‘Mostramos, na semana passada, o caráter antidemocrático e os disfarces sob os quais vem escondido o ‘pacote da Ancinav’ para controlar todos os conteúdos de entretenimento e informação veiculados por mídia eletrônica num país onde ela é a única ferramenta de comunicação de massas, e como isso se encaixa no projeto de poder do PT.
Para disfarçar suas intenções antidemocráticas, o PT mistura com o pacote da Ancinav traços vagos de uma política de fomento à produção independente de conteúdos audiovisuais. Se o objetivo fosse mesmo este, a primeira e mais poderosa medida a ser baixada seria impor a obrigação de carregar (‘must carrie’) todos os canais de TV que puderem pagar por esse serviço aos concessionários de sistemas de distribuição de TV fechada, por cabo, satélite ou que tecnologia for, como acontece no mundo inteiro.
O raciocínio é óbvio: a multiplicação de canais, antes de mais nada, é que leva à multiplicação do espaço de programação e, portanto, do número de pessoas e empresas dedicadas a fabricar os conteúdos a serem por eles exibidos.
Não há limite técnico para a capacidade dos sistemas existentes de carregar todos os canais que hoje querem espaço no ‘dial’ no Brasil. Em todo o mundo há uma inflação de canais (de TV e de novos meios) e uma escassez aguda de conteúdos de qualidade. Por isso, em toda parte, menos no Brasil, a produção independente está em explosivo desenvolvimento, movimentando bilhões de dólares e sustentando milhões de empregos.
Aqui a TV fechada não se expande graças a uma distorção de regulamentação que só pode ser explicada pela intenção compartilhada entre os donos das grandes redes de TV aberta e seus sócios, as dezenas de grupos regionais de comunicação pertencentes a famílias que, graças a essas redes regionais e à sua associação com as redes nacionais de TV aberta, de audiência praticamente hegemônica, dominam a política local, ganham espaço no Congresso e se eternizam no poder.
Em outras palavras, a definição da política de TV fechada no Brasil foi entregue, juntamente com o próprio sistema de carregamento, aos sócios das TVs abertas com mandatos no Congresso e cargos nas comissões que decidem a política na qual estão diretamente interessados – e seu objetivo não é fomentar ou expandir as TVs alternativas ou a produção independente nacional, seus potenciais concorrentes, mas sim defender o monopólio de audiência que as redes abertas hoje detêm.
Legisla-se sobre TV, no Brasil, enfim, para fortalecer um esquema de dominação política, e não para normatizar e fortalecer um setor de negócios.
O que o PT tenta fazer neste momento é fechar o esquema, antes compartilhado por outros partidos e por sócios privados, mais para si.
A política em vigor no País estipula que somente os canais geradores de programação têm, obrigatoriamente, de ser carregados pelas operadoras de TV fechada, e, mesmo assim, apenas para as praças em que estão sediados. Assim, a NET é obrigada a transmitir uma TV geradora sediada em Mogi das Cruzes para Mogi das Cruzes, mas pode se recusar a exibir sua programação na vizinha São Paulo, mesmo que o candidato se disponha a pagar o preço justo pelo serviço. O cerco se fecha na política que define alguns canais como geradores e outros como retransmissores, o que também obedece muito mais a critérios políticos – de conveniências para o poder de conceder – do que técnicos.
Depois de inviabilizada a condição para o surgimento de conglomerados de canais a cabo no País pelos expedientes acima descritos – basta não conceder ao mesmo grupo geradoras suficientes em praças importantes -, os operadores dos sistemas de carregamento jogaram a pá de cal na concorrência trabalhando para elitizar a TV fechada, seja, além de exibir os seus próprios, contratando apenas canais estrangeiros já consagrados voltados para públicos de alta extração, seja mantendo caras as tarifas de acesso ao sistema de modo a restringi-lo a uma minoria.
Sem o ‘must carrie’ jamais haverá TV fechada competitiva no Brasil e, portanto, jamais haverá concorrência real para as redes abertas ou produção independente e diversidade na mídia eletrônica.
Quanto a fomento à produção audiovisual brasileira – que vira quase distribuição de privilégio num ambiente regulatório tão hostil -, só existem medidas incipientes. As salas de projeção têm obrigação de exibir filmes nacionais 63 dias por ano. A TV aberta não tem nenhuma obrigação. Há esboços de ‘compromissos’, jamais implementados. Quanto às TVs fechadas, as operadoras são obrigadas a ‘manter um canal que exiba majoritariamente produção brasileira’. Esses canais tendem a se transformar em guetos isolados tanto pelo público quanto pelo mercado publicitário…
Nos Estados Unidos, até há dois anos, quando a legislação foi alterada no sentido de maior liberação, havia solução mais inteligente: todas as TVs abertas tinham a obrigação de exibir um mínimo de 60% de sua programação produzida fora de seu sistema doméstico. Na França, a TV aberta é obrigada a investir 10% de seu faturamento total e a TV fechada, 15%, em produções independentes ou co-produções com produtores independentes. Na Espanha a legislação se parece com a da França.
O expediente de obrigar as redes e demais exibidores da TV fechada a preencher uma parcela de sua programação com produções independentes de sua livre escolha traz dois benefícios: joga no processo um impulso poderoso pela qualidade, já que os exibidores terão de vender e faturar sobre esses produtos ou perder seu dinheiro, o que promove a qualidade e a competição entre os independentes. E, como o ponto de partida é a demanda do mercado, e não a opção de um burocrata, o governo não interfere minimamente nem no conteúdo, nem na escolha sobre quem vai ou não vai produzir, segundo pistolões.
No próximo artigo desta série, veremos como nasceu a associação entre os donos de redes de TV aberta e os ‘coronéis eletrônicos’ e como estes, mesmo os corruptos e os que tinham servido aos militares, acabaram sendo salvos do ostracismo político tornando-se donos das repetidoras locais das grandes redes, no alvorecer da Nova República. Veremos, também, como a má consciência de ambos facilitou a apropriação ‘gramsciana’ dos conteúdos das ‘máquinas de produção cultural da burguesia’ pelos grupos ideológicos que, teoricamente, não combinam com os dois grupos precedentes e agora querem excluí-los do consórcio, e como os políticos fisiológicos ganharam a parte que lhes cabe nesse latifúndio. E veremos, por fim, como o interesse numa mídia eletrônica pouco diversificada os une a todos e por que este é o maior obstáculo ao desenvolvimento político do Brasil. Fernão Lara Mesquita é jornalista’
Anaí Rodrigues
‘Congresso vira palanque contra projeto da Ancinav’, copyright Agência Carta Maior (www.agenciacartamaior.com.br), 22/09/04
‘Congresso, patrocinado pelo Ecad, discutiu gestão coletiva dos direitos autorais na música, literatura, teatro e artes visuais e aprovou uma moção de repúdio ao projeto da Ancinav proposto pelo Ministério da Cultura
Terminou, na última quarta-feira (15/09), o 1º Congresso Mundial de Gestão Coletiva nos Direitos Autorais, realizado na última semana em São Paulo. O evento foi organizado pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), pela Academia Paulista de Magistrados (APM), pela Associação Brasileira de Direitos Autorais (ABDA), pela Associação Brasileira de Direitos de Autores Visuais (Autvis), e patrocinado pelo Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição).
Contando com um público de cerca de 500 pessoas, formado principalmente por advogados, juízes e técnicos na área de direito autoral, além de executivos de empresas ligados à produção, usuários de direitos autorais e alguns artistas e autores, o Congresso discutiu a gestão coletiva, que é o processo de recolhimento e distribuição dos direitos autorais pelos próprios artistas, em quatro áreas: música, artes visuais, teatro e literatura.
No entanto, a principal discussão durante todo o Congresso não tinha relação direta com esse tema. Especialmente na área musical, boa parte do debate se deu em torno da questão do anteprojeto da Ancinav (Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual). Essa agência está sendo proposta pelo governo federal para substituir a Ancine (Agência Nacional do Cinema) e tem, segundo o Ministério da Cultura, o propósito de regular, estimular e fiscalizar as atividades de produção e de difusão de conteúdos audiovisuais no país.
O clima era de crítica geral ao projeto, e de qualquer forma de regulação do governo sobre o livre mercado. Sobre a importância de haver um mecanismo estatal de controle sobre o Ecad, já que esse tem o monopólio da arrecadação dos direitos autorais de execução pública musical no país, o autoralista e diretor da Associação Brasileira de Direitos Autorais (ABDA), Roberto Corrêa de Mello, foi taxativo em afirmar que ‘não deve ter nenhum mecanismo de controle por parte do Estado. O sistema hoje é bom, pois são os próprios autores que fiscalizam’. Para ele, não só a Ancinav, mas qualquer forma de controle ou regulação do Estado sobre a atividade econômica é negativa. ‘Não existe interesse de Estado, o que existe é o interesse de cada um de nós’, acredita.
Apesar da existência de avaliações como essa, de âmbito geral, os palestrantes centraram sua crítica em quatro artigos do anteprojeto (127 a 130), que se referem à utilização de músicas no cinema e, segundo eles, interferem na gestão coletiva dos direitos do autor nessa área.
O anteprojeto estabelece, por exemplo, que ‘os valores devidos pelos responsáveis pelo pagamento dos direitos aos titulares dos direitos autorais e conexos das obras audiovisuais não serão superiores a um total correspondente a 1% da renda bruta, menos os impostos, auferida pela exibição das obras audiovisuais e cinematográficas’. Determina, ainda, que ‘compete à Ancinav regulamentar a arrecadação e distribuição, em comum, dos direitos relativos à execução publica das obras audiovisuais, inclusive por meio da radiodifusão e transmissão por qualquer modalidade’. (art 129)
Segundo a superintende do Ecad, Glória Braga, o projeto coloca pra dentro da Ancinav a administração musical, que é feita há anos pelo próprio músico, sem sequer ouvir os artistas, que são os principais interessados. ‘O projeto não deixa claro quem fará a arrecadação, pois diz uma coisa na exposição de motivos e outra na lei em si, e, para piorar a situação, fixa o preço, o que leva a crer que é o governo que vai fazer, porque já até diz quanto vai ser’. Para ela, esse dispositivo contraria a própria Constituição Federal, que atribui exclusivamente aos autores o direito de utilizar sua obra.
Apesar de não ser um fórum deliberativo e de sequer contar com uma atividade de fechamento da qual participassem todos os inscritos (que estavam divididos nas quatro áreas), a organização do Congresso apresentou uma moção de repúdio contra o projeto da Ancinav, no que diz respeito a dois pontos: competência da Agência para administração dos direitos autorais e estabelecimento de um preço relativo a esses direitos de forma arbitrária por parte do governo.
O presidente do Congresso, o autoralista José Carlos Costa Netto, afirma que a moção foi sendo compilada à medida que todos os debatedores foram tratando desse assunto e foi aprovada, por unanimidade, na última palestra da área de música. Segundo ele, a moção vai ser enviada ao ministro da Cultura, em nome de todos os participantes nacionais do evento, apesar dessa palestra contar com a presença de cerca de 200 dos 500 inscritos no Congresso. Entre os ausentes estava Otávio Afonso, gerente de Direito Autoral do Ministério da Cultura, apoiador oficial do evento.
Discussões temáticas
Nem todas as discussões do Congresso, no entanto, disseram respeito ao anteprojeto da Ancinav. Para Costa Netto, o Congresso deu um grande passo na defesa dos direitos do autor porque pôde aprofundar a discussão. Segundo ele, geralmente os debates são muito genéricos, abrangendo todas as questões da propriedade intelectual. ‘Dessa vez reduzimos o Congresso não apenas ao direito autoral, mas também à gestão coletiva, de modo que pudemos qualificar a discussão’, explica.
Na área de música, por exemplo, que é a mais desenvolvida das quatro nesse setor, inclusive graças à existência do Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), houve muita troca de informação com entidades estrangeiras. Segundo Costa Netto, isso forneceu um panorama sobre em que plano está a gestão coletiva musical no Brasil: bem mais evoluída do que em países não desenvolvidos, mas aquém dos países desenvolvidos (especialmente França e Espanha). ‘Na França, se arrecada 10 vezes mais com execução pública do que no Brasil, onde arrecadamos R$ 200 milhões por ano’, afirma o autoralista.
Nas artes visuais, o Congresso foi importante para ajudar a alavancar os trabalhos da Autvis, associação dos artista visuais que existe há apenas dois anos. Segundo Costa Netto, os participantes travaram discussões de temas importantes e polêmicos como o caso do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, cujo criador está reivindicando os direitos autorais. ‘Foi uma discussão polêmica, não teve consenso, mas a visão majoritária foi a de que o uso que for estritamente comercial da escultura tem que respeitar os direitos do autor’, relata.
No campo da Literatura, o tema mais debatido foi a reprografia das obras literárias. Segundo o presidente do Congresso, contribuiu muito no desenvolvimento dos direitos dos escritores a política de autorizar, em alguns casos – especialmente através dos convênios com universidades – a xerox de capítulos de livros, garantindo a arrecadação do direito autoral. No entanto, essa prática foi abandonada nos últimos tempos. ‘A reflexão principal foi no sentido de retomar essa ação, que congrega a necessidade de acesso de livros didáticos pelos estudantes e o respeito aos direitos do autor’, explicou.
Com relação ao Teatro, o clima preponderante foi de desencanto com a decadência da sua associação: a SBAT – Sociedade Brasileira de Artistas Teatrais, a mais antiga no campo da gestão coletiva no Brasil. Apesar de ser a maior sociedade de direitos autorais, Costa Netto afirma que a SBAT está enfrentando dificuldades financeiras seríssimas, não conseguindo executar suas tarefas mais básicas na proteção dos direitos dos artistas de teatro. Segundo ele, a arrecadação nessa área se dá centralmente nas bilheterias dos espetáculos, mas isso não tem sido suficiente, de modo que os participantes procuraram pensar em outras fontes de custeio para a entidade. ‘O espírito geral é o de pensar mecanismos de evitar a desativação da associação, que não interessa a ninguém’, conta.’