‘O Palácio do Planalto tomou uma atitude inédita na segunda-feira: retirou do seu site a íntegra de um dos discursos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
O texto desaparecido é de sábado, quando Lula discursou na inauguração de um trecho da avenida Radial Leste, em São Paulo. Entrou para valer na campanha de Marta Suplicy.
O www.info.planalto.gov.br, sob o comando de Ricardo Kotscho, secretário de Imprensa e Divulgação, tem o bom hábito de arquivar eletronicamente tudo o que o presidente da República fala em público. É possível fazer pesquisas por data e/ou por palavras. Um excelente serviço.
Agora, a transparência foi para o espaço. O Planalto concluiu que o discurso de Lula na Radial Leste era propaganda pura a favor da reeleição de Marta Suplicy. Poderia ser usado como argumento da oposição, que acusa o presidente de crime eleitoral, se permanecesse exposto dentro do site da Presidência da República.
O discurso ficou menos de 48 horas no ar. Quem ainda quiser encontrar trechos, estão nas ‘notícias’ do site www.martaprefeita.com.br.
Ontem, no início da noite, quando ficou público o sumiço do texto, ninguém sabia direito o que fazer no Planalto. Tentou-se alcançar o presidente, mas ele já havia embarcado de Nova York para o Brasil.
Há três opções em debate. Primeiro, jogar o discurso no lixo e pronto. Segundo, recolocar o texto no ar depois do período eleitoral (os historiadores agradecem). Terceiro, indagar ao presidente se ele permite que seu panegírico pró-Marta volte imediatamente ao site -a decisão sai hoje.
A história do texto sumido não muda o curso da história. Só mostra como funcionam certas tomadas de decisão dentro do governo. Marta pressionou. Lula acabou topando e entrou em sua campanha de maneira estrepitosa. Com isso, desestruturou, ainda que temporariamente, um serviço público de informações.
Lula não perderia nada se não tivesse feito o discurso da Radial Leste. Apressou-se e fez. Agora, é tarde.’
James Allen
‘A íntegra do discurso volta à internet’, copyright O Estado de S. Paulo, 24/09/04
‘A censura que o governo impôs ao discurso em que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva pediu votos para a reeleição de Marta Suplicy foi inútil. A fala só foi mutilada na página do Palácio do Planalto na internet. No portal da Agência Brasil, que pertence à estatal Radiobrás, o discurso pode ser lido na íntegra. Basta acessar www.radiobras.gov.br e clicar em cima da expressão ‘discursos’.
Na entrevista aos jornalistas de emissoras de rádio, ontem de manhã, o presidente reconheceu que errou ao fazer o pedido de apoio e prometeu não repetir o erro. Disse que a censura à sua fala tinha sido decidida para evitar especulações políticas. Mas, com a censura, só as aumentou. E, agora, em dois portais de um mesmo governo, há dois discurso. Um, submetido à violência da censura e o outro não.
O episódio deixou claro que, desde a tarde do sábado, quando Lula fez o discurso em São Paulo, os auxiliares do presidente divergiram a respeito de seu significado político e jurídico. Num primeiro momento, o Planalto divulgou o discurso na íntegra. Diante das críticas, e das suspeitas de transgressão de normas eleitorais, o texto foi simplesmente retirado do site. Voltou, mais tarde, mas sem o último parágrafo – exatamente aquele em que Lula pede votos para a prefeita.
O trecho censurado era a última mensagem do presidente à platéia. Ele desfiou uma série de elogios à administração de Marta.
E completou com estas palavras, que foram expurgadas: ‘É por isso que nós temos a obrigação política de levantar a cabeça com muito orgulho e dizer aos companheiros e às companheiras de São Paulo inteira, que se as pessoas querem continuar tendo progresso nas políticas sociais não têm outro jeito, dia 3 de outubro é votar na Marta Suplicy para continuar administrando São Paulo. Muito obrigado, gente.’’
Contardo Calligaris
‘Controlar e regulamentar’, copyright Folha de S. Paulo, 23/09/04
‘Regulamentar está na moda.
Nos últimos tempos, 1) o governo propôs a criação de uma agência nacional que fomentaria e fiscalizaria a produção cinematográfica e audiovisual; 2) o presidente da República apoiou repetidamente o projeto de instituir um Conselho Nacional de Jornalismo que exala um perfume de censura; 3) o Conselho Federal de Psicologia apresentou um novo código de ética, segundo o qual os psicólogos teriam a obrigação de denunciar os pacientes que cometessem ou relatassem atos violentos e ilícitos; 4) tramita no Senado um projeto de lei segundo o qual qualquer diagnóstico e qualquer indicação de tratamento seriam atos reservados ao médico. Na semana passada, aliás, profissionais e estudantes de várias categorias da saúde (farmácia, fisioterapia, educação física, enfermagem, fonoaudiologia, nutrição, psicologia, odontologia, biologia, biologia médica etc.) manifestaram-se contra o projeto pelo Brasil afora.
Essas propostas, concebidas supostamente para o bem da comunidade, ferem a liberdade dos indivíduos sem que apareça com clareza a necessidade desse sacrifício.
Tomemos o caso da lei do ato médico. Imagine: estou com câncer e acredito nos poderes de uma terapia oriental pela queima de incenso ou na eficácia de operações espirituais. Você é médico e aprendeu que nada disso funciona. Você tem o direito e o dever de me informar. Pode também excluir essas práticas da lista dos procedimentos oferecidos pela assistência pública, pois é lógico que a dita lista seja estabelecida segundo o consenso majoritário em matéria de saúde. Mas pergunto: é necessário que uma lei impeça meu sábio oriental ou espírita de praticar sua arte, de se dizer terapeuta e de propor seus serviços como cura?
Alguém dirá que a lei do ato médico nos protege contra a charlatanice. Respondo: a comunidade tem o dever de tutelar seus membros, mas será que isso a autoriza a legiferar sobre as escolhas dos cidadãos como se fossem menores? Além disso, os critérios da legislação não são simples.
A história da medicina é uma longa batalha entre idéias e práticas que se acusaram mutuamente de charlatanice.
Considere o eletrochoque. Em poucas décadas, essa prática terapêutica dos transtornos mentais deixou de aparecer como uma cura milagrosa e se tornou uma prática execrada. Hoje, alguns afirmam que o choque é eficaz em casos de depressão grave e resistente; outros querem bani-lo. Se fosse preciso legislar, faria sentido decidir que qualquer prática é legítima à condição que seu defensor seja médico?
Não é melhor não legislar e deixar que o paciente e seus próximos, uma vez informados, escolham livremente a terapia e o terapeuta?
Os espaços sociais, em sua maioria, são administrados pelas interações concretas que os indivíduos inventam; por que, de repente, tantos espaços necessitariam dos cuidados do legislador? De onde vem essa epidemia de propostas que querem nosso bem e comprometem nossa autonomia?
Na ‘Veja’ desta semana, Roberto Da Matta afirma que o governo do momento tem duas faces: uma face que acredita no indivíduo como valor e uma face pela qual a organização do coletivo (sindicatos, corporações, conselhos etc.) seria mais importante do que as pessoas concretas. Em suma, uma face que acredita nas cabeças, e outra que acredita mais nos bonés.
É uma luta que dura desde o começo da modernidade. Num canto, Adam Smith, com a idéia de que é preciso legislar pouco, pois os indivíduos encontram jeitos de conviver à força de acertos e desacertos. No outro, Rousseau, com a idéia de que é preciso estabelecer uma vontade geral, extrair regras ‘certas’ da confusão de nossas vidas e impô-las a todos.
Atualmente, Rousseau parece prevalecer na administração de nossa vida concreta. É estranho que isso aconteça logo hoje, quando Adam Smith prevalece na hora de o governo fazer suas escolhas econômicas fundamentais.
Surge a suspeita de que se manifeste aqui um mecanismo que, no passado, transformou muitos revolucionários em burocratas: não conseguiram mudar as grandes estruturas do mundo segundo seus desejos, mas se dedicaram a regulamentar a vida cotidiana minuciosa e opressivamente. Ou seja, sonharam em vão com um mundo radicalmente feliz e passaram a instituir regras para mil casos em que seria melhor ‘deixar como está para ver como fica’.
Eis uma constatação banal em psicopatologia. Há pessoas que regulam sua própria vida a ponto de transformá-la num pesadelo de obediências. Alguém só pode virar à esquerda se ele chegar na esquina com o pé direito; outro só pode pagar se tiver o troco exato no bolso. Em geral, os sistemas de regras são mais complexos. De qualquer forma, essas pessoas, algozes de sua própria liberdade, têm um traço em comum. Quase sempre, elas carregam consigo a lembrança ou a fantasia de uma imensa felicidade que lhes foi retirada ou com a qual sonharam e que não aconteceu. Em geral, o excesso de regras que elas impõem a suas vidas tem uma dupla função. Serve para consolar: perdi o paraíso, mas continuo controlando o mundo. E serve para proteger: a lembrança do paraíso perdido é tão forte que minha vontade de reencontrá-lo me atropelaria se eu não regrasse cada passo de meu caminho.
Difícil não perguntar: alguma relação com a atual paixão de regulamentar a vida?’
Marcelo Coelho
‘Brasileiro’, copyright Folha de S. Paulo, 22/09/04
‘Às vezes leio coisas na internet, esqueço-me de imprimir ou de anotar a fonte e depois já não sei se a notícia era de verdade, se era trote ou se foi puro delírio de minha parte.
Por exemplo: noticiou-se que já está escalado o novo personagem que irá simbolizar a tal campanha publicitária do ‘eu sou brasileiro e não desisto nunca’. Trata-se de um jovem, ex-menino de rua, que agora estuda, trabalha e tem sucesso profissional, o que certamente constitui um bom exemplo para todos. Acontece que, antes disso, o rapaz se destacara por ter tentado fugir mais de 200 vezes da Febem.
Será que eu estava lendo algum site humorístico? Qual o maior exemplo de persistência cívica: superar as deficiências sociais de origem ou tentar fugir repetidas vezes da instituição que supostamente cuida do ‘bem-estar do menor’?
Os publicitários poderiam até organizar uma cena bonita. Penso no encontro de dois brasileiros ‘que não desistem nunca’ -a saber, o jovem fugitivo e o seu carcereiro, também dotado, imagino, de admirável tenacidade na manutenção da ordem prisional. Para terminar o anúncio, um close na bandeira do Brasil, com o lema tremulando: ‘Ordem’ (o carcereiro) e ‘progresso’ (o trânsfuga, agora self-made man). Põe self-made nisso, aliás.
Não, eu devia estar delirando quando li. De qualquer modo, a campanha se presta a incontáveis aplicações e sugere muitos personagens. Contém sua dose de homenagem ao presidente Lula, que é brasileiro e só foi eleito depois de várias tentativas.
Desse ângulo, entretanto, o lema do ‘não desisto nunca’ abriga generosamente políticos de todas as tendências: a célebre e, em geral, malquista obstinação de Paulo Maluf, por exemplo, passa a receber uma coloração bastante favorável.
Mais do que no mundo competitivo da política ou do esporte -onde o lema tem sido evocado a qualquer pretexto-, é no mundo econômico que a idéia do ‘não desisto nunca’ parece fazer mais sentido. Não penso propriamente no cidadão desempregado: imagino que a frase lhe seja de pouca inspiração. Se todos os dias ele sai de casa à procura de emprego, se sempre bate com a cara na porta da fábrica, se teima em abrir a página de anúncios do jornal, obviamente se trata de alguém que ‘não desiste nunca’; saber que essa é uma característica do bom brasileiro não é nenhum alívio.
O lema encontra eco mais provável na mentalidade do pequeno empresário, que reclama dos fiscais e dos impostos e, ainda assim, mantém o seu negócio, à falta de melhor alternativa. É também a voz do profissional liberal, pelos mesmos motivos e, acima de tudo, é a voz dos profissionais de publicidade, que, principalmente em períodos de retração econômica, conhecem o valor das técnicas da insistência, da redundância e da repetição.
Desemprego? Retração econômica? Faço uso de termos infelizes, um tanto ultrapassados pelos fatos: as notícias em torno do aquecimento da economia se acumulam há meses nos jornais. Acho que não é preciso ser muito pessimista, entretanto, para ter em mente a quantidade de vezes, nos últimos 20 anos, que os sinais de retomada do desenvolvimento logo eram desmentidos por algum imprevisto internacional de grandes proporções.
O sobe-e-desce dos juros parece feito de encomenda para desorientar as expectativas gerais. ‘Agora vai!’, pensamos todos nós, que não esquecemos os índices de crescimento econômico dos tempos do milagre -coisa acima de 10% ao ano. ‘Não foi desta vez’, repete-se a cada ano que passa.
É assim que, longe de expressar um dinamismo heróico e construtivo, a idéia do ‘não desisto nunca’ tem um componente de muito mais passividade do que faz supor à primeira vista. Do que é que eu não desisto nunca? De tocar minha vida, contra ventos e marés? Mas a alternativa seria o suicídio, a ruína, o naufrágio.
Ou será que é mais abstrato o apelo desse slogan? ‘Eu sou brasileiro, não desisto nunca de acreditar no país e de acreditar no que dizem dele’, a saber: que este é o país do futuro, que dias melhores virão, que a esperança é a última que morre… O brasileiro que não desiste nunca é aquele que continua apostando na Mega Sena, por exemplo, apesar de reduzidíssimas as chances de vitória. Trata-se de um esperançoso, mas não propriamente de um lutador.
A vantagem do slogan está precisamente aí: faz da paciência e da submissão do brasileiro um prodígio de combatividade e inconformismo. Todos se reconhecem como maratonistas olímpicos sem que precisem sair do lugar.
A não ser em caso de emigração -o que não é fenômeno tão raro, aliás-, o brasileiro ainda não desistiu daqui. Transforma-se em mérito moral uma contingência geográfica. Do mesmo modo, no nacionalismo tradicional, o Brasil sempre foi destinado a um grande futuro por força de suas florestas, rios, praias e cadeias de montanhas.
A atual voga nacionalista reproduz os mitos de sempre. Reveste-se, entretanto, de um verniz mais bajulatório, publicitário e ‘democrático’, em comparação a iniciativas de outros tempos. ‘Eu sou brasileiro e não desisto nunca’: o lema traduz para a primeira pessoa o famigerado e antigo mote da ditadura: ‘Brasil, ame-o ou deixe-o’.
Os marqueteiros de hoje não impõem ao público um suposto e truculento ‘amor à pátria’. Apostam no nosso narcisismo, a que chamam de auto-estima, mas o velho e o novo slogan têm o mesmo subtexto: desistir você não vai, deixar o país você não pode, de modo que é melhor você agüentar tudo quietinho. Sorria: você agüenta tão bem que terminará se orgulhando disso.’