Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Fernando Rodrigues

‘Arrombada a porta, coloca-se o cadeado. Depois da divulgação de fotos de uma pessoa humilhada pela ditadura militar, Lula parece agora disposto a pensar de verdade em melhorar a legislação sobre o acesso a documentos públicos.

Se quiser ser eficaz, deveria exterminar o conceito de ‘sigilo eterno’. Com uma canetada, o presidente pode revogar ou alterar o decreto presidencial 4.553, assinado por FHC quatro dias antes de sair do cargo, em dezembro de 2002. O tucano fixou que um documento ‘ultra-secreto’ fica vedado por até 50 anos, podendo esse prazo ser ‘renovado indefinidamente, de acordo como interesse da segurança da sociedade e do Estado’.

O presidente vive falando sobre a necessidade de trazer investimentos para o Brasil. Poderia seguir o exemplo de mais de 50 países no mundo que têm leis de direito de acesso a informações públicas e, assim, tornam-se mais transparentes também para investimentos produtivos.

O México -sim, o México- tem uma lei dessas. Os Estados Unidos têm o seu ‘Freedom of Information Act’, o FoIA, desde 1966. Em 1996, foi atualizado por Bill Clinton para o mundo com internet. Agora, os norte-americanos têm um e-FoIA.

Mais de 2 milhões de documentos da esfera federal são liberados nos EUA anualmente com base em requisições de cidadãos que usam o FoIA. Há um custo. O governo gasta cerca de US$ 300 milhões anualmente para divulgar esses papéis.

Quando se fala em acesso a documentos públicos, não são apenas os arquivos da ditadura ou os da Guerra do Paraguai. Trata-se de qualquer papel produzido dentro do governo -seja ele federal, estadual ou municipal. Os cidadãos de um determinado bairro têm o direito de solicitar e receber cópia da documentação sobre a licitação para a coleta de lixo local. Assim se exerce a cidadania.

Vários projetos sobre o tema tramitam no Congresso. Não andam. O Planalto não se interessa. Tudo depende de Lula e de José Dirceu.’



Janio de Freitas

‘O trágico e o cômico’, copyright Folha de S. Paulo, 24/10/04

‘Até a semana passada, foram sucessivos tropeções, mancadas e outros maus passos. Agora a situação desandou, no governo Lula, para sintomas de crise: turbulências sérias, embora ainda abafadas, na área militar; problemas na opinião pública, com o desvio galináceo do marqueteiro presidencial; problemas eleitorais, insinuados na ameaça de derrotas, no segundo turno, comprometedoras para o governo e seu predomínio político; e problemas com os partidos aliados, por decorrência de métodos pesados ao disputar-lhes o eleitorado. Problemas, todos, conectados uns aos outros.

Um exemplo do emaranhado: uma rinha que funciona há anos, com luxos de restaurante paulistano, de repente é estourada pela Polícia Federal (portanto, gente do governo Lula) no dia em que lá está o orientador das condutas e linguagens presidenciais, além de incumbido de obter a ameaçada vitória eleitoral do governo no seu próprio domicílio político. Por que tal fato em tal ocasião?

Faça a sua aposta: ação da PF, para derrubar dirigentes seus, ou grupo da PF em ação de propósitos políticos, ou um setor da PF agindo por indução e como extensão da ala do Exército exaltada com o episódio Herzog? Só não jogue as suas chances na noticiada denúncia de ambientalistas.

O problema militar tem faces múltiplas. Não é certo que o comandante do Exército, general Francisco Albuquerque, não tivesse conhecimento prévio, como disse ou foi dito em seu nome, da nota em que o Centro de Comunicação Social do Exército voltou a justificar a tortura (logo, inclusive os assassinatos assim praticados) durante a ditadura. O mal-estar com a idéia de aprovação/negação/recuo prevalece na alta oficialidade. O círculo central do governo, por sua vez, dividiu-se sobre o afastamento do general Albuquerque, já ou na hipotética reforma ministerial.

Esse problema está em estado efervescente. A par do ambiente tenso e raivoso, as fotos atribuídas a Vladimir Herzog abriram questões que não se encerram com a afirmação governamental, proveniente da Abin (ex-SNI), de que o fotografado é um padre humilhado pelo SNI. Sem o querer, a Abin evidenciou a permanência de arquivos que os militares disseram destruídos, a mobilização por localizá-los está assim estimulada, mas militares e parte do círculo presidencial são contrários. O embate é desgastante para o governo na sociedade, se o obscurantismo militar prevalecer, e com os militares, se perderem. E permanece, aumentando o calor, a discussão sobre a identidade do fotografado, porque há divergências formais entre as fotos dadas todas, pelo governo, como de um padre.

Se pusermos o mesmo olhar sobre aspectos tão graves como a rememoração do caso Herzog, a nota brutal do Exército e, no outro canto, o ‘ministro’ de fato da comunicação presidencial escapulindo do palácio para ser preso em uma briga clandestina de galos, o resultado é curvar-se ao lugar-comum do ‘país de opereta’. O tragicômico em que a segunda nota sempre se alia à primeira, em um convívio que torna a vida suportável no país que se faz insuportável.’

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‘Notas e fotos’, copyright Folha de S. Paulo, 21/10/04

‘Já são dois, e perfeitamente distintos, os aspectos críticos dos desdobramentos provocados pelas fotos nas quais a viúva de Vladimir Herzog o reconhece, despido e acabrunhado sobre um catre, que nem a agressiva nota oficial do Exército negou ser em dependência sua.

O primeiro dos aspectos decorre dessa nota. Seu desatino, seja considerada do ponto de vista histórico, político, moral ou militar, inscreve-a e aos seus adeptos nos casos de psicopatologia. A nota é produto de uma desestruturação que não identifica fatos e passado, presente e evidências, princípios e regras. Constrangido pelo desatino que também o atingiu, o governo levou dois dias mas, afinal, conseguiu extrair do Exército uma nota, tão sucinta quanto a anterior foi prolixa, de sentido à primeira vista decente.

A nota desatinada teve autores e responsáveis, não sendo uns e outros necessariamente os mesmos. Autores e responsáveis agiram em um sistema funcional que lhes possibilita desatinos como aquele e, já se tem o direito de supor, outros de mesmo ou pior quilate. Diante disso, que providências, além da nota para mascarar uma situação vergonhosa, o governo já tomou, como é do seu dever? Ou ainda pensa tomar? Ou nem pensa tomar?

Não são palavras de um jornalista que ‘tem má vontade com Lula’, ou coisa que o valha, são da colunista do ‘Globo’ Tereza Cruvinel, justificadamente bem conceituada: [a nota desaforada do Exército] ‘só aconteceu porque o atual governo, repetindo os que o antecederam, cultua o silêncio sobre os crimes da ditadura’. É o que também chamou de ‘opção do governo Lula por evitar toda apuração dos crimes da ditadura’.

Lula tem sua quota de responsabilidade pelo acesso fascistóide que procedeu do Exército e deve ao país o exercício da responsabilidade de que está investido como presidente. A notinha pretensamente reparadora não pôde escamotear a sua insinceridade de remendo e, como tal, não inicia o processo de consertos sem o qual a democracia brasileira estará, sempre, sob o desafio de espadas.

O outro aspecto crítico é bem paisano. Ao divulgar no domingo as fotos de Herzog, o ‘Correio Braziliense’ informou que foram encontradas nos arquivos da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. Em 28.8.97, aqui foi publicado um artigo (‘O serviço dos agentes’) motivado por documentos que o cabo José Alves Firmino, ex-agente, retirou do Exército e, de quebra, indicavam a persistência da espionagem ‘sob o regime dito constitucional no governo dito democrático do presidente dito democrata’ (Fernando Henrique). O governo não teve maior interesse nos documentos, que poderiam levar a investigações contrárias ao seu desejo de proteger, não de esclarecer. Jornais também não levaram adiante a senda oferecida pelo ex-agente.

Mas como a Câmara dos Deputados, os atuais e os então integrantes da sua Comissão de Direitos Humanos e o hoje ministro Nilmário Miranda explicam a responsabilidade pelo absurdo de que só agora, passados sete anos de sua entrega, as fotos sejam notadas? Ou os documentos não foram sequer folheados, ou o foram e também na Comissão de Direitos Humanos, com os seus bravos petistas, fez o acovardamento conveniente sobrepor-se ao dever parlamentar, ético e humano. Também por este lado o país tem o direito de receber explicações e atitudes.



Folha de S. Paulo

‘Arquivos proibidos’, Editorial, copyright Folha de S. Paulo, 23/10/04

‘Ainda não está esclarecido o episódio das imagens, recentemente divulgadas, em que apareceria o jornalista Vladimir Herzog pouco antes de seu assassinato em 1975. São duvidosas não apenas as circunstâncias das fotos como a identidade das pessoas retratadas em situação de nudez constrangedora. Só não paira dúvida sobre o fato de que Herzog foi preso, torturado e assassinado por agentes do regime militar então em vigor no Brasil.

Mas o episódio serviu para demonstrar que as Forças Armadas ainda não desenvolveram uma atitude adequada em relação a esse passado traumático. Uma primeira nota, divulgada pela assessoria do Exército, repetia o jargão mistificador utilizado pelo regime militar. Foi seguida por outra nota, autorizada pelo comandante da Força e feita sob medida em acatamento a instruções do próprio presidente Lula.

Ao contrário do que muitas vezes se apregoa hoje, o regime militar não foi resultado de alguma vocação repressiva inerente às Forças Armadas. Foi fruto da violenta radicalização política que afetou o mundo inteiro nas décadas de 60 e 70 do século passado. A oposição armada ao regime militar não era democrática. Seu objetivo era implantar uma ditadura socialista no país, que teria sido igual ou até pior que a dos generais.

Mas nada disso justifica os desmandos que ocorreram sob a responsabilidade do regime instalado em 64, que não somente suprimiu as liberdades públicas mas torturou e assassinou adversários que se encontravam sob custódia do Estado. Dessa terrível experiência, a sociedade brasileira emergiu sob o compromisso de nunca mais aceitar a quebra das regras democráticas nem a violência contra opositores políticos.

A anistia de 1979 permitiu superar esse passado, evitando que se perenizasse uma espiral de ressentimentos, compreensíveis de ambos os lados, mas inaceitáveis como forma de convivência numa mesma nação. O espírito da anistia, que deve ser preservado, não significa porém desconhecer o passado. É necessário que os arquivos da repressão sejam de uma vez por todas divulgados e que os fatos ainda obscuros sejam esclarecidos -em nome da História e do aprendizado das futuras gerações.



INDENIZAÇÃO QUESTIONADA
O Estado de S. Paulo

‘Quem paga as indenizações’, Editorial, copyright O Estado de S. Paulo, 25/10/04

‘Desde a criação da Comissão de Anistia no Ministério da Justiça, em 2001, 5.540 brasileiros perseguidos na ditadura militar e beneficiados pela Lei da Anistia, vigente há 25 anos, foram indenizados pelo Estado brasileiro, por decisão desta comissão. Agora, 45 mereceram tratamento diferenciado, ganhando, em portarias recém-publicadas no Diário Oficial, o direito de receber indenizações milionárias compensatórias para os eventuais prejuízos que lhes tenham sido impingidos pelas autoridades daquele período histórico. A palavra milionária aqui não está sendo usada num sentido vago ou metafórico, mas aritmético: além de mensalidades altas – a maioria acima de R$ 10 mil -, esse seleto grupo assegurou para seus componentes indenizações retroativas superiores a R$ 1 milhão.

Até 23 de julho passado, as três câmaras dessa Comissão de Anistia julgaram 14.466 casos e decidiram mandar o governo desembolsar R$ 1,4 bilhão em indenizações e mais R$ 267 milhões em pensões pagas mensalmente. Faltam ser julgados 13.800 processos. Dos 5.540 aprovados, 3.887 são de militares, 932 de servidores de estatais e 721 de funcionários de empresas privadas e militantes políticos vítimas de repressão e que combateram a ditadura militar.

Eis aí o mais recente exemplo da absoluta (e, no caso, absurda) falta de critérios com que nossos legisladores dispõem sobre os recursos arrecadados pelo Estado, mercê de uma carga tributária escorchante e onerosa sobre os escassos resultados da produção nacional. E também uma evidência de como erros cometidos no passado continuam repercutindo na vida da Nação, comprometendo o sacrifício imposto à sociedade para a construção de um futuro mais digno para as futuras gerações de brasileiros e reproduzindo as mesmas situações de injustiça e desigualdade de sempre. Ao defender o trabalho da comissão, que preside, o advogado e ex-presidente da OAB Marcelo Lavenère explicou que a diferença abissal entre as indenizações pagas à elite e as pensões definidas para pessoas sem posses resultam de um equívoco consagrado pela lei. ‘Se o pobre diabo perseguido era um gari, ele vai receber o equivalente a isso. Agora, se era um diplomata, um piloto de Boeing ou um jornalista de boa pena, o valor vai ser outro. Está na lei’, disse. Ou seja: o cálculo, feito sobre o prejuízo que a vítima eventual presume ter tido, consagra injustiças em nome de conceitos politicamente corretos de justiça.

Do seleto clube dos novos 45 pensionistas milionários da bolsa da viúva, a grande maioria (35) é de funcionários da Petrobrás, empresa estatal que já paga salários acima da média do mercado. Esses brasileiros, pretensamente injustiçados na ditadura, cobram, embora sejam privilegiados membros da minoria empregada e bem remunerada, reparação de milhões de brasileiros que a bancam, mesmo tendo dificuldade para arranjar um emprego com salário digno.

O caso paradigmático protagonizado pelo jornalista e escritor Carlos Heitor Cony, membro da Academia Brasileira de Letras, define essa situação esdrúxula. Ele foi editorialista do Correio da Manhã, jornal cuja falência é atribuída à pressão do regime discricionário. De 1965, data da perseguição de que o acadêmico se diz vítima, para cá não consta que ele tenha passado necessidade, uma vez que esteve sempre bem empregado e tenha merecido notório reconhecimento social. Mas sua renda, que na certa modesta não é, será acrescida de uma indenização de R$ 1,4 milhão. Ele ainda teria direito a receber R$ 23.187,90 por mês, mas o valor será de fato de R$ 19.115,19, teto salarial do funcionalismo federal, correspondente ao salário de um ministro do STF.

Outro exemplo dos extremos surrealistas a que pode levar o uso estróina do dinheiro público para reparar a mauvaise conscience do establishment político nacional foi dado pelo pedido de reparação da imagem do ex-presidente João Goulart, feito por sua viúva, Maria Thereza, ao ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos. Ela considera os R$ 8.800 (34 salários mínimos) da pensão (equivalente ao salário integral do cidadão no exercício da Presidência) que recebe insuficientes para sustentar o padrão de vida ao qual está habituada – como se seu marido tivesse morrido pobre – e resolveu pedir equiparação à pensão de Cony. Difícil será negar-lhe razão: afinal, terá seu marido sido menos prejudicado pela ditadura que o acadêmico?’