos presentes que desagrada à nova elite no poder. Mais do que isso, visava a intimidar a imprensa.

O intuito ficou claro por declarações do ministro da Comunicação do Governo, Luiz Gushiken, e pela decisão de encampar o amordaçador projeto da Fenaj criando o Conselho Federal de Jornalismo. Sábado, em artigo neste jornal, o presidente do PT, José Genoino, escreveu que ‘o governo apenas encaminhou uma petição da categoria dos jornalistas’ (admitindo que teria sido melhor não fazê-lo). Na realidade, fez mais do que isso. A Casa Civil acrescentou ao texto original expressões nitidamente destinadas a apertar ainda mais o garrote sobre a imprensa.

Agora, numa solenidade, mais uma vez encarnado no papel de professor de ética jornalística, Lula aconselhou a mídia a não se preocupar com o que chamou ‘disputa eminentemente de mercado’ e, em vez disso, ‘pensar na qualidade da informação que o povo brasileiro recebe, sobretudo num momento em que muitas vezes o denuncismo pelo denuncismo tem prevalência sobre a notícia e a informação’. O comentário mais caridoso que se pode fazer a respeito, tomando as palavras do presidente ao pé da letra, é que ele não sabe do que está falando.

A imprensa séria, pelo menos, disputa mercado exatamente com a arma da qualidade da informação. Jornais, revistas e emissoras que se dão ao respeito procuram ser éticos não apenas por uma concepção do que seja a responsabilidade jornalística, mas também por saber que o seu êxito comercial depende de sua credibilidade – e esta, do exercício profissional ético. O mercado, que cedo ou tarde pune ‘o denuncismo pelo denuncismo’, não ameaça a imprensa independente. A oligopolização sem freios do setor, sim.

Um governo com pretensões de calar a crítica, mais ainda.

No citado artigo do presidente do PT, se lê que ‘a liberdade de imprensa e a liberdade política de que todos gozam nos dias de hoje são frutos de nossas lutas, juntamente com muitos democratas que estão em outros partidos’.

Quando Lula volta a atacar a mídia, é oportuno lembrar que da resistência ao regime militar, a que alude Genoino, participaram democratas e ‘democratas’.

Estes, muitos dos quais ajudariam a criar ou se filiariam ao PT, desejavam derrubar uma ditadura para erguer outra, usando como ferramenta a reconstrução democrática.

Tanto não tinham os petistas, em geral, compromissos com a ‘democracia burguesa’ que a bancada do partido na Constituinte, liderada por Lula, se recusou a assinar a Carta de 1988. Naturalmente, o PT de hoje não é o de duas décadas atrás. Em face das provas cabais da barbárie do ‘socialismo real’, no mundo inteiro, e o Brasil não foi exceção, a grande maioria dos socialistas sinceros se converteu à democracia. Lula, justiça se lhe faça, nunca rezou pela cartilha totalitária.

Mas, diante do que tem dito da imprensa, fica-se com a impressão de que ou ele descobriu tardiamente uma vocação de censor ou está dando ouvidos demais àqueles seus companheiros que nunca abjuraram das idéias liberticidas.

Aqueles que durante a ditadura se exilaram em Cuba, e até hoje é lá que passam suas férias.’